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Coluna
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Falácia do poeta doméstico

O que Temer explicita, ao submeter a cultura à educação, é seu viés de poeta doméstico, que, ocupando ilegitimamente um lugar que não é seu, tenta calar as possíveis vozes dissidentes

Michel Temer, presidente interino.
Michel Temer, presidente interino.Marcelo Camargo/Agência Brasil

Em um poema menor, intitulado Política literária, Carlos Drummond de Andrade ironiza, com uma metáfora, os bastidores da vaidade provinciana, hierarquizando os vates: “O poeta municipal / discute com o poeta estadual / qual deles é capaz de bater o poeta federal”. Drummond poderia talvez ter incluído na sua classificação a subclasse dos poetas domésticos, aqueles que fazem poemas à esposa “bela, recatada e do lar”, e que, incapazes de alcançar qualquer reconhecimento, por falta de mérito, alimentam sua mediocridade nos porões obscuros do poder.

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O presidente interino, Michel Temer, conspirou de maneira escancarada contra a presidente Dilma Rousseff apoiado no PMDB, que menos que partido tornou-se, há muito, um grande balcão de negócios, e no PSDB, a oposição que nunca aceitou a derrota nas urnas em 2014. Comemorado como uma vitória futebolística, ao afastamento de Dilma seguiu-se o enterro prematuro das promessas de Temer de promover um enxugamento no número de ministérios – que cairia de 32 para 17 – e de convidar um grupo de notáveis para ocupá-los.

Temer cortou nove pastas, entre elas, a Secretaria das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos e o Ministério da Cultura. Entre os notáveis que assumiram cargos no primeiro escalão – todos homens e brancos – estão sete citados nas investigações da Operação Lava Jato (Bruno Araújo, Raul Jungmann, Mendonça Filho, Romero Jucá, Ricardo Barros, Geddel Vieira Lima e Henrique Eduardo Alves), um condenado pela Justiça Federal (Maurício Quintella), um latifundiário conhecido pelo desrespeito ao meio ambiente (Blairo Maggi), dois evangélicos (Ronaldo Nogueira de Oliveira e Marcos Pereira) e três representantes de capitanias hereditárias (Sarney Filho, do Maranhão; Hélder Barbalho, do Pará; e Fernando Coelho, de Pernambuco).

Já o lema do governo provisório de Temer, Ordem e Progresso, foi escolhido por seu filho de sete anos. Michelzinho não sabe, mas Michel pai tem obrigação de saber – e, por isso, a escolha não é um acaso – que o lema estampado na bandeira brasileira é um arroubo positivista dos republicanos do fim do século XIX. Ideal associado a uma doutrina autoritária e reacionária, o positivismo esteve na base do golpe de estado que implantou a ditadura militar em 1964 e que, em nome de Deus, Pátria e Família, torturou e matou cidadãos brasileiros, implodiu a economia e destruiu os sistemas de saúde e educação.

Michelzinho não sabe, mas Michel pai tem obrigação de saber, que o lema estampado na bandeira brasileira é um ideal associado a uma doutrina autoritária e reacionária

Então, há sentido em Temer extinguir o Ministério da Cultura e vincular a pasta à Educação, como nos tempos dos generais-presidentes – coisa que, no período democrático, nem mesmo o senador e ex-presidente Fernando Collor, de detestável memória, teve coragem de fazer. Em um regime onde impera a ordem e o progresso não há lugar para o pensamento perscrutador representado pela cultura, que, em sua substância, é necessariamente rebelde e contestatório. A submissão da cultura à educação é uma forma de demonstrar o desapreço por tudo aquilo que representa o patrimônio intelectual independente.

A educação formal tem por meta nos proporcionar um cabedal de conhecimentos científicos, técnicos e humanistas capazes de assegurar a reivindicação de um lugar no mundo – profissional e socialmente. Mesmo oferecendo elementos para uma reflexão crítica, o fim da educação é sempre pragmático e utilitário. A cultura, ao contrário, não obedece a regras e nem aceita amarras – é o campo das ideias criativas, que não estão a serviço de uma função específica e por isso só medram em ambientes onde vigora a liberdade.

O argumento de Temer para a extinção de ministérios – a diminuição de despesas da União – mostrou-se uma falácia. O Ministério da Cultura em 2015 consumiu cerca de 0,25% do total dos recursos do Orçamento – a Secretaria das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, também extinta, meros 0,02%. O que Temer explicita, ao submeter a cultura à educação, é seu viés de poeta doméstico, que, ocupando ilegitimamente um lugar que não é seu, tenta calar as possíveis vozes dissidentes, que não aceitam o jogo da troca de favores e dos cala-bocas institucionais.

 Luiz Ruffato é escritor e jornalista.

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