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“Meu tio deu o último suspiro ofegante na esquina do hospital”: o périplo de uma vítima do coronavírus na Rocinha

Antônio Edson Mariano, de 67 anos, está entre os cinco mortos pela Covid-19 na favela carioca, de acordo com os dados oficiais. “Ele não teve enterro, ninguém pôde se despedir”, lamenta sobrinha

Funcionário limpa estação de metrô e ruas na Rocinha, no Rio.
Funcionário limpa estação de metrô e ruas na Rocinha, no Rio.Antonio Lacerda (EFE)
Felipe Betim

O coronavírus já é uma realidade nas favelas. A maior delas, a Rocinha, lar de cerca de 100.000 pessoas, na zona sul do Rio, já confirmou nesta semana as primeiras cinco mortes causadas pela Covid-19. Uma das vítimas se chama Antônio Edson Mariano. Ele tinha 67 anos e faleceu na segunda-feira 30 de março enquanto era levado ao hospital. Na certidão de óbito constava “suspeita de infecção por Covid-19”, e só nesta semana, na quarta 8 de abril, a família recebeu a confirmação de que se tratava da doença. “Estamos muito chocados e revoltados ao mesmo tempo. A gente não deu um enterro digno para ele. A família é enorme, mas ninguém pôde se despedir”, relata por telefone a sobrinha do idoso, a manicure Fabíola Marino, de 35 anos. Além de Antônio, sua esposa e seu filho mais velho também testaram positivo e, logo após sua morte, foram internados e entubados na UTI.

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Antônio morava na parte de baixo da Rocinha, próximo ao Largo do Boiadeiro, principal zona comercial —e de circulação de pessoas— da favela carioca. O sintomas começaram por volta do dia 25 de março e evoluíram rapidamente. Com hipertensão e diabetes, condições que agravam a doença, Antônio esteve em uma Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) já na sexta-feira, 27 de março. “Mas falaram que ele estava só sentindo uma dor na barriga e não era nada demais”, conta Fabíola. Retornou no dia seguinte já com febre, sinais de resfriado e um pouco de falta de ar. “Diagnosticaram pneumonia, mas mesmo com todos os sintomas e doenças pré-existentes, mandaram de volta para casa mais uma vez”, prossegue Fabíola. Seu tio acordou com ainda mais falta de ar no dia seguinte. Achando que poderia ser efeito do antibiótico que tinham receitado, permaneceu em casa e “passou o dia muito mal”, segundo a manicure. “Na segunda acordou já pedindo socorro, dizendo que não aguentava respirar. Levaram ele para o CER [Coordenação de Emergência Regional] no Leblon, mas ele já chegou morto. Deu o último suspiro ofegante quando estava na esquina, quando estava chegando”.

O enterro seguiu os atuais protocolos de segurança, com o caixão lacrado e sem que família pudesse velar o corpo. “A maior aproximação foi na hora de reconhecer o corpo, mas depois acabou. Chegamos no crematório, assinamos os papéis e eles já levaram o caixão”, relata Fabíola. Prometeram que o resultado do exame de Antônio seria entregue 48 horas depois de sua morte, mas a data foi sendo postergada até esta quarta-feira, 9 de abril —mesmo dia em que a Prefeitura do Rio confirmou cinco mortes na Rocinha causadas pelo coronavírus, entre elas a de Antônio.

Logo depois, já na terça-feira, sua esposa apresentou febre alta enquanto fazia hemodiálise. Diante do que acabara de ocorrer com Antônio, os médicos decidiram então transferi-la para o Hospital Federal da Lagoa e interná-la. Além do problema renal, Maria Lúcia Moreira Mariano tem 63 anos e é diabética. “Ela ficou alguns dias em observação e com febre. No último sábado foi entubada na UTI”, conta Fabíola. Maria Lúcia também testou positivo. No mesmo dia, o filho mais velho do casal também foi internado e seu teste também apontou para a existência da doença respiratória.

A família não tem certeza como o contágio começou. Contudo, uma semana antes da morte de Antônio, seu filho mais velho começou a apresentar alguns sintomas e foi diagnosticado com dengue. Apesar de não morar com seus pais, o contato era próximo e diário. “Como era só dengue, a família estava cuidando do meu primo. Meu tio ia todo dia na casa dele. Então achamos que começou assim”, explica Fabíola.

Vulnerabilidade econômica

Antônio era natural da cidade cearense Sobral, a 230 quilômetros da capital Fortaleza. No início dos anos 1970, migrou para o Rio de Janeiro com seu irmão, o pai de Fabíola, para tentar uma vida melhor. Começaram trabalhando na obra do hotel Sheraton. Depois, quando os avós da manicure e seus outros tios já estavam no Rio, a família passou a vender produtos nordestinos em uma barraca do Largo do Boiadeiro. O pai de Fabíola voltou “para o norte”, mas Antônio permaneceu com os outros irmãos. Oficialmente aposentado, se dedicava nos últimos anos a vender biscoito Globo no calçadão da praia. Fabíola conta que, quando se recuperar, Maria Lúcia quer realizar o desejo de seu marido de ser enterrado em Sobral, como é tradição na família. Como seu corpo foi cremado, a ideia é espalhar as cinzas em algum lugar da cidade.

Enquanto isso não ocorre, Fabíola e sua família vão vivendo a pandemia de coronavírus como podem. A manicure deixou seus dois filhos, de 3 e 14 anos, na casa de sua mãe, em Duque de Caxias. Sem trabalho, se voluntariou para entregar comida e produtos de limpeza e higiene nas casas de outros moradores da Rocinha. Ela espera em breve receber a Renda Básica de Emergência aprovada pelo Congresso e pelo Governo na última semana. “Já recebo o Bolsa Família e estou esperando. Enquanto isso, vou vivendo com o que tem. As pessoas, os vizinhos, os amigos, são todos muito solidários. Se ganho uma cesta básica, divido com alguém que precisa”, conta.

Nascida e criada na Rocinha, Fabíola acredita que os moradores de favelas têm tido mais dificuldades para fazer a quarentena. “O que nos impede é que não temos meios financeiros, a maioria dos trabalhadores são informais”, argumenta. Ela também conta que a maior parte da circulação se dá ao longo do dia, quando as pessoas, “as mais saudáveis das famílias”, vão para a rua “fazer o que precisam fazer”. Segundo relatos dos últimos dias, a Rocinha viu a circulação em suas ruas aumentar. “A maior parte do comércio está fechado, mas não tanto como deveria estar”, explica.

Outro fator de dificuldade é o fato de que a Rocinha é uma área densamente povoada, com “casas coladas uma na outra, sem ventilação e com muita gente em pequenos cômodos”. Condições como essas, que fazem com que esta favela tenha um dos índices mais altos de tuberculose no Brasil, também transformam a comunidade em território fértil para o novo vírus. “Está todo mundo com dificuldade, todo mundo no desespero”, conta Fabíola.

O Rio de Janeiro é o segundo Estado, atrás apenas de São Paulo, com o maior número de casos confirmados da Covid-19. De acordo com o boletim do Ministério da Saúde desta quinta-feira, 9 de abril, são 2.216 casos registrados e 122 óbitos. A Rocinha teve seus quatro primeiros casos notificados no último domingo, mas nesta quarta a Prefeitura confirmou cinco mortes na favela causadas pelo coronavírus —e uma no Complexo de Manguinhos. O relatos se multiplicam pelas favelas cariocas.

De acordo com uma pesquisa da ONG Casa Fluminense, que utilizou dados do IBGE, cerca de 300.000 domicílios da Região Metropolitana do Rio tem mais de três pessoas dividindo um único quarto. Essa é a realidade de ao menos 11% das casas, ou o equivalente a 2.565 imóveis, na Rocinha.

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