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Governos ficam para trás diante da emergência climática

Cúpula de Glasgow começa com planos insuficientes de redução das emissões. O encontro deve servir para definir quais países estão comprometidos com o abandono do carvão e dos automóveis poluentes e quando o farão

COP26 Glasgow
Efeitos das inundações que atingiram a Europa neste verão na cidade alemã de Bad Neuenahr-Ahrweiler.Bram Janssen (AP)
Manuel Planelles

Nenhum coelho sairá da cartola na cúpula do clima de Glasgow com a panaceia para resolver o problema do aquecimento global. A maioria das cartas ―na forma de planos para reduzir os gases de efeito estufa até 2030― dos grandes emissores mundiais já está sobre a mesa antes do início da COP26, neste domingo, e as promessas continuam sendo insuficientes. Esses planos não vão garantir que o já irreversível aumento da temperatura global permaneça dentro dos limites de segurança estabelecidos pela ciência, razão pela qual terão de ser revistos para cima novamente. Mas a cúpula, de cuja inauguração participarão cerca de 120 chefes de Estado, servirá para voltar a colocar o foco global na luta contra o aquecimento após a pandemia. Além disso, espera-se que muitos países assumam compromissos concretos de abandonar o carvão, definir uma data de validade para os carros a gasolina e diesel e reduzir as emissões de metano, um poderoso gás de efeito estufa. Os países em desenvolvimento também pedirão aos mais ricos que aumentem o financiamento climático para que possam enfrentar um problema que não criaram, mas que lhes causará mais danos do que ao resto.

“Todos conhecemos os alertas científicos, mas as mudanças de hábitos, as mudanças estruturais, não acontecem da noite de domingo para a manhã de segunda-feira”, explica a economista costarriquenha Christiana Figueres sobre a clara desconexão que existe entre as advertências enfáticas sobre o aquecimento e a lentidão dos Estados na hora de lançar a mudança de rumo. Porque enquanto a ciência, os ativistas e uma parte cada vez mais importante da sociedade reconhecem os impactos do aquecimento em sua vida cotidiana na forma de fenômenos extremos e exigem ações, as emissões continuam aumentando e os planos dos governos não traçam um caminho de redução imediata, para esta década, como pedem os especialistas.

Figueres era a chefe da Convenção da ONU sobre mudança climática quando o Acordo de Paris foi fechado em 2015, em uma cúpula como a de Glasgow. Esse pacto se baseia em uma premissa: todos os países do mundo devem ativar planos de redução das emissões para erradicá-las e assim garantir que o aumento da temperatura média do planeta fique entre 1,5 e dois graus em relação aos níveis pré-industriais. O aquecimento já está em 1,1 grau e, como as Nações Unidas acabam de advertir, os planos atuais levariam a um mundo em torno de 2,7 graus mais quente. Cada décimo de aumento implica um risco maior de sofrer fenômenos extremos mais intensos e frequentes, alerta também a ciência.

A situação em comparação com 2015 melhorou um pouco, porque 120 das quase 200 nações que assinaram o Acordo de Paris revisaram seus compromissos no ano passado e mais da metade o fez para cima. Mas a soma de todos os esforços ainda é insuficiente. Por exemplo, para cumprir a meta do grau e meio, as emissões globais devem ser cerca de 50% mais baixas em 2030 em relação a 2010. Mas as promessas atuais levarão a um nível semelhante ao de 2010 dentro de nove anos.

“Não estamos no caminho certo”, admite Valvanera Ulargui, diretora do Escritório Espanhol de Mudança Climática, que fala da necessidade de aumentar “a ambição”. Da cúpula poderia sair um novo chamamento aos países para elevar outra vez seus objetivos, algo já contemplado no Acordo de Paris. De acordo com esse pacto, a próxima atualização deveria ser feita dentro de quatro anos, mas como explicou esta semana a atual chefe da Convenção da ONU sobre mudança climática da ONU, Patricia Espinosa, “este é um processo contínuo” e “as metas podem ser revistas a qualquer momento”.

Para se ter uma ideia do que está acontecendo é preciso olhar para quatro grandes blocos, que sozinhos acumularam metade das emissões globais em 2019, segundo estimativas dos analistas do Rhodium Group. A China era o principal emissor, com 27% do total, seguida por Estados Unidos (11%), Índia (6,6%) e União Europeia (6,4%), em termos absolutos. Se olharmos a lista per capita, esta é liderada de longe pelas nações mais ricas. Destes quatro, os EUA e a UE se comprometeram nos últimos meses a reduzir suas emissões para cerca de metade até 2030, alinhando-se com a trajetória traçada pela ciência, pelo menos no papel. Mas, no caso da China, sua recente atualização estabelece apenas que “antes de 2030″ atingirá o pico das emissões de dióxido de carbono, assumindo que continuarão crescendo nesta década. E a Índia ainda não atualizou seu plano, embora possa fazê-lo durante a COP26.

Credibilidade e ambição

Mas ficar apenas nas promessas de redução é ficar na superfície do problema. É preciso ver como os objetivos serão alcançados. A União Europeia é, talvez, aquela com maior credibilidade nesta luta. No final de 2020 os 27 países membros se comprometeram a fazer uma redução global das emissões de 55% em 2030 em relação a 1990. Mas nos próximos meses será preciso fechar o programa com as medidas para cumprir e há discrepâncias importantes entre os parceiros. A nova Administração de Joe Biden voltou ao Acordo de Paris e em abril definiu uma meta ambiciosa: reduzir suas emissões entre 50 e 52% até 2030 em relação aos níveis de 2005. Mas até o momento seu Governo não conseguiu aprovar o plano climático para cumprir essa promessa devido à falta de apoio no Congresso. Lara Lázaro, pesquisadora do Real Instituto Elcano, lembra que a saída dos Estados Unidos [do Acordo de Paris] realizada por Donald Trump “ainda ecoa”. “E haverá eleições em 2024″, aponta sobre a possibilidade de que outra vitória republicana leve a um novo abandono repentino, como também aconteceu com o Protocolo de Kyoto.

A China, sempre que pode, lembra nesse tipo de cúpula que é um país que cumpriu o que prometeu até agora. Mas o que se compromete a fazer neste momento está muito longe do que a ciência diz que deve ser feito para evitar as piores consequências da mudança climática. No caso do quarto grande ator, a Índia, seu Governo censura os países ricos por não terem colocado sobre a mesa o financiamento prometido. Há mais de uma década se sabia que as nações desenvolvidas teriam de mobilizar 100 bilhões de dólares (cerca de 564 bilhões de reais) anuais até 2020 para ajudar os países menos desenvolvidos a enfrentar os efeitos do aquecimento e reduzir suas emissões. Em 2019, segundo cálculos da OCDE, chegou-se a 79,6 bilhões. Mas um relatório recente capitaneado por Alemanha e Canadá reconhece que a meta de 100 bilhões não será alcançada até 2023.

Covid-19 e recuperação

“Temos o péssimo costume de mudar lentamente de hábitos”, insiste Figueres sobre como é difícil direcionar a economia mundial para a descarbonização. “Exceto com a covid-19”, acrescenta a economista. A cúpula de Glasgow, a 26ª desde a primeira realizada em 1995 em Berlim, deveria ter acontecido há um ano, mas foi impossível por conta da pandemia. Agora a cúpula volta mais limitada no número de participantes devido às restrições sanitárias e com um gosto amargo de oportunidade perdida. Porque muitos quiseram ver na pandemia, e especialmente nos planos de recuperação, uma ocasião perfeita para promover a transição verde. Mas, por enquanto, há pouco disso. António Guterres, secretário-geral da ONU, criticou na semana passada que menos de 20% do gasto público com a recuperação aplicado até meados deste ano era realmente verde ―ou seja, contribuía ativamente para reduzir as emissões de gases de efeito estufa.

Em 2020, as restrições relacionadas ao coronavírus fizeram cair as emissões de dióxido de carbono relacionadas à energia em 5,6%. Mas em 2021 houve uma forte recuperação e espera-se que voltem a crescer até níveis semelhantes aos de 2019. “É como se você deixasse de usar um carro, que deixa de emitir gases. Mas quando você volta a usá-lo, ele expulsa a mesma coisa porque você não o mudou”, diz Pep Canadell, diretor do Global Carbon Project e um dos autores do último relatório do IPCC, o painel de especialistas internacionais que define as bases da ciência sobre a mudança climática. “Cerca de 80% da energia gerada pelos seres humanos vem dos combustíveis fósseis, isso não se muda da noite para o dia”, acrescenta Canadell.

A abertura da economia não levou apenas ao aumento das emissões, mas está levando também a uma escalada global dos preços dos combustíveis fósseis. Essa situação dificulta ainda mais as negociações sobre a mudança climática porque surgem vozes que tentam culpar a transição energética por esse problema e afirmam que se pode estar indo depressa demais. Figueres discorda: “Não fomos depressa, mas lentos demais. Se tivéssemos ido depressa não estaríamos agora nessa confusão de preços”. Porque o que as [energias] renováveis estão mostrando é que, justamente, podem ajudar a baixar os preços da eletricidade e não estão sujeitas às tremendas oscilações dos combustíveis fósseis, os principais emissores de gases de efeito estufa.

Canadell aponta para um problema mais de fundo: “A volatilidade não durará muito, mas provavelmente veremos de novo problemas de abastecimento devido aos extremos de calor e de frio no mundo”. Ou seja, os extremos que aumentam em intensidade e frequência devido à crise climática voltarão a atingir um sistema energético que avança muito lentamente no processo para se desvencilhar dos principais responsáveis pelo aquecimento: os combustíveis fósseis.

O que se espera que aconteça em Glasgow

Na falta de uma mudança radical de rumo, espera-se que da cúpula do clima de Glasgow resultem alguns compromissos pontuais que o Governo britânico, que detém a presidência da COP26, vem promovendo por meio de sua diplomacia internacional. Como explica Keiran Bowtell, adido para a mudança climática da Embaixada do Reino Unido na Espanha, trabalhou-se para que um número considerável de países se junte a alianças para acabar com os carros de combustão e com o carvão para a geração de energia. Também se espera que mais de 50 países se comprometam a reduzir até 2030 cerca de 30% de suas emissões de metano, um poderoso gás de efeito estufa muitas vezes ofuscado pelo dióxido de carbono. Além disso, se procurará fechar um pacto sobre os mercados de carbono, algo que se está tentando sem sucesso há cinco anos.
Também são esperados novos anúncios de países que fixem como objetivo emissões líquidas zero até meados do século. Isto significa que a partir desse momento só poderão emitir gases que possam ser capturados por sumidouros (como florestas e oceanos). Atingir emissões líquidas zero é o que o Acordo de Paris já estabelece e cerca de 75 países já definiram essa meta (embora apenas 11 a tenham protegido por lei). O problema é que em muitos casos esse objetivo para 2050 não se enquadra nos planos de curto prazo, para os próximos oito anos, razão pela qual muitos especialistas põem em dúvida a consistência dessas promessas.

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