O farol de Biarritz e o simbolismo da política internacional
Respostas atravessadas de um Governo medíocre ajudaram a cortar canais de comunicação e, ao longo de sete meses, Bolsonaro acumulou incêndios diplomáticos
Nos dias que antecederam a chegada dos líderes à cúpula do G7, em Biarritz, o Governo da França mandou uma ordem apressada aos organizadores. O jantar de abertura do encontro, no sábado pela noite, precisava mudar. O lugar escolhido não era um restaurante de luxo. Mas o farol no pontal de Saint-Martin, no sofisticado balneário de Biarritz.
A torre, que orgulhosamente resiste às tempestades do mar, me fez lembrar um conto de Mario Benedetti sobre “aquele farol que gostava de sua tarefa”. Não apenas por ajudar os barcos. Mas também por entrever, “com astuta intermitência, a certos casais que faziam e desfaziam amor em discretos refúgios”.
“Aquele farol estava incuravelmente otimista e relutante em trocar o seu alegre cargo de iluminador por qualquer outro”, dizia o poeta. “Ele imaginava que a noite não poderia ser noite sem a sua luz”.
Ao optar pelo farol, o presidente da França, Emmanuel Macron, recorreu de forma pretensiosa ao simbolismo na política internacional. Seria ali que os líderes se reuniriam para olhar ao futuro, rompendo a cegueira que a névoa das incertezas internacionais está gerando.
Mas o farol foi sequestrado, assim como seu objetivo. Fragilizado domesticamente e acusado de manter uma política ambiental pouco ambiciosa, Macron saiu em busca de uma Governo ainda mais frágil. Encontrou o Brasil de Jair Bolsonaro. Aliou um tema de repercussão global e, com uma foto antiga sobre o desmatamento, organizou a introdução do assunto amazônico em sua agenda como uma espécie de recurso para salvar seu próprio evento. E sua imagem.
A intermitência do farol e seu sequestro político, porém, não esconde outra realidade: a da transformação do Brasil em pária internacional e a crise ambiental que, sim, o país atravessa. Respostas atravessadas de um Governo medíocre ajudaram ainda a cortar canais de comunicação e, ao longo de sete meses, Bolsonaro acumulou incêndios diplomáticos em diferentes partes do mundo.
Internamente, Rubens Ricúpero, ex-ministro do Meio Ambiente, listou em poucas linhas o que ocorreu no Brasil desde janeiro de 2019.
“Desde o começo, o Governo Bolsonaro intimidou os fiscais, desmoralizou a fiscalização ao denunciar o que chamou de “indústria das multas”, quando é mais sabido que mais de 90% das multas nunca são pagas”, escreveu. “Em seguida, afastou os funcionários de carreira e nomeou para dirigir o IBAMA e o Instituto Chico Mendes oficias da PM de São Paulo que prosseguiram o trabalho do desmantelamento”, alertou. “Tanto o presidente quanto o antiministro (Ricardo Salles) criticaram uma medida estabelecida em lei: a destruição dos equipamentos dos madeireiros apanhados em flagrante de crime ambiental. Depois da crítica, o antiministro chegou ao desplante de se deslocar para realizar visita aos madeireiros”, insistiu.
“O Governo decidiu não fornecer mais a escolta da Polícia Federal para proteger os fiscais em missões perigosas contra criminosos fortemente armados. Esses atos representam política deliberada de destruição da floresta, sem mencionar a polêmica de desmoralização do INPE e demissão de seu respeitado diretor”, completou.
Mas algo substancial ocorreu nos últimos dias. O Governo não é mais apenas criticado nos corredores do poder. Pelas ruas das cidades europeias, o assunto se transformou em um tema recorrente. Em Genebra, me dei conta nesta semana que a atual crise gerada pela Amazônia havia levado a pessoas que sequer sabem exatamente onde fica o Brasil um novo nome para competir com a popular impopularidade de Trump: Jair Bolsonaro.
Em protestos diante do consulado do Brasil em Genebra, jovens de colégios suíços admitiam que as imagens da floresta em chamas os tinha feito descobrir Djair Bolsonarro…e sua vulgaridade política. Nos próximos anos, uma nova geração será formada com uma imagem desgastada do Brasil.
Entre os resultados dessa crise podem estar perdas econômicas reais. E era justamente isso que esperavam grupos protecionistas. Hoje, dificilmente um parlamentar europeu terá a coragem política de votar a favor da ratificação de um tratado de comércio com o Brasil, sob o risco de ver seus eleitores desaparecerem nas próximas eleições.
O Governo se apressou a tentar mostrar que a crise havia sido construída por uma estratégia internacional de “inimigos do Brasil” para afetar a sua imagem e, indiretamente, suas exportações. Claro que isso também ocorreu. O problema é que, agora, esses protecionistas encontraram argumentos válidos e que não vão convencer apenas seus negociadores comerciais. Mas consumidores e cidadãos comuns de seus países. Enfim, aqueles com poder de voto.
O Governo Bolsonaro também deu uma mão a seus inimigos ao culpar os produtores agrícolas pelos incêndios. “Merci”, disseram muitos deles pelo campo francês, com um sorriso no canto do lábio.
Seja como for orquestrada o uso político do incêndio, o sequestro do farol de Biarritz não conseguirá cegar o mundo sobre a crise brasileira. Nos corredores do poder ou nos ônibus das grandes cidades, o Governo brasileiro já perdeu a batalha pelos “corações e mentes” pelo mundo. Mas o mais dramático é que perdeu para si mesmo.
O farol, como no conto do poeta, provavelmente não conseguiu dormir numa noite de tempestades em que ficou sem luz para dar seu espaço aos pretensiosos líderes internacionais. Manipulado por uns e incapaz de mostrar o caminho para aqueles que estão 8.000 quilômetros de distância dali, na América do Sul, o modesto ciclope se fechou. E “chorou duas ou três lágrimas de pedra”.
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