Sem ações específicas, 86% dos moradores de favelas vão passar fome por causa do coronavírus
Pesquisa do Data Favela mostra que a pandemia já alterou a rotina de quase 100% das pessoas que vivem em comunidades. A maioria, trabalhadores autônomos
A pandemia do coronavírus já alterou a vida de 97% das 13,6 milhões de pessoas que moram em favelas em todo o Brasil. A maioria ―2 em cada 3 moradores― estão preocupados com a própria saúde, mas também com o impacto na renda durante o período de crise. Aliás, sete em cada dez famílias já viram a renda familiar diminuir nas últimas semanas por causa da interrupção da atividade econômica causada pelo novo vírus. Pior, se essas pessoas precisarem ficar em casa por até um mês, sem trabalhar, e cumprindo as recomendações da comunidade científica de distanciamento social, 86% teria dificuldade para comprar comida e outros itens básicos de sobrevivência.
Esses são alguns dos principais dados da pesquisa Data Favela/Instituto Locomotiva divulgada na terça-feira, 24 de março. O estudo realizou 1.142 entrevistas entre os dias 20 e 22 de março em 262 comunidades de todos os Estados da Federação. Foram ouvidos homens e mulheres com 16 anos ou mais, e a margem de erro é de 2,9 pontos percentuais. “Ouvimos o discurso de que a epidemia é democrática, que pega ricos e pobres da mesma forma. Mas a pesquisa deixa claro que não é assim, que existe uma parcela da sociedade que não tem poupança, que não tem recursos para manter seu padrão de vida caso não consigam trabalhar. É mais fácil fazer quarentena com uma geladeira cheia e uma casa confortável do que quando se mora em uma favela onde a geladeira está fazia, falta água e cinco pessoas moram num espaço de 20 metros quadrados”, resume Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva.
Ele destaca que as medidas de distanciamento social recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo próprio Ministério da Saúde devem ser cumpridas inclusive por aqueles que moram nessas comunidades populares, mas que o Estado deve garantir uma estrutura básica para essas pessoas e injetar dinheiro diretamente para essas famílias, trabalhadores e pequenos empresários. O trabalho é a principal fonte de renda para 71% dos moradores de favelas. Mas, ainda segundo a pesquisa, 47% dos entrevistados trabalham por conta própria ou são profissionais liberais, 10% estão desempregados e 8% trabalham sem carteira assinada. Apenas 19% dos moradores de favelas possuem contrato de trabalho formal. “Essa força de trabalho majoritariamente autônoma está fora da rede de proteção do Estado brasileiro”, explica Meirelles.
Os resultados dessa vulnerabilidade econômica já são sentidas pelas famílias. O estudo mostra que 86% dos trabalhadores da periferia já vivenciam a diminuição do movimento ou das vendas de seus locais de trabalho. A preocupação com o trabalho ou com o risco de perder o emprego acaba sendo inevitável para 74% das pessoas que estão ativas profissionalmente. Também é certo que 3 em cada 4 moradores estão muito preocupados com a renda, motivo pelo qual 8 em cada 10 famílias já estão cortando gastos para atravessar esse momento de dificuldades.
Entre aqueles que tem filhos em idade escolar, 84% das famílias viram as despesas aumentarem depois que deixaram de ir para a escola por causa da pandemia. Para 3/4 dessas famílias, ter os filhos em casa ao longo do dia também gera dificuldades na hora de sair para trabalhar e gerar renda.
Além disso, 7 em cada 10 famílias já viram sua renda familiar cair nas últimas semanas, enquanto que 78% dizem conhecer alguém que já está passando por dificuldades financeiras por conta da pandemia de coronavírus. No dia a dia, isso significa que o cuidado com a família seria prejudicado para a maioria, assim como o pagamento de contas e a alimentação. Sem renda, 72% dos moradores não conseguiriam manter o padrão de vida por tempo algum. E 86% teriam dificuldades para comprar comida e outros itens básicos se precisarem ficar em casa, sem gerar nenhuma renda, por até um mês.
“Essas pessoas não têm gordura para queimar, elas vendem o almoço para comprar a janta. Já possuem poucas condições econômicas de sobreviver com dignidade e sentem rapidamente qualquer efeito de uma crise”, explica Meirelles. “É preciso dizer que uma economia se recupera, mas vidas humanas não. Se os moradores das favelas fossem um Estado da Federação, seriam o quinto maior Estado do país. Há mais favelados que gaúchos no Brasil. Isso não é detalhe", destaca.
Ele acredita que, apesar de iniciativas da sociedade civil, apenas o Estado brasileiro teria condição de amenizar os efeitos da crise nas comunidades populares. “O Governo Federal prefere prefere brigar com governadores, com uma lógica de discurso eleitoral, ao invés de unir o país. Isso é uma politização do combate ao coronavírus que pode levar a dezenas de milhares de mortos e a uma convulsão social. O Brasil nunca precisou tanto de líderes como agora”, argumenta o presidente do Instituto Locomotiva.
Movimentos contra o coronavírus nas favelas
A pesquisa foi realizada para a Central Única das Favelas (CUFA), que criou o movimento #CUFAcontraovirus. De acordo com Celso Athayde, que preside a entidade, uma rede de lideranças comunitárias foi mobilizada em 5.000 favelas em todo o país —sendo 300 no Rio de Janeiro e 250 em São Paulo— e toda uma estrutura logística vem sendo erguida para entregar doações e realizar ações preventivas. Isso significa entregar desde alimentos até sabonete e produtos de limpeza que podem evitar a propagação do vírus. Para que isso seja feito, a CUFA vem pedindo a colaboração, através de seu site e de uma campanha de arrecadação, daqueles que podem ajudar financeiramente.
Além da CUFA, outras entidades e organizações estão engajadas em campanhas para remediar os efeitos do coronavírus nas favelas, especialmente através da distribuição de alimentos, produtos limpeza e higiene, entre outros itens básicos. Algumas das ações podem ser encontradas no Twitter a partir da hashtag #COVID19NasFavelas. O jornal comunitário Voz das Comunidades iniciou uma campanha de doação para atender os moradores do Complexo de Favelas de Alemão. Quatro organizações também iniciaram movimento similar para auxiliar os moradores do Jacarezinho, sob a hashtag #JacarezinhoContraOCoronavirus.
No Complexo de Favelas da Maré, a Redes da Maré também iniciou uma campanha de arrecadação de recursos, com o objetivo de atender a parcela mais pobre da população das comunidades —utilizando, para isso, os comércios e prestadores de serviços locais, afetados economicamente pela paralisia das atividades—, segundo explicou a fundadora da ONG, Eliana Sousa Silva, nesta entrevista ao EL PAÍS. Em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro, ao menos quatro organizações comunitárias se juntaram para criar o movimento #NaMinhaFavelaNão, com o apoio do coletivo África em Nós, para atuar nas comunidades locais, segundo informou o jornal Folha de S. Paulo.
Da mesma forma vem atuando as lideranças e grupos de voluntários em Paraisópolis, favela com mais de 100.000 moradores da cidade de São Paulo. “Sem um plano do governo focado especialmente na realidade das mais de 13 milhões das pessoas que vivem nas comunidades em todo o país, os mais pobres correm o risco de serem tratados, em breve, como os grandes vilões da pandemia”, afirmou Gilson Rodrigues, líder comunitário e presidente da União de Moradores e Comerciantes de Paraisópolis, em entrevista ao portal da BBC News Brasil.
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