Drenado por crise política forjada por Bolsonaro, Brasil fica no escuro quanto a avanço real do coronavírus
Um dia após atos pedindo intervenção militar, presidente recua de respaldo e diz não apoiar fechamento do Congresso e STF. Enquanto isso, Ministério da Saúde erra cifras sobre aumento de óbitos
Em meio a uma crise política forjada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que participou neste fim de semana de atos que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal e defendiam uma intervenção militar, o Brasil dá sinais de caminhar no escuro com relação ao real avanço de casos e mortes por coronavírus. Na tarde desta segunda-feira, o Ministério da Saúde divulgou um balanço em que confirmava 383 novas mortes pela covid-19 em 24 horas, mas cerca de uma hora depois corrigiu a informação e assegurou tratar-se de 113 novos óbitos registrados no período. O motivo do equívoco era um erro de digitação. Na tabela com o balanço diário, a pasta afirmou inicialmente que o Estado de São Paulo somava 1.307 mortes, mas o correto era 1.037. Assim, o balanço foi corrigido de 2.845 óbitos (7% de letalidade) para 2.575 (6,3% de letalidade). O número total de novos casos confirmados ficou em 40.581, isto é, 1.927 a mais que o dia anterior.
Desde que o Governo trocou o comando do Ministério da Saúde, na quinta-feira da semana passada, os dados sobre o avanço da covid-19 são atualizados sem que ocorra a coletiva de imprensa com a equipe técnica da pasta, prática que era comum durante a gestão de Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS). Nestas entrevistas, o informe diário sobre a crise era acompanhado de anúncios sobre decisões do Executivo federal para frear a pandemia no Brasil, além de explicações sobre a curva de crescimento de casos, os gargalos do SUS, o avanço ou atraso em relação aos desafios do Governo ante a crise, além das respostas às perguntas dos jornalistas. A ausência de explicações técnicas dificulta entender o comportamento do vírus no Brasil, como saber se a expansão de casos se deve à ampliação dos testes ou à queda da adesão do isolamento social, por exemplo.
O novo ministro, Nelson Teich, que assumiu em 16 de abril a pasta, defendeu a transparência das ações do ministério ao tomar posse, mas ainda não deixou claro se retomará a rotina das explicações técnicas. No sábado, sem agenda oficial, Teich viajou ao Rio de Janeiro (onde ele mora). Na tarde desta segunda-feira, sem que o compromisso constasse na agenda do ministro, ele se reuniu com o presidente Bolsonaro no Palácio do Planalto. Nesta segunda-feira, o único membro do primeiro escalão do Governo a participar da coletiva imprensa diária foi o ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, para falar sobre o pagamento da renda básica emergencial.
Teich, por sua vez, limitou-se a divulgar um vídeo de pouco mais de três minutos em que informava que o Governo estava adquirindo testes de coronavírus, que passariam de 24 milhões para 46 milhões de kits. O objetivo, explicou Teich, era realizar a testagem em massa da população, como fez a Coreia do Sul, para “entender a doença e sua evolução”, e assim “fazer um planejamento para revisão do distanciamento social”. O ministro ainda participou nesta segunda de uma reunião no Palácio do Planalto que estava fora da agenda oficial e deve ainda nomear pessoas para sua equipe ―o presidente chegou a dizer que também faria indicações.
Tensão política
O afrouxamento das medidas de distanciamento social decretadas por Estados e Municípios é uma das obsessões de Bolsonaro. Houve uma escalada da tensão política no país no último fim de semana, em que um número expressivo de bolsonaristas se juntaram em atos e carreatas com buzinaços em cidades como Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro.
Além dos pedidos pela reabertura dos comércios e retomada da atividade econômica, muitos manifestantes pediam o afastamento do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), e do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), além de uma intervenção militar ou um novo AI-5 —decreto de 1968 da ditadura que permitia o fechamento do Congresso e a suspensão dos direitos políticos dos cidadãos. No domingo, Bolsonaro foi até a sede do Exército em Brasília, se aproximou de manifestantes —sem máscara e tossindo, conforme mostram imagens— e fez um inflamado discurso de confronto com os demais Poderes da República. “Nós não queremos negociar nada. Nós queremos ação pelo Brasil”, afirmou o presidente, sob aplausos.
Nesta segunda-feira, o procurador-geral da República, Augusto Aras, indicado por Bolsonaro para o posto, pediu que o Supremo Tribunal Federal (STF) abrisse um inquérito para investigar as manifestações de domingo. Aras quer apurar se houve violação da Lei de Segurança Nacional por conta de “atos contra o regime da democracia brasileira por vários cidadãos, inclusive deputados federais, o que justifica a competência do STF”. As manifestações também geraram repúdio de ministros do STF, de Maia e outras autoridades. O presidente acabou recuando nesta segunda-feira: na saída do Palácio da Alvorada, ao se dirigir a jornalistas, afirmou não ser a favor de um AI-5 ou do fechamento do Congresso. “O pessoal geralmente conspira para chegar ao poder. Eu já estou no poder. Eu já sou o presidente da República", afirmou. Em seguida, falou: “Eu sou, realmente, a Constituição”.
Em outro momento, minimizou mais uma vez a pandemia de coronavírus no Brasil, assim como as mortes que estão ocorrendo: “Aproximadamente 70% da população vai ser infectada. Não adianta querer correr disso. É uma verdade. Estão com medo da verdade?”, disse. “Levaram o pavor para o público, histeria. E não é verdade. Estamos vendo que não é verdade. Lamentamos as mortes, e é a vida. Vai morrer”, acrescentou. E completou: “Essa é uma realidade, o vírus tá aí. Vamos ter que enfrentá-lo, mas enfrentar como homem, porra. Não como um moleque. Vamos enfrentar o vírus com a realidade. É a vida. Todos nós iremos morrer um dia.”
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