O retorno do goleiro Bruno, entre a ressocialização e o cinismo
Atleta condenado pelo assassinato de Eliza Samudio é novamente contratado por um time de futebol enquanto cumpre pena em regime semiaberto
Pela terceira vez desde que foi preso, em 2010, o goleiro Bruno Fernandes de Souza aceitou proposta de trabalho para voltar ao futebol. Nesta semana, o Poços de Caldas anunciou contrato com o atleta condenado pelo assassinato da modelo Eliza Samudio. Ele cumpre pena de 20 anos e nove meses de prisão em Varginha. Como progrediu para o regime semiaberto, em julho, pode trabalhar durante o dia e negociar com a Justiça permissão para participar de treinos e jogos fora da cidade.
Em 2014, Bruno já havia sido contratado pelo Montes Claros, quando ainda estava detido em regime fechado. Não conseguiu liberação e nunca chegou a entrar em campo pelo clube. Mas, três anos depois, beneficiado por um habeas corpus, ganhou nova oportunidade no Boa Esporte, onde disputou cinco partidas e sofreu quatro gols pela segunda divisão de Minas Gerais. A jornada durou menos de um mês, já que o STF determinou seu retorno à prisão enquanto aguardava julgamento de recurso.
No Montes Claros, Ville Mocelin, dirigente responsável pela contratação do goleiro, fechou negócio por entender que Bruno poderia mudar o patamar do time que planejava disputar a terceira divisão de Minas. Visando lucrar com o jogador, mandou confeccionar camisas estampando nome e autógrafo do goleiro, indiferente aos protestos de grupos feministas da cidade. “Se ele errou, já pagou pelo erro. Não cabe a mim julgar”, disse o cartola. Na época, Bruno tinha cumprido apenas um 1/5 da pena imposta pela Justiça.
Já no Boa, a principal justificativa era o possível retorno esportivo que o goleiro poderia dar ao time. “Eu não tenho que comentar se o Bruno é culpado ou inocente. O que interessa nesse momento é a parte técnica. E ele vai agregar bastante à nossa equipe. Estamos pensando no ser humano”, afirmou o diretor de futebol Roberto Moraes. O Boa se apoiava em um acordo de parceria com o presídio de Varginha, que anos antes havia destacado cerca de 50 presos para trabalhar nas obras de reforma do estádio em que o clube disputa suas partidas, para vender a ideia de que a incorporação de Bruno se encaixava num plano mais amplo de ressocialização.
Porém, a apresentação com pompas do reforço, como se fosse um popstar, e não um reeducando condenado por crime hediondo, expôs a estratégia de capitalizar a visibilidade pela presença do goleiro. Apesar da ameaça de patrocinadores de retirar investimentos, o time manteve suas receitas comerciais e ainda aumentou a média de público ao longo da curta passagem de Bruno. No fim das contas, a diretoria avaliou que, passada a repercussão negativa, o saldo da enorme exposição midiática foi proveitoso para o clube.
Agora, o Poços de Caldas, da terceira divisão mineira, usa de pretexto semelhante para contar com Bruno. “Somos um clube que visa o lado social, um projeto novo no mercado”, diz o presidente Paulo César da Silva. No entanto, o time conhecido como Vulcão não integra nenhum programa de ressocialização nem compõe seu quadro de funcionários com outros apenados em situação semelhante à do goleiro no sistema prisional. O foco é o desempenho em campo, somado a uma ambição por visibilidade bastante questionável.
Em que pese a gravidade do crime pelo qual foi condenado, Bruno sempre teve portas abertas em clubes menores. O Barbalha, que disputará a primeira divisão do Campeonato Cearense e a Copa do Brasil no ano que vem, já aventa a possibilidade de contratá-lo para a próxima temporada, admitindo abertamente o interesse de atrair mídia e holofotes às custas do goleiro. Por outro lado, nem o time do Ceará nem qualquer outro que o contratou após a prisão jamais cogitou desenvolver, por exemplo, em paralelo ao suposto esforço de ressocialização, uma campanha de incentivo ao esporte feminino ou ações de prevenção à violência contra a mulher.
No regime semiaberto, Bruno tem direito a oportunidades de trabalho e, inclusive, de retomar sua antiga profissão. Do mesmo modo, clubes de futebol podem abrigar projetos de reintegração de detentos. Mas a frieza dos dirigentes que assimilam a contratação do goleiro como jogada de marketing, confundindo ressocialização com cinismo, revela a banalidade do feminicídio num meio dominado pelo comando masculino. O tratamento de estrela dedicado a Bruno tira o peso da consciência social em favor da finalidade econômica.
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