Kristen Roupenian: “É perigoso ignorar que não controlamos nosso desejo”
Estrela literária graças a um conto viral sobre o 'Me Too', estreia com um livro sobre o sexo como jogo de poder. A escritora americana chega ao Brasil para participar da Flip
Kristen Roupenian se transformou em estrela literária graças a um fenômeno viral, protagonizado por seu conto Cat Person no final de 2017. Todas as publicações do planeta tinham rejeitado o conto, até que uma mudança no ambiente cultural fez com que ele fosse parar nas páginas de uma bíblia intelectual como a revista The New Yorker. A história assinada por essa autora desconhecida, nascida em 1981 na costa de Massachusetts, nos EUA, falava do desastroso encontro entre uma garota de 20 anos e um homem de 34. Foi escrita meses antes da eclosão do movimento Me Too, mas se antecipou a todos os seus debates: as relações sexuais como jogos de poder, o desequilíbrio congênito com que homens e mulheres chegam a esse campo de batalha, o consentimento e suas áreas cinzentas. Confundido com um texto autobiográfico, o conto dividiu seus leitores em dois grupos: a favor ou contra Margot, sua protagonista, uma universitária sem muita vontade de ir para a cama com seu indesejável pretendente, mas que acabou fazendo isso para não parecer “caprichosa ou malcriada, como se tivesse pedido algo em um restaurante e devolvido em seguida”.
Um ano e meio depois, Roupenian continua sem entender o que aconteceu com seu conto, que se tornou a obra de ficção mais lida na história da revista americana. Ela chega ao Brasil para participar nos próximos dias da Feira Literária Internacional de Paraty (Flip), que acontece entre os dias 10 e 14 de julho. “O viral é sempre um mistério”, diz a escritora, de sorriso largo e olhar límpido, no encantador hotel parisiense onde termina a turnê europeia de apresentação de seu primeiro livro, You Know You Want This: “Cat Person” and Other Stories, lançado no Brasil pela Companhia das Letras com o título de Cat Person e Outros Contos. “Lembro menos do Me Too do que do desejo de discutir coisas sobre as quais nunca falávamos, porque achávamos que não era possível mudá-las. Havia raiva e frustração no ambiente. Minha história se beneficiou dessa energia”, afirma.
Nas redes, muitos a trataram como uma porta-voz histérica de um suposto feminismo radical, embora baste abrir seu livro para entender que as mulheres também não ficam bem na fita: são tão egoístas e pérfidas quanto os homens. No conto que lhe deu a glória, Roupenian toma partido por sua narradora, mas em sua estreia literária a guerra dos sexos termina em empate técnico: todo mundo é igualmente monstruoso. Seu conto mais famoso é, como admite a própria autora, “um caso à parte” dentro de sua produção. É a história menos perversa e brutal, o que diz bastante das demais. Quase todas foram escritas antes da fama, exceto duas que acrescentou depois. São relatos sentimentais que se leem como contos de terror, como se Roupenian fosse um mistura impossível entre Stephen King e Lena Dunham. Falam de uma mulher que tem a fantasia de morder seu colega de escritório. De um casal que transforma a um bom amigo em seu escravo sexual. De um homem que precisa imaginar que esfaqueia suas amantes para atingir o orgasmo. E de uma garota carcomida por um parasita que ensanguenta sua epiderme, a não ser que seja tudo fruto de sua imaginação.
Mal-estar e raiva
“Meus contos surgem de algo que me aconteceu e que gera mal-estar, raiva ou confusão em meu interior. Escrever é minha forma de entender esse sentimento”, assinala a escritora. Suas histórias descrevem humanos que se comportam como animais, seres teoricamente civilizados que se transformam em feras selvagens na hora de partir para a prática. “É perigoso ignorar que não controlamos totalmente nossos desejos e necessidades. Meus personagens não aceitam que nem sempre são amáveis e que podem ser cruéis. Não entendem que têm um corpo até ser tarde demais”, explica Roupenian.
Em seu livro também se vislumbra um retrato impreciso da geração que foi adolescente nos anos noventa. Amadureceram em uma década sem terrorismo nem grandes crises e cresceram esperando salários altos e relações igualitárias, mas o resultado não foi o esperado. “Havia aquela retórica que dizia que todos os problemas tinham sido resolvidos e que poderíamos fazer aquilo que pretendêssemos. Disseram que nós, garotas, éramos livres para fazer o que quiséssemos. Quando percebemos que não era verdade, não tivemos as armas necessárias para resolver isso”, afirma Roupenian, que considera a atual revisão crítica daquela década uma coisa positiva. A série Friends tinha traços de homofobia. Monica Lewinsky não foi tratada com justiça. O girl power não passou de um sucedâneo de feminismo peneirado pelo marketing. “As ferramentas que tínhamos para nos tornar boas pessoas acabaram não sendo úteis. E daí surge esta incerteza e desilusão”, assinala.
Dimensão pública
Roupenian se esforça para dar legitimidade a coisas que a alta cultura continua menosprezando. Transforma os millennials em personagens complexos, usa as mensagens de texto como recurso literário e fala do Tinder como a verdadeira arena política do nosso tempo. “Disso sim estou orgulhosa: de ter escrito um livro mais honesto do que bonito”, diz. Depois de sobreviver durante anos graças a bolsas de estudo, a escritora recebeu um adiantamento de mais de um milhão de euros (4,2 milhões de reais) por este livro e pelo próximo, seu primeiro romance, que ainda se encontra em estado embrionário. Também fechou acordo para uma adaptação de Cat Person e Outros Contos para o HBO e para escrever um roteiro original para a produtora A24, a nova Miramax. A questão é se uma pessoa escreve melhor com tempo e dinheiro. “Não vou romantizar a falta de dinheiro. Passei anos imaginando mil formas de escrever durante mais seis meses e é ótimo poder sair dessa configuração”, admite.
A autora só lamenta a dimensão pública de uma atividade que, até agora, era estritamente privada. Sua fama repentina dinamitou até sua intimidade: o jornal britânico The Sunday Times chegou a publicar na primeira página que Roupenian compartilha sua vida com uma mulher, depois de uma longa relação com um homem com quem esteve a ponto de se casar. “Além disso, agora tenho consciência demais do significado daquilo que escrevo, mas escrever, para mim, tem de ser um processo inconsciente”, afirma. “Meu desafio é esquecer que tudo isto aconteceu e voltar a ficar sozinha com meus pensamentos.” É isso que ela deseja agora.
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