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Divergências sobre Venezuela e Bolívia invadem a cúpula dos Brics

A reunião foi convocada com objetivos modestos e, ao contrário de edições anteriores, não será seguida por um encontro regional de chefes de Governo, por conta dos atritos na região

Da esquerda à direita: Cyril Ramaphosa, presidente da África do Sul; o premiê da Índia, Narendra Modi; o presidente da China; Xi Jinping; o presidente russo, Vladimir Putin; e o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, nesta quinta-feira, em Brasília, no encontro dos BRICS.
Da esquerda à direita: Cyril Ramaphosa, presidente da África do Sul; o premiê da Índia, Narendra Modi; o presidente da China; Xi Jinping; o presidente russo, Vladimir Putin; e o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, nesta quinta-feira, em Brasília, no encontro dos BRICS.SERGIO LIMA (AFP)

O Brasil acolhe a primeira grande cúpula internacional da era Jair Bolsonaro. O presidente substituiu sua frequente retórica anticomunista por elogios e pela promessa de “ampliar e diversificar a relação” bilateral com a China ao receber em Brasília, nesta quarta-feira, seu homólogo Xi Jinping. A eles se uniram o russo Vladimir Putin, o indiano Narendra Modi e o sul-africano Cyril Ramaphosa na cúpula dos BRICs, as cinco maiores economias emergentes do mundo, que continua na quinta-feira. A visita de Bolsonaro a Taiwan na campanha eleitoral e sua acusação de que a China estaria comprando o Brasil, que tanto irritaram Pequim, são capítulo encerrado. E, embora os BRICs se reúnam para falar principalmente de negócios, as crises da Bolívia e da Venezuela invadiram a agenda.

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O ultradireitista Bolsonaro recebeu Xi enquanto a embaixada da Venezuela em Brasília se tornava palco de uma disputa pelo controle da missão diplomática: representantes do líder oposicionista venezuelano Juan Guaidó, autoproclamado presidente do país, entraram de madrugada no edifício, que continuava nas mãos de funcionários leais a Nicolás Maduro. Um lembrete de que a defesa de um ou outro lado nos conflitos regionais ameaça a relação entre alguns membros dos BRICs, principalmente entre Bolsonaro, que apoia Guaidó e a mudança na Bolívia, e Rússia e China, que apoiam Maduro e Evo Morales. O Governo brasileiro se apressou em reconhecer a senadora opositora Jeanine Áñez como legítima presidenta interina da Bolívia na terça-feira, no lugar do exilado Morales.

Foi nesse contexto que começou a cúpula, cujo primeiro ato foi a confirmação de que a relação entre Brasil e China inaugura uma nova fase. Ambos sabem que precisam um do outro porque, como explica o analista Oliver Stuenkel, da Fundação Getulio Vargas e colunista do EL PAÍS, “a China não tem autossuficiência alimentar e energética e não deixará de depender do Brasil e da América Latina para as matérias-primas”. Ele acrescenta que a posição de Bolsonaro não é tão relevante para os chineses porque eles enxergam a muito longo prazo. De qualquer forma, o brasileiro fez uma espécie de ato de contrição ao afirmar diante de Xi que a China deve ser “tratada com o devido carinho, respeito e consideração” porque “todos nós, brasileiros e chineses, temos a ganhar”.

Antes, havia agradecido o fato de que, na polêmica pelos incêndios na Amazônia, em agosto, a China tenha defendido a soberania brasileira sobre a floresta tropical. Xi apostou em uma relação “baseada no respeito mútuo com o Brasil como plataforma para a América Latina, que juntamente com a China, são os principais mercados emergentes”. Os dois lados abriram caminho para a reconciliação em outubro, durante a visita de Bolsonaro a Pequim.

A cúpula dos BRICs foi convocada com objetivos modestos e, diferentemente de edições anteriores, não será seguida por uma reunião regional de chefes de Governo. O motivo é a Venezuela, segundo Stuenkel. “Bolsonaro queria convidar Guaidó, mas os outros [países dos BRICs] propuseram convidar todos os presidentes regionais, menos representantes da Venezuela. O Brasil recusou”, assinala. Isso, somado à suspensão do encontro do Fórum de Cooperação Econômica Ásia-Pacífico, que o Governo do Chile cancelou juntamente com a cúpula do clima devido aos protestos no país, esvaziou a viagem dos líderes da China, Índia, Rússia e África do Sul à América Latina.

Os caminhos da geopolítica e da economia, sempre tão entrelaçados, às vezes —apenas às vezes— divergem. A evolução recente dos BRICs é um exemplo da exceção que confirma a regra: depois da década dourada de crescimento do início do século, o grupo de países que há tempos tomou a dianteira do Ocidente na sala de máquinas da economia mundial —o ano decisivo foi 2007, quando os emergentes igualaram os países desenvolvidos com 50% do PIB global cada bloco— observa agora, à distância, aqueles anos de vinho e rosas em que parecia que o verbo que lhes dava nome logo ficaria ultrapassado. E vê como uma das atalaias da análise econômica mundial, a agência de classificação de risco S&P, põe em dúvida até mesmo a validade do já famoso acrônimo cunhado por Jim O’Neill no início dos anos 2000.

“A trajetória divergente de longo prazo entre os cinco países debilita o valor analítico dos cinco como um grupo econômico coerente”, afirmaram os técnicos da S&P em uma recente nota para clientes.

Os BRICs —quintessência dos emergentes— evitaram a maior ameaça que pesava sobre suas cabeças há dois anos, quando tentavam alçar voo e temiam que uma alta generalizada dos juros nos países ricos afetasse suas sempre voláteis moedas e encarecesse sua dívida em dólares. Naquele momento apareceu, no entanto, a ânsia protecionista de Donald Trump, um golpe que está afetando principalmente a China, grande alvo da fúria protecionista do republicano, que se somou à trajetória de desaceleração que levou o crescimento chinês ao seu ponto mais baixo em 27 anos. A Índia, por sua vez, sempre apontada como um dos possíveis beneficiados com a disputa entre as duas maiores potências, mal conseguiu tirar proveito até agora. Mas os dois são os grandes vitoriosos do grupo, com crescimentos que, embora desacelerados, provocam —com razão— inveja nos outros parceiros: apesar do esfriamento gradual, as duas economias fecharão 2019 com uma expansão próxima dos 6%.

A realidade é muito diferente na Rússia, no Brasil e na África do Sul, países que aproveitaram apenas parcialmente o boom das matérias primas, sofreram os rigores da recessão e da instabilidade política —Moscou foi a exceção nessa área— e só agora ensaiam uma tentativa de retomada, que está demorando muito mais do que o esperado. O preço do barril de petróleo, estagnado em torno dos 60 dólares (250 reais), não é uma boa notícia para a Rússia, um dos maiores produtores do mundo. E o Brasil, que na semana passada sofreu um fracasso retumbante no leilão do pré-sal, que prometia levá-lo ao Olimpo petrolífero —mas que só conseguiu atrair a atenção da estatal Petrobras, com uma pequena ajuda de duas empresas chinesas—, vê como as promessas de crescimento rápido feitas por Bolsonaro não se concretizaram, a menos de dois meses de ele completar um ano de mandato. Talvez, como assinalava recentemente a Bloomberg, O’Neill tenha se enganado e, em vez do Brasil e da África do Sul, tivesse sido mais certeiro com a Indonésia e o Vietnã, cuja trajetória se assemelha mais à esperada para os BRICs.

Em termos comparativos, entretanto, os males são menores: apesar de tudo, o bloco emergente soma, uma década depois de ultrapassar as potências ocidentais, 60% do PIB global e os BRICs, um terço do total. O consolo vem com a desaceleração das economias mais desenvolvidas, que vivem um estancamento que parece cada vez mais ser de longa duração, exceto por honrosas exceções —EUA, Austrália, Europa Oriental e, nos últimos anos, Espanha. E com o fato de que, apesar da estagnação econômica de seus membros não-asiáticos, seu peso nos órgãos de governança global não parou de crescer desde a popularização de um conceito, BRICs, cada vez mais próximo da obsolescência.

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