Kleber Mendonça Filho, o cineasta perturbador: “Saída de Dilma foi absurda”
O diretor disputa a Palma de Ouro com ‘Aquarius’, sutil retrato do Brasil contemporâneo
Foi dele a ideia de aproveitar a passagem pelo tapete vermelho do Festival de Cannes, espaço apolítico e reservado a esse glamour tão necessário a fotógrafos e patrocinadores, para improvisar um protesto contra o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. O cineasta Kleber Mendonça Filho e a equipe de Aquarius, único filme latino-americano na disputa pela Palma de Ouro, tiraram papéis com frases de protesto dos seus bolsos interiores quando estavam a caminho da estreia oficial do filme. “Um golpe de Estado aconteceu no Brasil”, dizia um deles. “O Brasil já não é uma democracia”, denunciava outro. “O mundo não pode aceitar este Governo ilegítimo”, clamava um terceiro.
“Foi só um pequeno gesto para denunciar o que está acontecendo no Brasil, que é uma loucura”, diz Mendonça Filho alguns dias mais tarde, no ensolarado terraço de um hotel de Cannes. “As imagens se espalharam como pólvora nos meios de comunicação brasileiros e nas redes sociais”, comemora. Mas também houve um contragolpe. O jornal Folha de S. Paulo mostrou que Mendonça Filho recebe 3.800 reais mensais como coordenador de cinema da Fundação Joaquim Nabuco (Recife), vinculada ao Ministério da Educação e Cultura. E ainda, que o filme “Aquarius’ recebeu 1 milhão de reais ao ser selecionado num edital do BNDES de Cinema de 2014. Foi o mote de uma guerra nas redes sociais num momento em que o país se encontra dividido politicamente, e que as subvenções públicas são duramente criticadas por uma parcela da população.
Para o cineasta pernambucano, a desinformação no Brasil lembra “quase a da época soviética”
Em entrevista ao portal JN, o cineasta se disse tranquilo. “Meu trabalho é público e notório há 18 anos no Cinema da Fundação. A cidade do Recife inteira conhece o meu trabalho. Por sorte minha, os meus filmes também são conhecidos no Brasil e no mundo inteiro. Eles são um exemplo de investimento de dinheiro público e de resultado na tela e na cultura. Então, é um trabalho, por sorte minha, que tem como ser julgado pelo próprio público por sua existência e qualidade”, comentou o diretor.
O filme também foi atacado. “No Twitter, criaram a hashtag #BoicotAquarius, impulsionada pela direita. Na verdade, foi uma grande estratégia publicitária. Agora o público que vai ver comédias de Adam Sandler sabe que existimos”, sorri. Tenta minimizar o assunto, mas o episódio que o país assiste lhe parece “muito perturbador”. Para Mendonça Filho, a presidenta foi destituída “de forma injusta, absurda e antidemocrática”. “Quem toma o poder é parte de uma oposição insatisfeita que está há 13 anos sem ganhar eleições”, afirma.
Mendonça Filho atribui o ocorrido a uma espécie de “ficção narrativa, elaborada pelas cinco ou seis famílias que controlam a mídia”. Para o cineasta, a desinformação existente no Brasil é galopante. “Quando as pessoas ligam a televisão, falam para elas de um elemento para entender a realidade, mas se esquecem dos cinco restantes. É quase como no período soviético”, indigna-se. O diretor pernambucano, de 47 anos, foi crítico de cinema durante várias décadas. Em Cannes, está no outro lado do espelho: é alvo da atenção dos mesmos jornalistas e críticos com os quais, até poucos anos atrás, acompanhava o Festival de Cannes. Apesar de tudo, diz não ter lido as críticas, geralmente entusiasmadas. “É informação demais”, comenta, visivelmente aflito. Aquarius é apenas o seu segundo longa-metragem, após O Som ao Redor.
Os dois longas transcorrem no Recife, cidade natal do cineasta, conhecida tanto pela beleza quanto pela violência. “Historicamente, é uma região abandonada com relação ao sul do país, onde a riqueza se concentra há 150 anos. Nestes últimos 13 anos, tanto Dilma quanto Lula, que também é nordestino [como o cineasta], se esforçaram em fazer o contrário. Tenho vontade de chorar quando penso que as mudanças obtidas durante este tempo vão ser desativadas para voltar à estaca zero. É isso que a direita pretende fazer”, opina.
A protagonista de ‘Aquarius’, filme que é forte candidato a figurar na premiação de domingo, exibe a mesma postura de resistência. Clara, interpretada por uma magnética e ardente Sonia Braga, é uma crítica musical que entrou na maturidade, depois de superar um câncer de mama e a morte do marido. Fã de Maria Bethânia, mas também do Queen, vive rodeada de vinis no apartamento pegado à praia de Boa Viagem, onde criou os três filhos. O predinho, construído nos anos quarenta, é alvo da avareza de um grupo de incorporadores que pretendem transformá-lo em um condomínio de alto padrão. Clara é a única moradora que permanece entrincheirada no edifício. Os outros já venderam seus imóveis, mas ela não se deixa tentar pelo sorriso do agente imobiliário, no qual parece adivinhar a ferocidade do sistema. Tanto faz para ela ser vista como a louca do Aquarius, o nome do prédio e também do filme. Às vezes, esse é o preço a pagar para defender aquilo em que se acredita.
Através dessa batalha imobiliária, o diretor traça um sutil retrato do Brasil contemporâneo, onde as forças do capital parecem ter um controle quase implacável sobre um turbulento pano de fundo marcado pelas relações de classe e de raça. “O que você diz faz todo sentido no dia de hoje, mas quando escrevi o filme não era a minha intenção. Acho que percebi algo que já estava no ambiente”, afirma Mendonça Filho. “No fundo, o filme aborda temas muito presentes na nossa sociedade, que também devem ser globais.” Não por acaso, seu filme se abre sobre imagens de arquivo dos anos sessenta, em preto e branco, que mostram um Recife de resplandecente beleza. “São imagens de grande valor emocional, porque descrevem minha infância”, diz. O passado sempre é melhor? Não exatamente. Em Aquarius, o cineasta incita-nos a perguntar onde termina a modernidade e começa a desumanização. Numa cena de escalada verbal, Clara provoca esse agente imobiliário com ares de genro perfeito – e vários MBAs obtidos em escolas de negócios norte-americanas –, dizendo-lhe que já não lhe resta humanidade. O filme trata também desse sentimento em vias de extinção? “Ele fala de uma pessoa sensível confrontada com um mundo que já não o é.”
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