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China sacode a velha ordem nuclear mundial

Pequim acelera seu programa atômico para se aproximar dos EUA e Rússia, que investem enormes quantias na modernização dos seus arsenais

Programa atomico Pekin
Militares chineses durante um desfile na praça Tiananmen, em 2019.WU HONG
Andrea Rizzi

Primeiro, em meados deste ano, apareceram imagens de satélites de novos campos com silos aptos para mísseis nucleares em diversos lugares da China; depois, aflorou a notícia de dois testes de armas hipersônicas com capacidade nuclear feitas no terceiro trimestre pela potência asiática; e na quarta-feira passada o Departamento de Defesa dos Estados Unidos publicou seu relatório anual sobre o desenvolvimento das forças militares chinesas, no qual observa que Pequim está acelerando seu programa atômico, o que “lhe permite dispor de 700 ogivas nucleares em 2027, e provavelmente procura dispor de pelo menos 1.000 em 2030″. Trata-se de cifras muito superiores às estimativas sobre seu arsenal atual —entre 250 e 350, segundo diferentes fontes— e também à projeção de 2020 do Pentágono, que apontava para o limite de 500 em uma década.

A falta de transparência não permite calibrar com precisão as características do desenvolvimento nuclear chinês. Pequim respondeu ao Pentágono tachando suas projeções de manipulativas. Mas especialistas concordam em apontar que a China impulsiona um ambicioso programa que não só pretende modernizar o tripé de sistemas de lançamento tradicionais —terrestre, submarino, aéreo—, como também experimenta a fundo com tecnologias heterodoxas —mísseis hipersônicos manobráveis— e aponta para um consistente aumento quantitativo, como levam a crer os cerca de 300 novos silos em três lugares diferentes.

O conjunto destas características é o que diferencia a ação chinesa do comportamento das demais potências nucleares. Todas elas implementam planos de modernização de suas forças atômicas. A Rússia desenvolve um persistente trabalho nesse sentido desde o final da década de 1990, quando suas armas estavam ficando obsoletas; os Estados Unidos mantêm desde a era Obama um plano de renovação que implica um gasto de 630 bilhões de dólares [3,5 trilhões de reais] na década atual, segundo uma estimativa do Departamento de Orçamentos do Congresso. Trata-se de uma cifra similar à do PIB de um país como a Polônia. Também a Rússia, como a China, desenvolve mísseis hipersônicos manobráveis com capacidade nuclear. Mas os testes deste ano sugerem um grande salto tecnológico da China e, por outro lado, nem Moscou nem Washington planejam uma expansão de seus arsenais. Ambos estão mutuamente vinculados pelo tratado New START a não mobilizar mais de 1.550 ogivas nucleares.

Apesar de EUA e Rússia terem reduzido sua capacidade nuclear em relação ao apogeu da Guerra Fria (das mais de 60.000 ogivas nucleares que tinham na década de 1980 para as 12.000 atuais, incluindo as mobilizadas, armazenadas e pendentes de desmantelamento), ambos os países seguem dispondo de uma cifra de ogivas nucleares muito superior ao resto. É nesse contexto em que a China —não vinculada pelo New START (embora, sim, pelo mais genérico Tratado de Não Proliferação Nuclear)— parece correr para reduzir o diferencial, com o argumento implícito de replicar no plano nuclear seu status geopolítico geral.

Quanto potencial de alteração dos equilíbrios estratégicos tem este movimento em seu conjunto? “Muito depende de como a China decidir operar esta maior força: se tentará fazer coisas novas ou se encaixará isso dentro de sua existente política nuclear”, comenta por telefone Hans M. Kristensen, diretor do Projeto de Informação Nuclear da Federação de Cientistas Americanos e pesquisador do Instituto Internacional de Investigações para a Paz de Estocolmo.

“Em todo caso, a questão dos silos chama a atenção. São realmente muitos”, prossegue Kristensen. “Em termos de tamanho e velocidade, é algo comparável àquilo que os EUA e a URSS fizeram durante a Guerra Fria. É um programa muito amplo. Se todos os silos forem armados, a China teria mais capacidade nesse quesito que Washington ou Moscou. E se trataria de mísseis intercontinentais com combustível sólido, que podem ser lançados mais rapidamente que os de combustível líquido que a China possui na atualidade”. Isto, sem dúvida, seria levado bastante em conta pelos planejadores militares dos EUA.

Durante décadas, Pequim manteve uma política nuclear de dissuasão mínima, ou seja, dispor do indispensável para que ninguém pensasse em atacá-la nuclearmente. Formalmente, não a abandonou, mas os fatos apontam que esse conceito de ter o mínimo mudou muito. Em parte, pode ser porque a China chegou à conclusão de que sua capacidade de retaliação nuclear é vulnerável a um ataque de surpresa. “Mas essa explicação se choca com o fato de que, no passado, os EUA tinham um dispositivo nuclear ainda maior do que agora, e isso não induziu Pequim a fazer uma escalada naquela época”, diz Kristensen. A outra motivação plausível corresponde, segundo o especialista, a uma questão de “prestígio nacional”: um país que se vê como superpotência não quer ser nuclearmente muito inferior aos Estados Unidos e à Rússia.

Um nível importante em que o avanço chinês pode ter consequências é o dos tratados de controle de armas, elemento fundamental para evitar desastres na Guerra Fria, e que agora atravessam uma fase negativa. A saída dos EUA em 2001 do Tratado de Antimísseis Balísticos abriu a Washington a via para um forte desenvolvimento da defesa que, no final, deu argumentos e estimulou a Rússia, primeiro, e a China, depois, a buscar maneiras de contornar essas defesas cada vez melhores. O Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário —que proibia mísseis terrestres com alcance entre 500 e 5.500 quilômetros— colapsou em 2019, com a decisão de Washington de se retirar após acusar Moscou de violá-lo. O New START, que limita o número de ogivas instaladas, foi prorrogado in extremis no início do ano por um período que expirará em 2026.

“Em minha opinião, não há dúvida de que os avanços chineses afetarão as próximas negociações entre EUA e Rússia. É fácil imaginar que os militares dos EUA dirão ao próximo presidente para não aceitar um acordo com a Rússia que reduza o número de armas nucleares”, observa Kristensen. Washington tenta envolver Pequim em novos esquemas de controle de armamento, mas esta se mostra totalmente resistente, alegando, entre outras coisas, que os responsáveis pela corrida armamentista foram os EUA e a Rússia. Por outro lado, a Administração de Joe Biden planeja publicar sua revisão da política nuclear dos EUA no início de 2022, como faz toda nova presidência. Não é irracional pensar que os avanços chineses influirão na nova doutrina. Há a expectativa de que Biden incluirá uma política de não atacar primeiro, ou de não responder a ataques químicos, biológicos ou convencionais com armas nucleares.

Mas a mensagem do rearmamento chinês vai além das duas grandes potências nucleares. Por um lado, os demais atores da região obviamente tomam nota. Por outro lado, há uma repercussão global. “A China não pode alegar que seu desenvolvimento militar se encaixa com suas obrigações legais nos termos do artigo 6 do NPT de ‘conduzir negociações de boa fé sobre medidas eficazes relacionadas à cessação da corrida armamentista nuclear em data próxima e ao desarmamento nuclear”, disse em uma conversa por telefone Shannon Bugos, pesquisadora da Arms Control Association, com sede em Washington. “O fracasso das cinco potências nucleares do NPT em cumprir seus compromissos de desarmamento nos últimos anos será um ponto de atrito na Conferência de Revisão do NPT prevista para janeiro”.

Bugos destaca ainda que o ritmo real de desenvolvimento do arsenal nuclear chinês nos próximos anos depende em parte de como se desenvolverá a relação estratégica com os EUA e, de maneira mais geral, do que fizerem Washington e seus aliados, principalmente na região.

Os esforços de modernização dos arsenais confirmam que nenhuma das potências nucleares tem em mente o caminho do desarmamento traçado pelo NPT. Entre os signatários armados —EUA, Rússia, China, França e Reino Unido— destaca-se a atitude de Londres. Não apenas está executando um programa de renovação de sua frota de submarinos com capacidade de disparo nuclear no valor de mais de 30 bilhões de libras, como também reverteu sua própria decisão de reduzir o número de ogivas nucleares em seu poder. Depois de definir a meta de reduzi-las de 225 para 180, aumentou o limite para 260.

A França, por sua vez, está em um caminho mais estável, mas também contempla investimentos em manutenção e renovação no valor de 37 bilhões de euros no período 2019-2025. Índia e Paquistão também aprimoram suas capacidades; a Coreia do Norte faz o que pode; Israel, envolvido em sua tradicional política de ambiguidade nuclear, certamente também não está de braços cruzados.

Esse quadro turbulento se completa com o caso iraniano. As negociações para reativar o acordo nuclear rompido pela Administração de Donald Trump devem ser retomadas no dia 29. As posições, porém, permanecem distantes. O novo presidente iraniano, Ebrahim Raisi, uma figura da ala dura do regime, advertiu que não pretende recuar nem um passo. Os europeus se esforçam para dar andamento à situação, mas a perspectiva não é simples. Enquanto isso, as suspeitas crescem, especialmente entre os inimigos regionais do Irã, em um ambiente que não parece tranquilizador.

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