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Sem transparência sobre fila de UTIs, Justiça opera para garantir atendimento a pacientes de covid-19

País desconhece estrutura total disponível em hospitais públicos e privados, fundamental para planejar atendimentos e preservar mais vidas. Famílias de pacientes entram com ações judiciais para obter leitos

Paciente em um hospital de campanha da Espanha.
Paciente em um hospital de campanha da Espanha.
Beatriz Jucá

Dois meses depois de confirmar o primeiro caso de coronavírus e após superar a marca de 4.500 mortes, o Brasil ainda não sabe qual é a sua capacidade total de leitos de terapia intensiva disponíveis para tratar os pacientes mais graves com a covid-19. Essa estrutura ―que inclui equipe médica especializada e aparelhos como respiradores e ventiladores mecânicos― garante a ajuda necessária para que pacientes consigam respirar durante a fase mais aguda da infecção que acomete os pulmões enquanto ainda não há medicamentos com comprovação científica capazes de curá-los. Embora alguns hospitais públicos de referência em diferentes Estados (como por exemplo São Paulo e Rio de Janeiro) anunciem ter chegado ao limite de suas capacidades, nem o Governo Federal nem os Estados iniciaram ainda uma gestão unificada dos leitos de UTI ― da rede pública, da rede privada e do terceiro braço complementar que vem sendo estruturado para tratar exclusivamente casos suspeitos da covid-19 nos hospitais de campanha. Segundo especialistas em saúde, a medida é decisiva para estabelecer regras e garantir que pacientes graves não fiquem sem esses leitos em meio à crise sanitária num país cujo sistema de saúde é historicamente desigual. Sem isso, afirmam, é difícil até encaminhar pacientes para unidades de saúde que ainda tenham leitos de terapia intensiva disponíveis.

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O problema é grave e já chegou à Justiça. Em diferentes locais do Brasil, familiares de pacientes com suspeita da covid-19 à espera por um leito de UTI da rede pública têm entrado com ações judiciais. A legislação federal e mesmo os planos de contingência formulados pelos Estados para enfrentar a pandemia preveem a possibilidade de o Governo assumir a gestão também dos leitos de hospitais privados em casos emergenciais como é a crise do coronavírus, desde que paguem por eles. Países como Espanha e Irlanda o fizeram, com o objetivo de garantir um acesso à saúde mais democratizado para toda a população.

Se o debate sobre uma fila única entre as UTIs públicas e privadas é mais complexo, decisões judiciais recentes no Brasil dão conta de que essa unificação na gestão dos leitos ainda não funciona sequer dentro do próprio SUS, que inclui equipamentos gerenciados por municípios, Estados e pelo Governo Federal. Na última semana, a Justiça do Rio de Janeiro determinou que hospitais federais passassem a “realizar efetiva cessão de seus leitos livres para a regulação unificada", que deve ficar a cargo do Estado. Somente um dos hospitais referência para a covid-19 no Rio de Janeiro ainda tem vagas de UTI disponíveis.

Por enquanto, a decisão da justiça fluminense inclui apenas as estruturas hospitalares do SUS. Deixa de fora, por exemplo, os leitos de hospitais privados. No início do mês, diversas entidades de saúde chegaram a publicar um manifesto em defesa de uma fila única de todos os leitos de terapia intensiva. Elas defendem que é urgente essa centralização pelo Governo Federal, que poderá planejar transferências de pacientes para regiões mais desafogadas e estabelecer critérios de gravidade e uma ordem de chegada para que a população não fique sem acesso a uma estrutura fundamental para sua sobrevivência caso seja acometida gravemente pela covid-19. No Brasil, os leitos de UTI estão divididos meio a meio entre hospitais públicos e privados, mas estes últimos atendem a apenas um quarto de toda a população.

“Tendo um estoque único, do SUS, do não SUS (setor privado) e da rede extraordinária (criada para a pandemia), você orienta a ocupação deles por critérios de gravidade, de chegada do paciente. Se você não regula isso urgentemente, vai ser regulado aos pedaços pela Justiça. E aí vamos ter um sistema mais desorganizado e com maior desigualdade”, afirma o professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Mário Scheffer. Ele pondera que, para estabelecer a fila única, há que se considerar o direito dos usuários dos planos de saúde e também um pagamento justo dessas estruturas ao setor privado, mas defende a medida durante a emergência sanitária como forma de amenizar as desigualdades e evitar que pessoas morram na fila de espera.

O problema é que, neste momento, não há sequer informações centralizadas em nível nacional sobre qual a estrutura total de terapia intensiva disponível atualmente para receber pacientes com a covid-19. No painel que criou após recomendação do Ministério Público, o Ministério da Saúde informa que o país tem 30.941 leitos de UTI, mas não há informações sobre as taxas de ocupação deles. Ou seja, o Governo expõe o número total dessas estruturas no SUS e na rede privada, mas não diz qual a margem ainda está disponível para receber pacientes enquanto o país já chega a 61.888 infectados. O Ministério da Saúde até chegou a publicar uma portaria no dia 9 de abril para que hospitais públicos e privados que prestam serviço ao SUS informem diariamente a taxa de ocupação de seus leitos ―inclusive prevendo multas de 75.000 a 1,5 milhão de reais em caso de descumprimento― e anunciou que esse painel seria divulgado, mas cerca de duas semanas depois a sociedade continua no escuro qual é a estrutura que está de fato disponível hoje no país.

Se o Governo Federal não apresenta esse monitoramento atualmente, as secretarias estaduais da Saúde também não têm esses dados unificados. O EL PAÍS entrou em contato por e-mail com os 26 Estados e o Distrito Federal para saber a taxa de ocupação dos leitos de terapia intensiva tanto na rede pública quanto na rede privada em meio à crise do coronavírus. As respostas das 12 secretarias (RJ, DF, RS, PR, CE, RR, MT, TO, PE, RN, AC e AL) apresentaram algum dado, e ainda assim a maioria difuso. Nenhuma delas informou a taxa de ocupação de leitos de UTI privados, ainda que alguns Estados (como o Rio Grande do Sul e o Rio de Janeiro) informem o número total dessas estruturas nos hospitais particulares. O monitoramento é importante inclusive pelo fato de que, caso o sistema privado colapse, caberá ao SUS (um sistema para todos) receber a demanda.

Em geral, as secretarias anunciam seus planos de abrir mais leitos e, quando muito, dão a taxa de ocupação de leitos de UTI do SUS ― dados gerais ou dos que estão reservados para a covid-19. Vários Estados admitem a possibilidade, por exemplo, de requisitar leitos privados em caso de necessidade, mas não informam sequer se conhecem qual é a disponibilidade desse setor, que também tem recebido pacientes com a doença. Poucos dias após ter assumido o Ministério da Saúde, Nelson Teich chegou a citar uma ociosidade em alguns hospitais particulares que, segundo ele, chega a 40%. O ministro não detalhou se esses leitos eram de UTI, quais hospitais eram esses e nem se poderiam receber pacientes com a covid-19 do SUS, apenas animou que doentes crônicos voltassem a frequentar as unidades particulares.

Enquanto o coronavírus avança em ritmo diferente nos vários Estados brasileiros, a oferta de leitos também é assimétrica. Por enquanto, as taxas de ocupação dos leitos do SUS disponíveis para pacientes com suspeita da covid-19 em Alagoas, Acre, Tocantins, Mato Grosso, Roraima, Rio Grande do Norte e Paraná é menor que 30%. Apesar de taxas baixas, esses Estados ainda não estão classificados como em emergência pela incidência do coronavírus e dispõem de redes de saúde pequenas. Já Pernambuco, Pará, Ceará e Amazonas enfrentam um estágio mais duro da pressão de seus sistemas de saúde e afirmaram que mais de 90% dos leitos públicos de terapia intensiva para coronavírus estão ocupados.

“O que nós temos hoje é um apagão de informações que dificulta (o gerenciamento)", diz Mário Scheffer, se referindo também à falta de informações unificadas sobre o terceiro braço criado no sistema de saúde em função da pandemia: a estrutura extraordinária de novos hospitais de campanha e novos leitos de UTI anunciados. “Essa expansão está em curso, mas não está clara. Sabemos que essa oferta acrescida prometida está com grande atraso. Alguns hospitais de campanha, por exemplo, enfrentam problemas com equipamento e equipe para funcionarem”, afirma.

O Rio de Janeiro é um exemplo disso. O Estado inaugurou seu primeiro hospital de campanha ―de um total de dez previstos― neste sábado (25), quando apenas um dos sete hospitais estaduais de referência para a covid-19 ainda tinha leitos de UTI disponíveis. O hospital de campanha do Leblon abriu as portas com 10 leitos de UTI e 20 de enfermaria, quando a previsão é de chegar a 100 leitos de cada tipo. Outros hospitais de campanha no Estado estavam previstos para serem inaugurados em abril, mas o novo prazo é que passem a operar apenas ao longo do mês de maio.

Muitos Estados têm convertido estádios de futebol em hospitais de campanha e anunciado ―muitas vezes com o apoio do Governo Federal― a abertura de milhares de leitos de UTI exclusivos para a covid-19. Mas, enquanto a epidemia avança, há gargalos nas informações sobre o que do que foi anunciado de fato já está operando e também quanto dessas estruturas estão em uso no momento. Com tantas lacunas de informações em nível nacional, Scheffer diz que não é possível saber se os recursos acrescidos serão suficientes ou mesmo até que ponto os leitos de UTI privados poderiam socorrer o SUS, em caso de necessidade. “Não temos dimensão total da velocidade do contágio e da repercussão no sistema de saúde”, afirma.

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