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Isolamento vertical proposto por Bolsonaro pode acelerar contágios por coronavírus e comprometer sistema de saúde

Ministério da Saúde dribla resposta direta sobre tema e diz estudar “todas as alternativas”. Medida foi rechaçada por outros países, e especialistas alertam que desigualdade impede isolar grupos específicos

Duas mulheres desinfectam o metrô do Rio de Janeiro.
Duas mulheres desinfectam o metrô do Rio de Janeiro.RICARDO MORAES (REUTERS)

O presidente Jair Bolsonaro defendeu na última terça-feira amenizar as medidas restritivas para frear o avanço do coronavírus no Brasil e, assim, tentar desafogar a economia. A diretriz dele é de que o isolamento domiciliar seja recomendado apenas para pessoas comprovadamente infectadas, idosas ou que tenham alguma comorbidade prévia ―estes dois últimos integram o grupo que tem maior risco de evoluir para casos graves da Covid-19. A estratégia que à primeira vista pode até parecer factível para tentar amenizar os impactos já sentidos na economia, porém, pode ser uma “armadilha”. Por enquanto, o Ministério da Saúde não muda a recomendação de isolamento geral. Constrangidos, técnicos da pasta se limitaram a dizer que a proposta faz parte das “alternativas” estudadas permanentemente. Também no fio da navalha entre não confrontar diretamente o chefe e tentar não ser incoerente consigo mesmo, o ministro Luiz Henrique Mandetta chegou a dizer que alguns Estados podem ter adotado medidas precoces. Especialistas em saúde e entidades médicas, porém, alertam que retirar a recomendação do isolamento horizontal da população (aquele que não determina grupos específicos para permanecer em casa) pode acelerar o contágio e comprometer o sistema de saúde brasileiro mais rapidamente. Nesta quarta-feira (25), o número de mortos pela doença no Brasil chegou a 57.

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O vírus somos nós (ou uma parte de nós)

“Temos que melhorar esse negócio de quarentena, não ficou bom. Estamos iniciando a subida da curva [do aumento de casos] agora, mas temos que ter cuidado, porque a quarentena é um remédio amargo. Antes de adotar o fecha-tudo, podemos adotar medidas como a redução da mobilidade urbana ou a atuação em bairros, isolando primeiro algumas regiões, depois algumas cidades”, disse Mandetta, que fez questão de deixar claro que não abandonará a pasta. “Saio daqui na hora que acharem que eu não devo trabalhar, na hora que presidente achar isso, porque foi ele que me nomeou, ou se eu estiver doente”. Já o secretário-executivo do Ministério da Saúde, João Gabbardo, afirmou que o Governo se reunirá na quinta-feira com secretários estaduais para debater o fechamento dos comércios e escolas, mas não vai determinar a reabertura dos mesmos, como pediu Bolsonaro em seu pronunciamento.

A tentativa do Ministério da Saúde de seguir o plano atual de isolamento tem lastro na experiência internacional. Estudos sobre o comportamento da doença na China indicam que medidas drásticas relacionadas à circulação de pessoas foram fundamentais para frear a expansão da Covid-19. No início do mês, outros países (como por exemplo a Inglaterra) chegaram a considerar uma ideia semelhante à que Bolsonaro sugeriu, mas voltaram atrás antes de a implementarem. A compreensão tanto de gestores quanto de especialistas é a de que é impossível garantir que a população mais jovem que não esteja isolada isolada não terá nenhum contato com os grupos isolados até por conta da dependência entre eles no dia a dia. Portanto, afrouxar as medidas restritivas pode ajudar a acelerar o contágio e fazer com que muitas pessoas fiquem doentes ao mesmo tempo, comprometendo rapidamente o sistema de saúde.

“A ideia teórica do isolamento vertical é de que você podia deixar os jovens circulando. Eles se infectariam e poderiam ficar imunes. Mas não sabemos como isso funciona com a Covid-19 nem conseguimos garantir o isolamento exclusivo de um grupo específico”, alerta o médico Valdes Bollela, professor Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto. Se por um lado a doença é nova e os próprios pesquisadores ainda tentam compreender a transmissão do coronavírus por assintomáticos e mesmo se é possível se reinfectar, por outro parece impossível de que um país com as características sociais do Brasil consiga isolar completamente idosos e pessoas com comorbidades de seus familiares, já que este é o grupo que também costuma ser cuidado pelos familiares mais jovens.

“Você acha que se consegue separar todas as pessoas que são jovens das que têm mais de 60 anos? A ponto de garantir que em nenhum momento essas pessoas entrem em contato? Gente com HIV, diabetes e idosos que contam com seus familiares? Não consigo imaginar isso na vida real. Numa ideia teórica, é possível. Na prática, é uma armadilha”, afirma Bollela. Especialmente num país subdesenvolvido como o Brasil e com desigualdades sociais evidentes, é difícil garantir que pessoas mais jovens e crianças não terão contato com idosos. “No Brasil, muita gente depende justo dos cuidados dos filhos”, diz o médico. Ele destaca que mesmo um país mais rico como a Inglaterra considerou o isolamento vertical há cerca de 20 dias, mas desistiu por não considerar uma medida razoável para lidar com uma crise de saúde tão grave como esta que impacta o mundo inteiro.

Ainda que a estimativa do grupo de infectados que deve apresentar sintomas respiratórios graves seja de 20%, a quantidade absoluta de pessoas que precisará de cuidado hospitalar e de leitos de UTI é alta. Se o contágio continuar acelerado e muitas pessoas ficarem doentes ao mesmo tempo, o sistema de saúde pode colapsar, como o próprio ministro Mandetta já projetou: o risco alto de isso acontecer é em abril. O Brasil tem a vantagem de ter um Sistema Único de Saúde (SUS) robusto, mas países ricos já colapsaram diante do alto volume de doentes ao mesmo tempo. No Brasil, os hospitais já atuam para tentar diminuir o tratamento de pessoas com outras doenças e liberar leitos para pessoas com a Covid-19. Cirurgias eletivas e até transplantes estão sendo suspensos. Estádios começam a ser adaptados para receber leitos hospitalares e deixar as estruturas tradicionais para ampliar a capacidade de aumentar os leitos de tratamento intensivo.

“É irresponsável e cruel [afrouxar o isolamento] pensando na perspectiva do cidadão. Se acabar as vagas, quem precisar de atenção não vai ter. E não tem decisão judicial que possa garantir quando chega o colapso”, diz Bollela. O médico explica que o colapso acontece quando, mesmo com muitos recursos, não há insumos e força de trabalho suficiente para comprar e garantir a estrutura de atendimento hospitalar. E cita o exemplo da Coreia do Sul, que implementou testagem em massa e isolamento da população e tem conseguido enfrentar o coronavírus com menos sofrimento que países como a China, por exemplo, que foi o primeiro a enfrentar o coronavírus e precisou construir hospitais rapidamente. Hoje, todos os países enfrentam o problema da escassez global de insumos.

No Brasil, já existe uma quantidade grande de pessoas com a doença ―segundo o Ministério da Saúde, são 2.433 confirmados. “Tem uma quantidade absurda de pessoas graves. O Ministério da Saúde diz coisas opostas ao presidente Bolsonaro, e isso cria dúvidas e incertezas que podem levar as pessoas a tomarem decisões individuais que podem sair caro para elas, para os seus familiares e para a população em geral”, afirma Bollela.

Após a declaração do presidente Jair Bolsonaro minimizando a Covid-19 e defendendo isolar apenas idosos e pessoas com comorbidades, várias entidades médicas e de saúde se pronunciaram contra a proposição do presidente, já que o isolamento vertical contradiz o que vem sendo defendido por especialistas. A SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia), por exemplo, apontou que a pandemia é grave e afirmou estar preocupada com a fala de Bolsonaro por que as declarações podem dar a falsa impressão de que as medidas de contenção social são inadequadas. “Se a intenção foi acalmar, a reação da sociedade mostra que ele não alcançou seus objetivos. Você não traz esperança minimizando o problema, mas reforçando as soluções. Existe um perigo próximo, evidente, real e gravíssimo. Enfrentá-lo é prioritário", afirmou o presidente da Associação Paulista de Medicina, José Luiz Gomes do Amaral.

A Associação Brasileira de Climatério, por sua vez, reiterou a importância de que as determinações de afastamento social temporário emanadas pelas autoridades de saúde sejam observadas fielmente. A Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo e a Sociedade Brasileira de Hipertensão reforçaram que até o momento o isolamento é uma das medidas mais eficientes para combater a propagação da Covid-19.

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