A árdua missão de ser mulher e repórter em uma Copa
Jornalistas sofrem com o assédio dos torcedores durante a cobertura do evento de futebol na Rússia
Festa popular, promovendo o encontro e a congregação de etnias diversas, regada a cerveja, vodka, empolgação e gritos de gol. Ao mesmo tempo em que comprova sua dimensão festiva e multicultural a cada quatro anos, a Copa do Mundo masculina de futebol também expõe o caráter universal do machismo. Mal começou e o evento já registra casos de homens, de diferentes nacionalidades, assediando mulheres que circulam pelas cidades-sede na Rússia, sobretudo profissionais de imprensa.
Antes mesmo do início da Copa, Julieth González Therán, enviada especial da Deutsche Welle a Moscou, foi agarrada à força e beijada no rosto por um homem de boné, na praça Manege, enquanto fazia uma transmissão sobre a contagem regressiva para a cerimônia de abertura. No estúdio, diante do constrangimento da repórter colombiana, a apresentadora Ana Plasencia desabafou, questionando as medidas de segurança tomadas pela Rússia para receber o Mundial: “Percebo que os torcedores tomam a liberdade de distribuir beijos sem pedir permissão”. Para poder terminar a transmissão, Therán teve de ser cercada por pessoas que presenciaram o assédio e a protegiam de novas investidas. Em seu perfil no Instagram, ela se pronunciou exigindo respeito. “Não merecemos esse tratamento. Somos igualmente competentes e profissionais. Compartilho a alegria do futebol, mas devemos identificar os limites entre afeto e assédio.”
No jogo entre Argentina e Islândia, fora do estádio de Nizhny Novgorod, um torcedor islandês fantasiado ameaçou interromper com gracejos a entrada ao vivo da repórter Agos Larocca, da ESPN, mas foi impedido por um produtor. Em frente a um dos portões de saída, a reportagem do jornal Superesportes registrou o momento em que dois torcedores argentinos assediaram e tentaram roubar um beijo de uma compatriota jornalista, que precisou se defender com o braço e o microfone para brecar a aproximação dos agressores.
Brasileiros também protagonizaram outro episódio de assédio em solo russo. Em vídeos que viralizaram no último sábado, um grupo de torcedores com camisas do Brasil debocha de uma mulher – que, de acordo com informações compartilhadas nas redes sociais, seria uma repórter local e não entendia o português – cantando palavras obscenas e depreciativas. Entre os integrantes da trupe está o advogado Diego Valença Jatobá, ex-secretário de Turismo de Ipojuca, cidade da região metropolitana de Recife.
No começo de junho, o Itamaraty e o Ministério do Esporte lançaram um guia recomendando a torcedores gays que evitassem demonstrações públicas de afeto na Rússia, por causa da intolerância a LGBT’s no país-sede da Copa. Porém, não havia instruções para os homens brasileiros sobre como se comportar diante de uma mulher ao longo do evento. Em maio, a Associação do Futebol Argentino (AFA) resolveu agir nesse sentido. Mas, em vez de prevenir, reforçava o machismo com uma cartilha distribuída a jornalistas em que indicava as melhores práticas para conquistar mulheres russas. “Trate a mulher como alguém de valor, com ideias e desejos próprios”, pregava uma das orientações.
O campo fértil do assédio no futebol
Quando a Copa foi disputada no Brasil, em 2014, mulheres da imprensa também sofreram com abordagens machistas. A repórter Sabina Simonato, da Rede Globo, por exemplo, acabou assediada em duas oportunidades. Na primeira delas, ela foi beijada no rosto por um torcedor croata enquanto transmitia informações da Avenida Paulista, em São Paulo. Depois, às vésperas do jogo entre Alemanha e Portugal, o beijo veio de um funcionário da Casa de Portugal, no bairro da Liberdade, onde torcedores portugueses se reuniriam para assistir à partida. Colega de Simonato na Globo de Porto Alegre, a repórter Luciane Kohlmann, rodeada por torcedores holandeses, viu dois deles tomarem a liberdade de beijar sua bochecha.
Embora encarados por muitos como brincadeira, os ataques de fãs de futebol a jornalistas já não são mais tolerados por mulheres que, a duras penas, tentam conquistar seu espaço em um meio tradicionalmente machista. Em março, na cobertura ao vivo do jogo entre Vasco e Universidad de Chile, pela Copa Libertadores, no Rio de Janeiro, a repórter Bruna Dealtry, do canal Esporte Interativo, foi beijada à força por um torcedor vascaíno. Constrangida, ela se limitou a dizer no ar que a atitude “não foi legal”, mas continuou a transmissão. O episódio, somado a outras agressões sofridas por mulheres da crônica esportiva nos estádios, ajudou a desencadear a campanha #DeixaElaTrabalhar, encabeçada por um grupo de 50 jornalistas brasileiras.
Antes da Copa do Mundo, no fim de abril, um caso de assédio chamou a atenção no México. Maria Fernanda Mora, repórter da Fox Sports local, informava sobre a festa do título do Chivas Guadalajara na Concachampions 2018 até ser apalpada nas nádegas por um torcedor. Ela reagiu ao abuso golpeando com o microfone o agressor, que passou a insultá-la. Assustada com a repercussão na mídia, que descrevia sua reação como exagerada, Mora divulgou uma carta cobrando que o caso não fosse tratado como um simples arrimón – expressão utilizada no México quando um homem encosta o pênis em uma mulher na rua ou no transporte público, de tão comum que se tornou esse tipo de assédio no país.
Nas redes sociais, outros torcedores passaram a atacá-la afirmando que ela havia “forçado a barra” ou que merecia ser estuprada. “Não me arrependo da forma como me defendi porque nós, mulheres, não vamos deixar e não vamos nos calar. É preciso deixar muito claro: o problema sempre é o agressor, e não nosotras”, escreveu. Assim como no Brasil, a violência sofrida por Mora motivou uma campanha de jornalistas contra o assédio sexual. Elas usaram as hashtags #NoMeToques e #UnaSomosTodas para denunciar ofensas machistas nos estádios mexicanos.
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