Epidemiologista da Casa Branca: “Temos um país polarizado e isso não ajuda a controlar um surto”
Anthony Fauci, rosto mais reconhecível do grupo de trabalho do Governo dos EUA contra a pandemia, diz ao EL PAÍS que, ao longo de 2021, muitas pessoas poderão ter a vacina à disposição
O epidemiologista Anthony Fauci está acostumado a lutar contra inimigos visíveis e invisíveis. Magro e de voz rouca, aos 79 anos é o rosto mais reconhecível do grupo de trabalho da Casa Branca para o combate à crise do coronavírus. Durante semanas, acompanhou o presidente Donald Trump e o resto da equipe nas entrevistas coletivas diárias em que fez das emendas às falas de seu chefe toda uma arte. Se o mandatário pedia calma —“Relax, estamos indo bem”—, Fauci apontava com a mesma serenidade: “O pior está por vir”. Se Trump, como Jair Bolsonaro, cantava os benefícios da hidroxicloroquina como método contra a covid-19, o cientista qualificava as provas de “insignificantes”, mas negava qualquer contradição: “O que dizemos não é tão diferente. O presidente se sente otimista, é seu sentimento”.
Anthony Stephen Fauci (Nova York, 1940) tem aptidão tanto para o laboratório quanto para circular com desenvoltura nos círculos de poder de Washington. Filho de um farmacêutico do Brooklyn de origem italiana, comanda desde 1984 o Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos EUA e trabalhou com seis Administrações distintas. De Ronald Reagan aos dois Bush, passando por Bill Clinton, Barack Obama e Trump. Em seu cargo, liderou a resposta do Governo a uma desconhecida epidemia de AIDS que acabava de surgir e enfrentou os surtos de ebola e zika. Um episódio ajuda a entender sua figura. Certo dia de 1988, quando eram frequentes as manifestações contra a Administração por sua resposta à AIDS, um grupo protestou no campus do instituto, em Maryland, exigindo mais testes experimentais. Fauci pediu ao FBI que não prendesse ninguém e convidou vários ativistas para conversar em seu escritório. Falou com eles, estabeleceu uma relação de confiança e nunca a quebrou.
Agora, luta contra a maior pandemia em um século, que já causou mais de três milhões de contágios confirmados nos Estados Unidos e matou 134.130 pessoas. Com sua habilidade e suas constantes recomendações de prevenção, tornou-se uma espécie de herói para os críticos de Trump. Há camisetas com seu rosto e ele até foi interpretado por Brad Pitt na televisão. A relação com o presidente, no entanto, parece ter se deteriorado. Em pleno aumento de casos, aparece menos e Trump o acusou na semana passada de ter cometido erros. Na quinta-feira, em entrevista por telefone, recusou-se a comentar a cacofonia que impera na Casa Branca, onde o mandatário contradiz continuamente os especialistas. Mas sua voz rouca através do aparelho não se desviava um milímetro da mensagem: “Todos deveriam usar máscara”.
Pergunta. Quais são os motivos desta alta de novos casos nos Estados Unidos? É a ampliação dos testes [como alega o presidente Donald Trump]?
Resposta. Não, obviamente, é mais que o aumento dos testes. Não há dúvida de que os casos estão subindo porque há mais pessoas contagiadas, assim como as hospitalizações estão aumentando.
P. O que aconteceu? O país foi reaberto muito cedo?
R. É complicado. Não se trata apenas de abrir muito cedo. Alguns Estados fizeram isso, sem seguir as diretrizes, e outros abriram de forma correta, mas a população não está seguindo as orientações e tem ido a grandes concentrações ou se reunido em bares sem usar máscara. Todo isso levou a um aumento da transmissibilidade. Portanto, é uma combinação das duas coisas, de a abertura ter ocorrido muito cedo em alguns casos e, mesmo nos [Estados] que fizeram isso de forma correta, de pessoas que não seguiram as recomendações.
P. Acredita que alguns Estados deveriam diminuir seu ritmo de volta à normalidade?
R. Sim, deveriam simplesmente seguir as diretrizes que estabelecemos, que explicavam especificamente os requisitos a ser cumpridos para passar de uma fase para outra. A forma correta de fazer isso está bem detalhada.
P. Considera que haverá uma segunda onda no outono nos EUA [de setembro a dezembro]?
R. Não acredito que devamos falar de uma segunda onda, porque ainda estamos na primeira, não saímos dela.
P. Acha possível que, de fato, não ocorra [uma segunda onda], que continuemos em uma única onda?
R. É possível, é totalmente possível. Se os casos não baixarem de forma drástica neste verão [nos EUA], é possível que tenhamos uma continuação das infecções.
P. Quando espera que a vacina esteja disponível para as pessoas?
R. Não posso garantir, mas esperamos que esteja disponível entre o final deste ano e o início do próximo.
P. Refere-se à disponibilidade já no mercado, para as pessoas?
R. Será gradual, mas à medida que formos entrando em 2021, muitas pessoas poderão tê-la à disposição.
P. E quais são suas previsões sobre os tratamentos?
R. Temos dois tratamentos que parecem ter funcionado com pessoas em estado avançado da doença, mas, sem dúvida, precisamos de mais, particularmente para pessoas nos estágios mais iniciais da doença. Há duas terapias que parecem eficazes em pessoas hospitalizadas, mas precisamos de outras para pessoas em situações anteriores, para evitar que tenham de ser hospitalizadas.
P. A cooperação entre países nessas duas linhas de pesquisa precisa melhorar?
R. Não, acredito que há uma cooperação muito boa entre países. Há muita transparência, principalmente entre os Estados Unidos e os países europeus.
P. A Organização Mundial da Saúde acaba de reconhecer que o vírus pode ficar suspenso no ar, em espaços fechados, e portanto é uma via de infecção. Isso pode fazer com que sejam revistas algumas políticas de prevenção?
R. Não, acho que há mais motivos ainda para usar máscara.
P. Nos Estados Unidos, usar ou não uma máscara se tornou algo muito político. É incrível a diferença entre o que se vê em Washington DC e o que se vê no Texas ou em Oklahoma.
R. Sim, há muita diferença e isso é muito lamentável, todo mundo deveria usar máscara.
P. Acredita que a polarização política nos EUA está piorando a resposta a esta crise, não só do ponto de vista institucional, mas também social?
R. Temos um país muito polarizado do ponto de vista político e não é segredo para ninguém que isso não ajuda quando você está tentando controlar um surto. Neste país, há uma divisão política que não ajuda a situação.
P. A pandemia levantou questões em todos os países. Muitos Governos, no mundo todo, dizem: “Não podíamos saber que isto seria tão duro, não podíamos prevenir”. O senhor pensa assim?
R. É muito difícil, era muito difícil responder a um surto tão massivo como a pandemia. Não significa que não seja possível responder bem, mas, diante de uma pandemia assim, é muito difícil.
P. Até a Organização Mundial da Saúde parece ter demorado, no início, para alertar quanto à gravidade do coronavírus. O que é que entendemos mal?
R. Acho que não devemos dizer que entendemos algo mal. A natureza deste surto tornava muito difícil responder. Obviamente, sempre se poderia ter agido melhor, mas não acredito que tenhamos agido muito mal. Simplesmente, este surto tem sido particularmente difícil.
P. A pandemia castigou duramente países europeus como Espanha e Itália, e as pessoas ficam surpresas com o fato de que um país tão poderoso como os Estados Unidos também tenha sido tão afetado. O que poderia ter sido feito de melhor forma?
R. Não quero entrar nisso, sempre se pode questionar o que se faz, nada é perfeito, mas não quero nem apontar quais coisas poderiam ser feitas de melhor forma, apenas dizer que sempre devemos tentar melhorar.
P. E a sociedade, acredita que está agindo melhor agora, que há mais consciência?
R. Sim, as pessoas estão aprendendo a importância das medidas preventivas, de usar máscara, de evitar as grandes concentrações. Quanto mais aprenderem, melhor será a resposta.
P. Diria que algumas atitudes e costumes mudaram para sempre?
R. Bem, acredito que estaremos mais atentos aos riscos, acho que aprendemos uma lição muito dura com o coronavírus.
P. A comunidade científica passou anos alertando para o risco de uma pandemia, mas ninguém parecia levá-la a sério.
R. Alguns de nós levamos a sério. Pelo menos nos Estados Unidos estávamos tentando nos preparar, houve um certo grau de preparação nos dois últimos anos, mas esta pandemia era particularmente difícil e, obviamente, apesar dessa preparação, transformou-se em um problema grave.
P. O presidente Trump diz que as escolas deveriam abrir no outono e os Centros de Controle e Prevenção de Doenças [CDCs, na sigla em inglês] afirmam o contrário. O que o senhor acha?
R. Não acho que exista diferença entre o que dizem os CDCs e o presidente. Se você ouvir com atenção, ambos dizem que deveríamos tentar abrir as escolas, mas que devemos prestar atenção à segurança e aos bem-estar das crianças e dos professores. Não vejo diferenças.
P. É muito complicado trabalhar com um presidente que fala tanto e que, às vezes, contradiz as próprias diretrizes de seu Governo?
R. Não vou comentar isso.
P. O senhor já trabalhou para seis Governos diferentes e lidou com muitas crises difíceis, começando pelo início da AIDS. Que lições daquela época estão sendo úteis agora?
R. A lição é que os surtos ocorrem. Sempre ocorreram, ocorrem agora e continuarão ocorrendo. Por isso, é necessário se preparar. Passei por muitos, AIDS, ebola, zika... Devemos esperar o inesperado, porque acontece.
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