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Dirigente demitido do Grêmio por abuso sexual segue recrutando garotos no Paraguai

EL PAÍS localiza observador técnico foragido da Justiça brasileira desde 2016. José Alzir Flor da Silva, descobridor de Ronaldinho Gaúcho, foi condenado a nove anos de prisão por molestar jovens jogadores

José Alzir Flor da Silva, gerente de futebol do Club Atlético 3 de Febrero.
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No mesmo ano em que o ídolo Renato Portaluppi assumiu o comando do Grêmio pela primeira vez, o clube tricolor protagonizou um escândalo de abuso sexual nas categorias de base. Em meados de 2010, José Alzir Flor da Silva, que ajudou a revelar craques como o meia Ronaldinho Gaúcho e coordenava a base do time havia mais de uma década, foi demitido por justa causa após ser acusado de molestar três jogadores com menos de 14 anos. Apesar de condenado em segunda instância a nove anos de prisão, o dirigente se mantém ativo no futebol. Considerado foragido da Justiça brasileira desde 2016, ele foi localizado pela reportagem do EL PAÍS em Ciudad del Este, na fronteira entre Brasil e Paraguai. Atualmente ocupa o cargo de gerente de futebol no Club Atlético 3 de Febrero, que disputa a primeira divisão paraguaia.

O caso é semelhante ao do ex-técnico da seleção masculina de ginástica artística, Fernando de Carvalho Lopes, acusado de praticar abusos sexuais utilizando métodos obscenos como tocar as partes íntimas dos atletas nos treinamentos. José Alzir foi investigado por crimes cometidos entre 2008 e 2009. Segundo o processo instaurado pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul, ele tinha o costume de abordar os garotos nos vestiários e concentrações. Ordenava para que baixassem o calção e ficassem seminus. Essa era sua maneira peculiar de medir a “maturação” do corpo dos meninos. Aferia não só a quantidade de pelos pubianos, mas também relacionava o desenvolvimento físico de alguns ao fato de serem frequentemente masturbados. De acordo com depoimentos das vítimas e testemunhas do Grêmio, ele tomava banho e dormia com os garotos no alojamento, que abrigava cerca de 80 jogadores nas dependências do antigo estádio Olímpico. A maioria dos funcionários subordinados ao coordenador sabia de suas práticas e já tinha ouvido relatos de jogadores sobre os abusos. Entretanto, a denúncia só chegou às autoridades depois que uma mãe resolveu romper o silêncio.

Seu filho, que integrava o time sub-14 do Grêmio, confidenciou que durante uma viagem da delegação para um campeonato em Colinas, interior do Rio Grande do Sul, em 2009, acordou à noite no alojamento ao ser apalpado por José Alzir, que começou a masturbá-lo em cima da cama. “Foi como se eu tivesse levado uma facada no peito quando ele me contou”, diz a mãe do garoto, que acabou dispensado alguns meses após o indiciamento do dirigente. “Meu guri sempre foi gremista. O sonho dele era defender o clube. Mas, depois do que aconteceu, perdeu o encanto pelo futebol. Ele foi ameaçado, [José Alzir] dizia que ninguém acreditaria nele, que não teria mais chances no time se contasse a alguém. E o Grêmio foi omisso por muito tempo.”

Ainda nos tempos de Grêmio, José Alzir ajudou a revelar o zagueiro Léo (centro).
Ainda nos tempos de Grêmio, José Alzir ajudou a revelar o zagueiro Léo (centro).

O menino de 13 anos chegou a relatar o episódio de Colinas a um estagiário da base, porém o Grêmio só demitiu José Alzir em 2010, quando o Ministério Público já o havia denunciado. A antiga diretoria do clube alegou ter mobilizado esforços para colaborar com as investigações, mas a promotoria concluiu no inquérito que o coordenador da base contou com a cumplicidade da instituição para cometer os abusos. Durante as investigações, parte da cúpula do Grêmio resistia em afastar o funcionário e pressionou agentes do Ministério Público para que desistissem da acusação. Alguns cartolas chegaram a insinuar que, por ser mulher, a promotora da Infância e Juventude responsável pelo caso, Denise Casanova Villela, não entendia que as atitudes de José Alzir faziam parte do “contexto do futebol”. Em sua defesa, o dirigente sugeriu que, como era casado e tem dois filhos, não poderia ser suspeito de abusar de garotos. Por sua vez, o MP fundamentou a denúncia com dados de um estudo da Associação contra Pornografia Infantil de São Paulo, que mostra que 90% dos abusadores de crianças e adolescentes são casados e 75% não têm antecedentes criminais, tal qual o ex-funcionário tricolor.

José Alzir respondeu ao processo em liberdade. Não ficou muito tempo desempregado. Ao sair do Grêmio, em 2010, foi para o Hercílio Luz, de Santa Catarina. No ano seguinte, trocou o clube pelo também catarinense Marcílio Dias. Em 2012, partiu para Ciudad del Este, onde comandou a base do 3 de Febrero. A missão em terras paraguaias era continuar revelando jovens talentos para o futebol local. Ao longo de mais de 20 anos a serviço do Grêmio, passaram por seu crivo nomes como os goleiros Cássio e Marcelo Grohe, o zagueiro Léo, que joga no Cruzeiro, o meia Anderson, ex-Manchester United, e Ronaldinho Gaúcho, pentacampeão mundial com a seleção brasileira.

O dirigente reencontra Ronaldinho.
O dirigente reencontra Ronaldinho.

Em março de 2014, Ronaldinho e José Alzir se reencontraram antes de um jogo do Atlético-MG contra o Nacional pela Copa Libertadores, realizado em Ciudad del Este. O ex-craque do Barcelona abraçou o dirigente e aproveitou a ocasião para ressaltar que ele tinha sido seu primeiro treinador no Grêmio. Quatro dias antes do encontro, a Justiça brasileira havia sentenciado José Alzir a 10 anos e meio de prisão em regime fechado pelas denúncias dos garotos gremistas. Mesmo sabendo do processo contra o observador técnico, o 3 de Febrero, que é administrado pela On Line S/A, empresa de gerenciamento esportivo do piloto brasileiro de automobilismo, Odair dos Santos, o bancou na função de formar novos jogadores para o clube.

Já no fim de 2014, o olheiro assumiu o cargo de diretor de futebol do Mixto, no Mato Grosso, mas rapidamente retornou ao 3 de Febrero, onde foi promovido a gerente geral no fim do ano passado e segue trabalhando com crianças e adolescentes. Além de administrar a logística da equipe profissional, José Alzir também é o responsável por fechar contratações das categorias de base, que contam com aproximadamente 100 jogadores entre 13 e 19 anos. Ele levou, inclusive, alguns garotos que treinaram com ele no Grêmio para o time paraguaio.

A rotina de José Alzir transcorre normalmente mesmo depois de o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul confirmar, em julho de 2015, a condenação em segunda instância. Na ocasião, ele teve a pena reduzida para nove anos de prisão em regime fechado. Conseguiu interpor um recurso extraordinário no Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília, que acabou rejeitado pela ministra Rosa Weber. O processo só transitou em julgado em julho do ano passado. Porém, desde 2016, quando o STF admitiu que réus condenados em segunda instância poderiam ser presos antes de esgotarem todos os recursos, há um mandado de prisão em aberto contra José Alzir, expedido pela 1ª Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre.

Enquanto o dirigente, aos 55 anos, vive seu exílio no futebol do Paraguai sem ser incomodado, os três atletas que o denunciaram formalmente pelos abusos tentam superar o trauma longe dos gramados. Nenhum deles chegou a atuar pela equipe principal do Grêmio. Rodaram por times menores até abandonar a carreira de jogador. Daquela geração, alcançaram destaque como profissionais o lateral-esquerdo Marcelo Hermes, o atacante Yuri Mamute e os irmãos Guilherme e Matheus Biteco, que morreu em 2016 no acidente aéreo da Chapecoense. Eles, entretanto, não estavam envolvidos no processo contra José Alzir. As vítimas passaram por avaliação psicológica do Ministério Público, que dispensou o acompanhamento médico por constatar que estavam bem, à exceção de um dos adolescentes, que não foi mais localizado pela promotoria depois que as denúncias vieram à tona.

José Alzir posa com jogadores do 3 de Febrero convocados para a seleção sub-15 do Paraguai, em 2015.
José Alzir posa com jogadores do 3 de Febrero convocados para a seleção sub-15 do Paraguai, em 2015.

Em contato por telefone, o dirigente justifica a ida ao Paraguai por supostamente ter perdido mercado em grandes clubes brasileiros após o escândalo na base gremista. “Surgiu a oportunidade de trabalhar em outro país e decidi aproveitar.” José Alzir também diz ter informado à direção do 3 de Febrero sobre o processo que respondia no Brasil quando foi contratado em 2012. “Sou grato ao clube por acreditar em mim.” Ele ainda mantém a versão que sustentou nos tribunais. Se declara inocente e nega que tenha abusado dos garotos no Grêmio. No entanto, assume que, por um desentendimento na concentração, agrediu uma das vítimas, então com 13 anos. “Cometi esse erro. Mas aí transformaram em outra coisa”, argumenta o dirigente, que interpreta as denúncias como “uma armação de pessoas dentro do Grêmio” para prejudicá-lo. Ele afirma que desconhece o mandado de prisão decretado no Rio Grande do Sul, mas se coloca à disposição das autoridades brasileiras caso seja notificado. “Lei é lei. Vou respeitar o que a Justiça determinar.”

Questionados pelo EL PAÍS, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e a Polícia Civil do Estado não responderam até o fechamento da reportagem por que o mandado de prisão contra José Alzir ainda não foi cumprido. Advogados do dirigente alegaram sigilo processual para não se manifestarem. Nem a diretoria do 3 de Febrero nem a On Line S/A, administradora do clube, retornaram aos pedidos de esclarecimento sobre o vínculo com o gerente de futebol.

Escândalo exigiu providências da dupla Grenal

Com o intuito de evitar casos semelhantes, o Ministério Público fechou um termo de compromisso tanto com o Grêmio quanto o Internacional. Os dois maiores clubes de Porto Alegre concordaram em adotar medidas de enfrentamento ao abuso sexual nas categorias de base. Entre as cláusulas do acordo, estão a obrigação de solicitar antecedentes criminais de funcionários que trabalham com crianças e adolescentes, não contratar profissionais que já tenham sido condenados por violência infantojuvenil e acionar MP e conselhos tutelares ao primeiro indício de maus-tratos praticados no processo de formação de atletas.

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