Estados Unidos vivem clima de normalidade enquanto coronavírus se espalha fora do eixo
O relaxamento da população e a abertura estão causando um aumento alarmante dos casos no interior do país exatamente no 4 de julho, o feriado familiar mais tradicional
A forma da curva do coronavírus nos Estados Unidos já aparece até nos anúncios eleitorais dos democratas. Há um pico inicial em março e abril, como em todos os países. Da mesma forma, uma diminuição progressiva em maio. De repente, a tendência se inverte. Enquanto nos outros países a taxa de contágio permanece baixa, nos EUA explodiu na segunda quinzena de junho. A curva tem a forma de chifres. As causas são várias e não está claro que peso tem cada uma. Mas o principal é que os norte-americanos perderam o medo do vírus. Estão marcando encontros, saindo, viajando e indo à praia. Faltam algumas semanas para se saber as consequências em hospitalizações e mortes. Enquanto outros países estão bem ou mal, mas pelo menos sabem onde estão, os Estados Unidos estão em terreno desconhecido.
Os Estados Unidos confirmaram 2,8 milhões de casos de covid-19 desde que o primeiro positivo foi descoberto no final de fevereiro. Cerca de 130.000 pessoas morreram. Toda vez que o governador da Califórnia dá os números totais do Estado, acrescenta: “Obviamente, as pessoas não vivem no acumulado, vivem em algum lugar”. O mesmo acontece com os números nacionais dos Estados Unidos. Os problemas estão em lugares específicos. Concretamente, naqueles que se livraram do primeiro impacto. O vírus não está voltando, está viajando das costas para o interior.
Em abril, os contágios dispararam no nordeste. Somente Nova York e Nova Jersey chegaram a ter a metade dos positivos de todo o país. Louisiana, Massachusetts, Connecticut, Michigan e Washington também sofreram surtos. A partir de junho as infecções nesses Estados diminuíram entre 46% (Connecticut) e 87% (Nova York) desde o pico. Agora, três quartos dos novos casos estão no resto do país. Os Estados Unidos registram mais de 50.000 casos diários há três dias seguidos. Os números são entre “preocupantes” e “alarmantes”, dependendo do especialista que fale cada dia. “Inquietante”, disse o principal epidemiologista do país, o médico Anthony Fauci.
Três Estados tiveram os aumentos mais acentuados. Arizona, Flórida e Texas tinham um baixo número de contágios. Começaram a abrir suas economias e a média semanal de positivos aumentou entre 600% e 900%. Na Califórnia, o Estado em que foi registrada a primeira morte por covid-19 e o primeiro a impor ordens estritas de quarentena, a curva permaneceu baixa até a economia começar a abrir.
Arturo Bustamante, professor de Política Sanitária da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), explica que a pandemia “começou nas áreas urbanas mais conectadas com o mundo”. Nova York, a porta dos EUA para a Europa, e Los Angeles e San Francisco, a porta da Ásia. “Depois, passou para cidades secundárias, como Phoenix, Dallas ou Atlanta.” Nesses lugares, o fato de o vírus ter chegado mais tarde coincidiu com o fato de que nunca houve verdadeiras medidas de confinamento e, além disso, começaram a reabrir ao mesmo tempo em que aqueles Estados onde o pico de infecções já havia passado. “Os casos cresceram muito mais depressa porque estão atrás de Nova York ou da Califórnia na pandemia.” Ou seja, reabriram em pleno pico. No Arizona, não há curva, é uma parede vertical.
O aumento dos números em junho coincide com o relaxamento do comportamento individual no feriado prolongado do Memorial Day, em 25 de maio. “As avalanches de novos casos ocorrem com duas a três semanas de atraso. Os números de hoje são a imagem do que aconteceu há três semanas”, explica Bustamante. É por isso que os especialistas estão preocupados com o que este fim de semana, 4 de julho, pode significar nos números de agosto. Reunir-se com familiares e amigos para o feriado nacional dos Estados Unidos é algo irrenunciável para os norte-americanos. Nesta sexta-feira, o prefeito de Los Angeles pediu pelo Twitter que ninguém celebre a festa com pessoas que não morem em sua casa. “Estima-se que 66% dos novos contágios acontecem dentro de casa.”
Bustamante cita várias razões que explicam o aumento geral de contágios. Primeiro, o afrouxamento das regras de confinamento. “As pessoas estão mais na rua e se sentem mais relaxadas em relação às máscaras ou à distância. Há mais festas, reuniões e funerais. Há um grande número de contágios entre as pessoas que sentem que a epidemia já passou.” Este argumento é mais amplo. As pessoas não estão apenas fazendo reuniões em casa, mas viagens não essenciais que foram adiadas durante meses. Nos EUA sempre foi possível sair de casa para passear e viajar de um lugar para outro. Mesmo assim, “existe um clima de exaustão devido ao confinamento” e o desejo de levar uma vida normal. “Eu continuo sem sair de casa. Continuo comprando tudo pela Internet e continuo sem ver ninguém, como no primeiro dia”, diz Bustamante.
Outro fator é o número de testes. “Ele não explica por si só o aumento do número de casos, mas a capacidade de detectar positivos é maior.” Ou seja, antes havia muita gente assintomática ou com sintomas leves que superava a doença sem nunca fazer o teste. O teste de covid-19 agora é “praticamente universal”. No início de abril, 100.000 testes eram feitos diariamente. Agora são mais de 600.000. “Comparar o número de positivos com o início da pandemia não é justo”, afirma Bustamante. As próximas três ou quatro semanas serão determinantes para ver como esses casos evoluem. “Se acabarem em complicações e hospitalizações, será mais crítico. Então é quando talvez seja necessário reverter as medidas.”
Em nenhum desses lugares é possível dizer ainda que o vírus pode estar fora de controle. Mas está a caminho disso. Um dos dados que inspiram certo otimismo é que boa parte dos novos casos tem um perfil mais jovem do que o que se viu em Nova York em abril. Metade dos casos do Arizona tem entre 20 e 44 anos. A idade média das pessoas infectadas na Flórida caiu de 65 para 35 anos. Os jovens estão sendo infectados, o que poderia indicar que apenas uma parte dos contágios acabará no hospital. De qualquer forma, a pressão nos hospitais de Phoenix e Houston já está sendo sentida.
Existe um fator político nisso tudo, acrescenta a professora Naredeh Pourat, especialista em economia sanitária da UCLA. A divisão política no país está começando a afetar a prevenção. “Este país está muito dividido e isto está entrando na saúde pública, o que deveria ser algo fora de discussão. Estou preocupada.” O exemplo mais notório é o do presidente Donald Trump, que até hoje se recusa a usar máscara em público. Até os governadores do Texas e do Arizona, que são hooligans do presidente, usam máscara e pediram à população que o fizesse. No Texas ela é obrigatória a partir desta semana. “Existe uma forte correlação com o aspecto político. A infecção não foi tratada do ponto de vista da saúde pública”, mas da postura política. Na opinião de Pourat, falta uma estratégia federal e a resposta está sofrendo por causa da cacofonia entre as Administrações federais, estaduais, regionais e locais, às vezes com normas contraditórias.
Enquanto em outros países a covid-19 parece controlada dentro de certas margens, os Estados Unidos entram em semanas de incerteza. O país é um gigantesco laboratório em que o mundo vai comprovar o que acontece quando boa parte da população perde o medo do vírus e começa a levar vida normal. A comemoração familiar que define o país, o 4 de julho, será a prova de fogo que definirá em qual direção a pandemia está indo.
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