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“É razoável dizer que vamos prender todo mundo sem olhar caso a caso?”

Para Fábio Tofic, Judiciário deveria propor medidas contra morosidade da Justiça, em vez de votar por terceira vez condenação em segunda instância

Marina Rossi

O Supremo foi bombardeado de assinaturas nesta semana. De um lado, 4.200 procuradores, dentre eles Rodrigo Janot, ex-procurador geral da República, defendiam que a corte mantivesse a decisão que permite que uma pessoa pode ser presa mesmo antes de esgotados todos os recursos possíveis do seu julgamento. Do outro, entidades jurídicas como a Associação Brasileira de Advogados Criminalistas e Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), coletaram 3.600 assinaturas condenando a prática.

Fábio Tofic, presidente do Instituto de Defesa ao Direito de Defesa.
Fábio Tofic, presidente do Instituto de Defesa ao Direito de Defesa.Divulgação
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O debate sobre a legalidade ou não da prisão em segunda instância - ou seja, ainda cabendo recurso na terceira instância, a superior - não é novo. Em 2009, o Supremo decidiu, por sete votos a quatro, que a pena só poderia ser cumprida após esgotadas todas as instâncias. Em 2016, a corte reverteu a decisão, por seis votos a cinco. Desde então, condenados podem ser presos antes mesmo de recorrer. Agora, novamente, a pauta está nas mãos dos ministros por causa do julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula. A defesa do petista argumenta que ainda pode recorrer à condenação pelo TRF-4 por corrupção no caso do triplex no Guarujá. E que, enquanto isso não terminar, ele não pode ser preso.

Em conversa com EL PAÍS, Fabio Tofic, presidente do IDDD, rebate alguns dos argumentos de quem é a favor da condenação.

Pergunta. Quem defende a condenação em segunda instância diz que a mudança da jurisprudência neste caso vai implicar na liberação de inúmeros condenados, por diversos crimes, dentre eles o de corrupção.

Resposta. Isso é mentira. Essa decisão do Supremo não discute o cabimento de prisões preventivas, que continuariam valendo. Por exemplo, o Sergio Cabral está preso preventivamente. E ele continua preso preventivamente independentemente da decisão do Supremo. A grande discussão é que o Ministério Público quer que a partir do julgamento em segunda instância, 100% dos acusados brasileiros na Justiça criminal estejam presos. O que nós defendemos é que o juiz analise caso a caso. Essa é a única diferença. Nos casos em que o sujeito é perigoso e há risco de esperar o fim do processo, o juiz já tem [o recurso da] prisão preventiva à disposição para resolver esse problema. Mas que se faça isso caso a caso. Imagina a quantidade de gente que tem no país respondendo a processos abusivos, ilegais, injustos. Será razoável dizer que vamos prender todo mundo, sem olhar os casos? É essa a discussão.

"O STF tem que ser o guardião da segurança jurídica. E com essa oscilação, ele se transformou no maior instrumento de insegurança jurídica do país"

P. Vocês teriam este levantamento de quantas pessoas estão presas antes do término de todas as instâncias?

R. Não tenho. Mas a grande questão é que o Supremo está dividido. Desde 2016, tem uma parte do Supremo que dá liminar para soltar, e tem uma parte que dá para prisão em segunda instância. Veja, nós não achamos que ninguém pode ser preso. Entendemos que muita gente deve ser presa até antes de uma condenação em primeiro grau. Não precisa esperar o julgamento em segunda instância. Até mesmo no início do processo as pessoas podem ser presas. Desde que estejam presentes os requisitos da lei, que são os requisitos para a prisão preventiva. Fora desses requisitos não se pode prender até o trânsito em julgado [quando não cabe mais nenhum recurso para a decisão].

P. Outro argumento de quem defende a prisão em segunda instância é que a mudança na regra beneficiaria somente os condenados ricos, já que são os que têm condições de pagar bons advogados para postergar o processo até o Supremo.

R. É mentira. E a maior prova de que isso é mentira é que as defensorias públicas de todo o país estão envolvidas no processo a favor da prisão somente com o trânsito em julgado. Por que as defensorias públicas, que defendem o maior número de pobres, estariam envolvidas nisso? Porque é evidente que 90% dos presos hoje são pessoas pobres. Mas não quer dizer que a grande maioria dos processos criminais que hoje estão em encaminhamento no Brasil seja de pessoas presas. Tem muito réu pobre aguardando julgamento em liberdade e que teria uma chance de ser inocentado com um recurso em um tribunal superior. A pergunta, portanto, é: quantos réus ricos vão ser presos na segunda instância e quantos réus pobres vão ser presos na segunda instância? Provavelmente ricos são alguns poucos. Porque não é uma questão de prisão ou liberdade. A Justiça criminal não é a Lava Jato, é uma Justiça para o pobre. O cliente preferencial da Justiça criminal é o pobre. Tudo o que você piora na Justiça criminal para o réu, quem mais vai sentir é o pobre.

"A Justiça criminal não é a Lava Jato, é uma Justiça para o pobre. O cliente preferencial da Justiça criminal é o pobre"

P. Essa discussão sobre a segunda instância ficou politizada então?

R. Exatamente. As pessoas estão dizendo que “ah, vão mudar o entendimento por causa do Lula”. Pelo contrário. Mudaram o entendimento em 2016 por causa dos casos da Lava Jato. Uma outra questão também é a seguinte: É possível o Supremo ficar toda hora mudando o entendimento sobre um tema tão importante? Após a Constituição de 88, o Supremo enfrentou pela primeira vez esta questão em 2009. De uma forma plenária, colegiada, com efeito amplo. Faz sentido você voltar a julgar isso de novo em 2016? E naquele ano, decidiu por uma maioria apertada. Com a diferença de um voto, foi revertido um entendimento desta magnitude para o país. E isso, claro, divide a corte, já que cada um passa a decidir como quer. Esse julgamento de 2016 causou um mal muito grande para o Supremo Tribunal Federal. O STF tem que ser o guardião da segurança jurídica. E com essa oscilação, ele se transformou no maior instrumento de insegurança jurídica do país. A Justiça virou lotérica. Hoje você entra com pedido de habeas corpus e tem 50% de chance de ganhar, dependendo da turma com a qual o processo vai cair.

P. No domingo, Deltan Dallagnon publicou em sue Twitter que estaria, na quarta-feira, "em jejum, oração e torcendo pelo país". Como vê esse comportamento do procurador que lidera a força-tarefa da Lava Jato?

R. O que cada um faz com o seu corpo, eu acho pouco relevante. O que eu acho curioso é o que tem muita gente respondendo a algum processo criminal no Brasil. Não é só bandido. Tem gente como eu, como você. Porque a Justiça criminal alcança a todos. Não só bandido. Se eu, por algum motivo, ficar devendo 30 ou 20.000 reais em um imposto, e não pagar este imposto é considerado crime no Brasil, o Ministério Público vai fazer uma acusação criminal contra mim. Esse mesmo Ministério Público que está fazendo jejum. E ele vai fazer uma acusação criminal contra mim e contra você igual à que ele faria para um cara que deixou de pagar 100 milhões. E existe um princípio chamado princípio da insignificância, que o Supremo adota, mas que o Ministério Público não concorda. O Ministério Público acha que não importa se você deixou de pagar 20 ou 100 milhões, você tem que responder pelo crime. As pessoas que estão aplaudindo a condenação em segunda instância não entendem que se isso acontecer com elas, o Ministério Público vai estar do outro lado da mesa pedindo a prisão delas também. É preciso tomar um pouco de cuidado com o que essas pessoas estão pedindo. Eles estão pedindo porque eles têm o poder de punir as pessoas. Não é o Lula somente que eles podem prender. Eles podem prender qualquer pessoa. A gente sabe da quantidade de arbitrariedade que acontece na Justiça Criminal. O problema é que a população quer uma Justiça criminal para o outro e uma para elas. Mas não é assim que funciona. E essa Justiça criminal que estão pedindo para o outro é a mesma que um dia vai valer para você também.

P. Vale para todo mundo...

R. Sim. Para todo mundo. Agora, o cara fazer jejum é a prova de que as coisas se confundiram. Ele está lá porque nós o colocamos lá. Ele é um funcionário do Estado. Se ele quer defender as convicções pessoais, que ele vá defender na igreja. Não use o cargo público para isso. O cargo público não foi feito para ser evangelizado. É para ser exercido de forma laica, sem messianismo e sem religião. Você transformar a prisão de não sei quantos brasileiros em uma questão religiosa já contraria muitos princípios bíblicos. Mas para ficar no âmbito terreno, contraria o princípio da moralidade pública.

P. Especialistas que defendem a manutenção da regra também afirmam que as provas em um processo são analisadas somente em primeira e segunda instância, enquanto os tribunais superiores servem apenas para apelar contra a condenação. Portanto, o princípio da presunção da inocência não seria afetado por causa da execução provisória da pena.

"As pessoas que estão aplaudindo a condenação em segunda instância não entendem que se isso acontecer com elas, o Ministério Público vai estar do outro lado da mesa pedindo a prisão delas também"

R. Vamos supor que você, como jornalista, seja condenada em segunda instância porque publicou uma frase dizendo que alguém fez uma coisa. A pessoa te processa criminalmente e você é condenada por isso na primeira e na segunda instância. Você não discute se você fez ou não fez a matéria. Portanto, não há mais uma discussão de provas. Mas você, mesmo assim, pode recorrer ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ao Supremo para defender o seu direito à liberdade de manifestação. Ou seja, você não está discutindo mais se está provado ou não. Está discutindo se o que você falou pode ser considerado crime. E tem vários casos em que a discussão mais importante não é se a pessoa fez ou não fez, mas sim se o que ela fez configura crime. Isso é uma discussão jurídica que compete às cortes superiores analisar.

P. Este argumento reduz muito o debate, então?

R. Claro. Este argumento serve para dizer que as pessoas não podem ir ao Supremo e ao STJ discutir prova do fato. Mas podem ir para dizer que o fato que está sendo imputado contra ela não configura crime. Independe de prova. Essas discussões são importantíssimas sobre a aplicação da pena. O STF é um tribunal na área penal muito vocacionado a estabelecer os limites éticos e legais da aplicação da pena criminal no Brasil. Por exemplo, um crime que prevê pena de dois a 12 anos, quais são os critérios para eu decidir se vou ficar em dois, quatro, seis ou em 12 anos? Eu preciso de um parâmetro que não gere injustiça e desigualdade em todo o país. Quem cuida disso no Brasil é o STJ. Posso te garantir que 90% dos recursos levados ao STJ discutem pena e regime. Foi feita uma pesquisa há uns anos pela FGV e se concluiu que 50% dos habeas corpus que a Defensoria Pública de São Paulo manda para o STJ discutindo condenações do Tribunal de Justiça (TJ) aqui de São Paulo são casos em que o Tribunal de Justiça descumpre súmulas do STJ. Ou seja, em casos que para o STJ a pena deveria ser iniciada em regime semiaberto, por exemplo, o Tribunal de Justiça de São Paulo manda iniciar no fechado. E quem paga o tempo que o sujeito ficou ilegalmente no regime fechado, até reverter essa decisão no STJ?

P. E como resolver um problema como esse?

R. Por que o Ministério Público e o Judiciário não fazem um pacote de dez medidas contra a morosidade da Justiça, invés de acabar com uma cláusula pétrea da Constituição? O problema é a demora. Ninguém questiona a presunção da inocência. Invés de levar seis meses, um recurso leva seis anos para ser julgado. Por que a gente não pensa, por exemplo, se juristas poderiam sair em horário de expediente para dar palestra, para dar aula? O certo não seria fazer isso fora do expediente?

P. Você acha que termina amanhã essa discussão?

R. Acho que a discussão sobre o habeas corpus do Lula sim. Só acho triste que a questão acabe limitada ao julgamento do Lula. Porque existem ações abstratas e objetivas propostas pela OAB [sobre a prisão em segunda instância]. E a OAB pode ser qualquer coisa menos petista, inclusive saiu a favor do impeachment [de Dilma Rousseff]. Então seria um terreno muito mais isento. Mas infelizmente, a presidenta do Supremo preferiu colocar da pior forma. Decidiu colocar essa questão para ser decidida no habeas corpus do Lula. Eu não sei o que vai acontecer.

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