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“Somos todas Israa!”: a suspeita morte de uma jovem que despertou o feminismo palestino

Possível ‘crime de honra' de uma esteticista de 21 anos gera um movimento de protesto inédito entre as mulheres palestinas

Protesto para pedir investigação sobre a morte de Israa Ghrayeb, na segunda-feira, em Ramala.
Protesto para pedir investigação sobre a morte de Israa Ghrayeb, na segunda-feira, em Ramala.ABBAS MOMANI (AFP)
Juan Carlos Sanz

Israa Ghrayeb era esteticista, estudava inglês e narrava seu cotidiano pelo do Instagram. Como milhões de jovens em todo o mundo. Aos 21 anos, havia começado a sair com um rapaz em Beit Sahur, um povoado da Cisjordânia próximo a Belém. Sua irmã a acompanhou durante o primeiro encontro com o pretendente no mês de julho. Em um lugar público, como manda a tradição conservadora e patriarcal da sociedade palestina de clãs. Apesar do respeito aos costumes, morreu poucas semanas depois cercada da suspeita de um crime de honra. Sua morte não esclarecida desatou nos últimos dias um movimento de protestos sem precedentes entre as mulheres da Palestina.

A jovem publicou no Instagram imagens do primeiro encontro com seu acompanhante. Contava aparentemente com o consentimento de seus pais, mas alguns parentes se indignaram ao considerar que a honra da família havia sido manchada pelo vídeo publicado na rede social, que mostrava Israa com um estranho antes de formalizar a relação.

A jovem palestina morreu em sua casa em 22 de agosto, oficialmente por um ataque cardíaco. Duas semanas antes havia sido internada em um hospital de Belém com um quadro de lesões na coluna vertebral. Seus familiares afirmaram que havia sofrido uma queda acidental de uma varanda ao pátio da casa.

“Sou forte e tenho caráter. Se não fosse assim teria morrido ontem”, escreveu em uma publicação no Instagram quando estava internada no hospital. “Que Deus castigue qualquer um que quiser me machucar. Desejem que minha operação seja bem-sucedida”, pediu aos seus seguidores, de acordo com o relato da jornalista Amira Hass no jornal Haaretz.

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A operação não foi feita. Ao que parece, os médicos acreditavam que ela se recuperaria das lesões graças à sua juventude. Uma gravação que se tornou viral na Internet mostra um inquietante grito de ajuda, que foi atribuído à jovem. As investigações não puderam confirmar se essa foi sua última mensagem. Só se sabe com certeza que ela voltou para a casa da família, de onde saiu em um caixão.

Como outras 23 palestinas em 2018, e 18 em 2019 —de acordo com os dados da ONG Centro para a Assistência Legal às Mulheres—, a suspeita de um crime de honra e de um ato de violência de gênero ronda a morte de Israa. Os familiares se apressaram em explicar que a jovem tinha problemas psicológicos, mas as mulheres da Cisjordânia e Jerusalém Leste, territórios ocupados por Israel há 52 anos, dessa vez não se conformaram com a versão habitual.

O uso das redes sociais, que transformaram as relações entre os jovens do Oriente Médio desde a primavera árabe de 2011, e o nível de educação das mulheres palestinas —entre os mais elevados da região, com 13% de formadas universitárias, contra 9% de homens— parecem estar por trás da emergência dos inéditos protestos desatados pela morte de Israa.

Israa Ghrayeb, em uma imagem de Facebook.
Israa Ghrayeb, em uma imagem de Facebook.

Centenas de mulheres se manifestaram para exigir uma investigação dos fatos em Ramallah, diante da sede da Autoridade Palestina, assim como várias dezenas em Belém e Jerusalém Leste. Nas manifestações criou-se o lema “Somos todas Israa Ghrayeb!”, que também virou hashtag.

Após os protestos, polícia palestina iniciou as investigações sobre a morte de Israa. O primeiro-ministro, Mohamed Stayyeh, afirmou que vários suspeitos foram presos, ainda que não tenha revelado se são parentes, e disse que foram feitos “testes de laboratório” para identificar os culpados, de acordo com a agência France Presse.

O protesto foi além do caso de Israa. O incipiente movimento feminista palestino exige também uma reforma do Código Penal de 1960, herdado da Administração jordaniana, em que a “defesa da honra” é considerada uma circunstância atenuante em caso de homicídio.

Um crime excepcional, à margem do feminicídio?

“O conceito de crime de honra serve para validar a narrativa de que se trata de um delito excepcional, à margem do feminicídio; de uma questão do Oriente Médio e da Ásia”, alerta a analista Yara Hawari, do centro de reflexão palestino Al Shabaka, em Al Jazeera. “As mulheres morrem em todo o mundo pelas mãos de homens que invocam a ideia de ciúmes e desonra em uma exibição de masculinidade tóxica (...) no contexto de uma violência estrutural do patriarcado”. “Na Palestina”, conclui Hawari, “há poucos mecanismos institucionais e legais para proteger as mulheres”.

Os hospitais não deram o alerta pelos indícios de violência de gênero sobre Israa Ghrayeb e a polícia não agiu de acordo em um caso de morte não esclarecida. A invocação de honra familiar só aparece em 10% dos supostos ataques contra as mulheres palestinas, segundo um estudo da ONG de defesa dos direitos humanos Al Haq datado de 2014.

A morte da jovem esteticista caminhou, entretanto, na contramão da lei do silêncio que ampara a violência de gênero na sociedade palestina. As mulheres fizeram com que sua voz fosse ouvida com marchas diante do Governo palestino e até nas ruas da parte oriental de Jerusalém, de população majoritariamente palestina, onde a polícia israelense não costuma tolerar manifestações.

As mobilizações para honrar sua memória emergiram com força inédita entre as mulheres da sociedade civil palestina, cujas exigências de igualdade e reconhecimento são postergadas na Cisjordânia —e sepultadas na faixa de Gaza, sob hegemonia islamita— diante da prioridade nacional de enfrentamento à ocupação e ao bloqueio israelense e o esforço de construção de um Estado próprio.

Muitas palestinas parecem ter se cansado de esperar com as suspeitas sobre a morte de Israa.

“Tenho que cancelar todas os meus compromissos para os próximos meses porque minha saúde não me permite”, escreveu do hospital em sua conta do Instagram. “Se a operação for um sucesso aviso a todos”, se despediu, “mas agora tenho que cancelar tudo”.

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