Cúpula dos Brics expõe falta de coesão do bloco e indiferença com crise da região
Em documento final, líderes não citam as crises da Venezuela, Bolívia e Chile, mas tratam do Iêmen, da Síria e da Coreia do Norte
Os Brics, o bloco formado pelas principais economias emergentes, definha no mesmo passo da desaceleração econômica e da disparidade entre os interesses de seus cinco membros. As conclusões da cúpula que reuniu em Brasília por dois dias o presidente brasileiro Jair Bolsonaro, o chinês Xi Jinping, o russo Vladimir Putin, o sul-africano Cyril Ramaphosa e o indiano Narendra Modi mostram a falta de coesão de um grupo nascido sob sua força econômica na época, há dez anos, de modo que o mundo não ocidental tivesse poder nos organismos multilaterais de acordo com seu peso real.
À perda de impulso do bloco nos últimos tempos, soma-se o seu anfitrião. Bolsonaro, que se afastou da tradicional diplomacia multilateral brasileira para selar uma aliança nacional-populista com Donald Trump, não mostrou interesse em transformar essa cúpula em uma plataforma de liderança regional. Discrepâncias sobre a Venezuela e, se ela deve ser representada ou por quem, resultou na não convocação da cúpula de líderes regionais que geralmente acompanha as reuniões do Brics. Esse governo brasileiro prefere as relações bilaterais, como o presidente Bolsonaro deixou claro no dia anterior, quando ele cortejou abertamente a China e queria distingui-la do resto dos emergentes. Para o bolsonarismo, os Brics são da época do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), seu grande antagonista.
Bolsonaro recebeu na capital brasileira outros quatro homens com quem ele compartilha sua posição, gênero e idade. Todos sexagenários. O brasileiro definiu a primeira grande cúpula internacional que está organizando como uma espécie de "encontro de velhos amigos". Juntos, eles governam países que representam um terço da economia mundial e cerca de 40% da população. Mas em poucas questões relevantes, eles concordam ou têm aspirações comuns. Além dos apelos genéricos para fortalecer a cooperação comercial entre os Brics e defender o multilateralismo, os discursos dos líderes refletiram as urgências de cada um deles.
A declaração final não incluiu nenhuma referência à crise que tem agitado o continente americano. Os negociadores preferiram evitar assuntos em que as divergências são maiores que as convergências. Não houve nenhuma palavra sobre Venezuela, cujo regime, de Nicolás Maduro, é apoiado por China e Rússia, enquanto o Brasil quer vê-lo substituído por Juan Guaidó. Tampouco mencionam a incerta situação na Bolívia, ainda que Putin tenha se somado a Bolsonaro no reconhecimento da nova presidenta interina, nem aparecem Chile ou diretamente a questão ambiental da Amazônia.
O documento menciona, por outro lado, os conflitos na Síria e no Afeganistão, a crise humanitária no Sudão, a guerra no Iêmen e a ameaça nuclear da Coreia do Norte. Os negociadores brasileiros explicaram que obedeceram porque esses são “conflitos de envergadura global”, ignorando as consequências regionais e globais, por exemplo, do êxodo venezuelano com seus quatro milhões de refugiados espalhados por grande parte do planeta. A situação na embaixada da Venezuela em Brasília, invadida na véspera por militantes aliados a Guaidó, voltou ao normal na noite de quarta-feira, quando eles deixaram o prédio após um incidente que pegou o governo de surpresa.
Na capital brasileira, Xi criticou o crescente protecionismo que está levando à desaceleração da economia mundial. O mandatário se referia à batalha que trava com os Estados Unidos e na qual Bolsonaro também não quer se posicionar. “Eu não estou envolvido nessa guerra comercial. O Brasil negocia com todos”, disse ele na quarta-feira. Mas no próximo ano, quando ocorrerá um novo encontro do G5, ele deve se posicionar.
Putin se referiu repetidamente à necessidade de a economia decolar "para melhorar a qualidade de vida de nossas sociedades", talvez ansioso pelas imagens que chegam do Chile, onde o descontentamento com a desigualdade resultou em um surto inesperado de protestos violentos. Apenas o primeiro-ministro Narendra Modi conclamou os seus parceiros a se envolverem plenamente com os Brics e, em um discurso que mais parecia um líder de negócios, os incentivou a estabelecer "metas mais ambiciosas, identificar prioridades" e definir prazos e objetivos a serem cumpridos.
A falta de consenso também fez com que os países do Brics não incluíssem na declaração qualquer menção à Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA, na sigla em inglês). Aliado do governo de Israel, o Brasil de Bolsonaro vetou iniciativas no sentido de ampliar o apoio a essa agência, ainda que defenda sua existência.
Sob a perspectiva brasileira, ao menos outros três pontos foram destacados na declaração de Brasília: 1. A defesa da soberania e o compromisso do desenvolvimento sustentável – é uma referência indireta às críticas sobre as crises ambientais que o Brasil enfrenta como a das queimadas na Amazônia ou a do derramamento de óleo na costa nordestina; 2. A aplicação adequada da ciência e tecnologia na agricultura, com o objetivo de evitar falsas barreiras sanitárias apenas para garantir mercados; 3. A crítica às medidas protecionistas e um pedido que se “evitem medidas unilaterais e protecionistas, que são contrárias ao espírito e às regras da OMC”.
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