_
_
_
_
_

Após sete meses, Damares não gastou um centavo com a Casa da Mulher Brasileira

Apesar de orçamento de mais de 13 milhões de reais, ministra não desembolsou recursos para o programa de atendimento a mulheres vítimas de violência

Valter Campanato/Agência Bras

Com 13,6 milhões de reais reservados no orçamento deste ano, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) de Damares Alves não gastou, até hoje, nenhum centavo com a construção da Casa da Mulher Brasileira, uma das principais iniciativas do Governo federal para o enfrentamento da violência contra a mulher no Brasil. Elogiado por especialistas pela segurança e rapidez de acesso das vítimas à rede de proteção social, o programa prevê a implantação de centros de atendimento multidisciplinares para mulheres vítimas de violência em 25 capitais brasileiras – atualmente, apenas cinco estão abertos.

Desde que assumiu, Damares vem afirmando que o combate à violência contra a mulher é prioritário em sua gestão, mas, apesar de contar com orçamento para o programa, já em abril ela declarou ser impossível para o ministério manter a Casa da Mulher Brasileira. Segundo a apuração da Agência Pública com base em dados do próprio Governo federal, após mais de sete meses de Governo Bolsonaro, nada foi executado do orçamento aprovado em 2018 com a participação da equipe de transição do atual presidente. Os repasses para manutenção – com verba de 1,3 milhão de reais reservada no orçamento – também não foram feitos. Se, a partir de agora, o Governo quiser executar tudo que está orçado para este ano, seria preciso empenhar ao menos 2,7 milhões de reais por mês para construção dos espaços.

Mais informações
Associação de juristas evangélicos fundada por Damares Alves amplia lobby no Governo
Os pastores de Trump chegam a Brasília
Sheldon Adelson, o bilionário que mira cassinos no Brasil

A Casa da Mulher Brasileira faz parte de um programa lançado por decreto em 2013 pela então presidente Dilma Rousseff (PT) com o nome de “Mulher: Viver Sem Violência”. O objetivo era expandir a rede de serviços voltados para as mulheres vítimas de violência e promover a integração entre eles, através de ações para além da implementação das casas, como a ampliação da central telefônica Ligue 180 e campanhas de conscientização sobre o tema. A execução do programa ficou a cargo da Secretaria de Políticas para as Mulheres, à época com status de ministério – hoje é apenas um departamento dentro da pasta de Damares. A mudança ocorreu ainda durante o Governo de Dilma Rousseff.

O projeto propõe que a vítima de violência disponha, em cada Casa, de Delegacia de Defesa da Mulher, Defensoria Pública, Promotoria, Juizado e Vara especializados, equipes de psicologia e assistência social, alojamento de passagem, brinquedoteca e serviços de promoção da autonomia econômica. Os recursos para construção da Casa partem da União, que também repassa verbas para a manutenção dos espaços durante seus primeiros 24 meses. Depois, município ou Estado precisa assumir o gasto.

Esta não é a primeira vez que o Governo federal descumpre o orçamento para a Casa da Mulher Brasileira. Em 2017, durante Governo de Michel Temer (MDB), apesar de 1,4 milhão de reais empenhado para a construção de novas casas, nada foi liquidado, ou seja, efetivamente pago a quem executaria os serviços – o Governo bancou apenas os gastos de manutenção das casas já construídas. Em 2016, último ano de Dilma Rousseff e início do Governo Temer, apenas 13,32% do total orçado para a construção das casas foi gasto. Em 2018, a execução foi alta, de 75,76%, contudo o valor orçado já havia sido reduzido mais de 15 vezes: se inicialmente o Governo teria mais de 26 milhões de reais para a construção das casas, o orçamento final foi o mais baixo da série, de apenas 1,7 milhão de reais.

Procurado pela Pública, o MMFDH informou que está reformulando o projeto da Casa da Mulher Brasileira para adequá-lo à “realidade orçamentária do país”. Explicou que pretende utilizar parte da verba destinada à construção de novas casas em um projeto menos custoso. A pasta comunicou também que modificará o decreto de instituição do programa para que seja possível “instalar casas em espaços cedidos ou locados” em vez de construí-las. De acordo com o ministério, hoje cada um dos centros de atendimento demanda 13 milhões de reais para ficar pronto e, na nova proposta, sairia a partir de 823 mil reais.

A Casa da Mulher Brasileira em Campo Grande é umas das poucas abertas ao público
A Casa da Mulher Brasileira em Campo Grande é umas das poucas abertas ao públicoReprodução

Questionamos também o ministério sobre um pacto, lançado neste mês por Damares, para a implementação de políticas públicas de proteção para mulheres, assinado por representantes do Governo – entre eles o ministro Sergio Moro – e do Legislativo e pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli. De acordo com o MMFDH, estão sendo criados grupos de trabalho sobre o tema, sendo a “jornada de trabalho de promoção da segurança e defesa da mulher uma das primeiras ações”, sem detalhamento do que a medida significa.

De 25 casas previstas, cinco prestam atendimento

A construção das casas entrou como meta no Plano Plurianual 2016-2019, que determina as políticas públicas prioritárias para o Governo federal no período. O documento estabelece que 25 capitais brasileiras devem recebê-las até o fim deste ano, mas atualmente apenas cinco estão abertas ao público: Campo Grande, São Luís, Fortaleza, Curitiba e Boa Vista – esta última enfrenta problemas estruturais, segundo o próprio Governo de Roraima, mas ainda assim presta atendimento.

A Casa de Brasília, inaugurada em 2015, foi embargada parcialmente em 2017 e de forma definitiva em 2018 porque o prédio ameaçava desabar – o MMFDH informou que “está sendo construído um acordo para que a obra seja recuperada e os serviços continuem sendo prestados em outro local”. Na época da construção, o Governo federal transferiu 4,5 milhões de reais para a estrutura. O convênio de manutenção do serviço previa um repasse anual de 13,7 milhões de reais. Neste ano, segundo a administração da Casa, nada foi repassado. Já a de São Paulo, apesar de pronta, ainda não foi inaugurada – de acordo com a prefeitura, a previsão é que comece a funcionar neste semestre.

“Um sonho” de atendimento

Quando a Casa da Mulher Brasileira foi idealizada, Eleonora Menicucci era ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres. Ela lembra que o projeto tinha o objetivo de cumprir uma das determinações do artigo 8º da Lei Maria da Penha: a “integração operacional” do Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública a áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação como diretriz de políticas de combate à violência doméstica e familiar. “Nós vimos que as redes não estavam respondendo à altura por causa do aumento das violências e as mulheres continuavam ainda com a via- crúcis em busca do serviço, então propusemos essa política”, explica.

Uma iniciativa de El Salvador serviu de inspiração: o Ciudad Mujer, projeto criado em 2011 pela advogada brasileira Vanda Pignato, ex-primeira-dama do país. O programa permitiu a abertura de centros que reúnem serviços públicos de atendimento às mulheres em áreas desde saúde a cooperativas de crédito – hoje, existem seis deles espalhados pelo território salvadorenho. No início de 2013, Eleonora Menicucci viajou a El Salvador para visitar os espaços acompanhada de Aparecida Gonçalves, à época secretária nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, para conhecer o projeto.

A facilidade de acesso da mulher à rede de assistência reunida em um único espaço é “um sonho” para especialistas no tema, como Wânia Pasinato, consultora da ONU Mulheres, que há mais de 20 anos faz pesquisas em justiça criminal e violência contra a mulher. “A proximidade entre uma equipe psicossocial, a Delegacia da Mulher, a Defensoria Pública e o juizado faz com que pelo menos o trâmite inicial ocorra mais rapidamente. Isso dá mais segurança às mulheres”, explica a socióloga, pós-doutora pelo Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, da Unicamp.

Wânia destaca que a agilidade e abrangência do acolhimento são cruciais porque, quando as vítimas tomam a decisão de buscar ajuda institucional, “já passaram por muitos processos internos de dúvida, medo, insegurança”. Outro ponto importante é que o espaço integrado favorece o compartilhamento de informações entre os serviços. “Ela [a Casa] criou a possibilidade de que a rede fosse também uma estrutura de circulação dos documentos relacionados ao caso da mulher [atendida] e de informações relativas a esse caso. Produzir estatísticas, ter dados e criar indicadores é fundamental para que se possa entender melhor não só a violência, mas também onde estão ocorrendo as falhas, que são inegáveis, na resposta para as mulheres e na aplicação da Lei Maria da Penha.”

Campo Grande: primeira e referência

Em visita à Casa da Mulher Brasileira de Campo Grande realizada em 28 de junho, a ministra Damares Alves elogiou o trabalho: “É um trabalho reconhecido no mundo”, disse na ocasião
Em visita à Casa da Mulher Brasileira de Campo Grande realizada em 28 de junho, a ministra Damares Alves elogiou o trabalho: “É um trabalho reconhecido no mundo”, disse na ocasião

Em Campo Grande, onde fica a mais antiga e uma das únicas cinco casas abertas, o caso de Letícia*, de 33 anos, mostra como o programa funciona quando bem executado. No fim de julho, ela foi agredida com um soco pelo ex-marido, que havia ido até sua casa para buscar o filho do casal, de 4 anos. A violência física foi precedida por um longo período de ataques verbais e psicológicos que culminou na separação do casal.

Letícia, moradora de Campo Grande, procurou a Casa da Mulher na mesma noite em que sofreu a agressão. Passou pela triagem, foi atendida por uma psicóloga e de lá seguiu para a Delegacia da Mulher, onde registrou o boletim de ocorrência. Por último, foi encaminhada à Vara Especializada, que lhe concedeu uma medida protetiva contra o ex-companheiro. “Me disseram: ‘Tem que denunciar, tem muitas mulheres sofrendo violência porque não denunciam’. Explicaram tudinho para mim, me deixaram bem tranquila”, conta a dona de casa. A medida protetiva também tem cumprido seu papel. “Só dele não ficar me ligando, me mandando mensagem, vindo aqui na minha porta me ofender, para mim, já é um alívio”, diz.

Seguindo o modelo da época da implantação do projeto, ainda sob os auspícios da Secretaria de Políticas para as Mulheres, uma servidora do atual Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos é responsável pela coordenação geral da Casa. Tai Loschi, que desempenha esse papel em Campo Grande, diz que a atribuição mais importante do cargo é organizar as reuniões mensais do colegiado gestor da Casa, formado por representantes da prefeitura, Governo do estado, Polícia Militar e Patrulha Maria da Penha, além de delegada, juíza, defensora pública e promotora. “É uma reunião democrática e horizontal, porque aqui todo mundo tem suas diretrizes, mas temos que andar juntos. As reuniões do colegiado são justamente para afirmar a horizontalidade dos serviços”, explica. De acordo com ela, todas as decisões relativas ao local dependem da deliberação dos integrantes do colegiado.

A Casa da Mulher em Campo Grande é referência nacional na prestação do atendimento integral às mulheres vítimas de violência. De fevereiro de 2015, quando abriu, até o último mês de junho, foram registrados ali mais de 32 mil boletins de ocorrência, concedidas mais de 14,8 mil medidas protetivas e 49,3 mil atendimentos foram feitos pelo Ministério Público do estado. Neste ano, autoridades de Roraima – cuja capital já abriga uma Casa –, Piauí e Alagoas visitaram o serviço para observar como funciona.

Embora funcione há quatro anos e meio, a Casa ainda se mantém com dinheiro do Governo federal. A prefeitura de Campo Grande precisava utilizar os aproximadamente 9,5 milhões de reais previstos em convênio até dezembro de 2016, mas precisou renegociar o prazo por quatro vezes, o que não implicou o repasse de mais verbas, segundo a própria prefeitura. Depois de junho de 2020, nova data-limite para execução dos recursos da União, o município deverá assumir os gastos com manutenção – limpeza, locação de veículos e alimentação para mulheres abrigadas, entre outros –, além das despesas com as quais já arca, como água, luz, telefonia e recursos humanos.

Desde maio, a Casa tem recebido apoio da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) através do Observatório sobre Violência contra a Mulher. Em fase de implantação, ele é fruto de um acordo de cooperação com a prefeitura de Campo Grande e pretende monitorar e analisar dados sobre violência contra mulher no município, promover ações de prevenção e formação para gestores, pesquisadores e comunidade. Segundo as professoras Ynes da Silva Félix e Jacy Correa Curado, coordenadora e vice-coordenadora do Observatório, para continuar “sendo referência e exportando know-how em tecnologia social de atendimento à violência contra a mulher, a Casa “deve ser alvo de investimento e boa gestão pública”, como vem ocorrendo em Campo Grande.

*O nome verdadeiro foi preservado para proteger a identidade da fonte

Reportagem originalmente publicada na Agência Pública

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_