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A ‘fábrica’ de ministros do regime do Talibã

A madraça Haqqania, perto de Peshawar, formou pelo menos oito integrantes do novo Governo afegão

Haqqania Pakistan
Centenas de alunos assistem a uma aula na madraça Haqqania, perto de Peshawar (Paquistão), em 11 de setembro.Luis De Vega Hernández
Luis de Vega
Akora Khattak (Paquistão, enviado especial) -
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O mercado que surgiu do desespero em Cabul

É 11 de setembro pela manhã e na madraça Haqqania, a 50 quilômetros de Peshawar (Paquistão) e a 100 do Afeganistão, respira-se certa satisfação e orgulho nos gabinetes. Vários dos 33 membros do novo Governo do Talibã passaram por esta escola corânica de estudos superiores. E isso é interpretado como uma vitória, embora a normalidade acadêmica não se altere. São oito ou nove ministros, calcula Rashid Ul Haq, um dos diretores da madraça e neto do seu fundador. Entre os ex-alunos está o novo ministro afegão do Interior, Sirajuddin Haqqani, líder da rede Haqqani, a ala mais radical do grupo, por quem os Estados Unidos oferecem uma recompensa de cinco milhões de dólares.

“Estamos satisfeitos com a liderança do Talibã” e com “sua vitória no campo diplomático e no campo de batalha”, comenta Ul Haq em um gabinete deste campus construído na localidade paquistanesa de Akora Khattak. Ele destaca a “experiência” e “talento” dos ministros, ao mesmo tempo em que se mostra “surpreso” com o fato de Washington ter negociado durante meses no Qatar com um grupo que tem alguns de seus membros ainda na lista de terroristas dos EUA. Por isso entende que o governo Biden está descumprindo o combinado. “O Talibã não é o Talibã sem os Haqqanis”, e importantes países como a Rússia, China e Paquistão os apoiam, acrescenta.

Safdar Hussain, analista do Instituto de Estudos da Paz do Paquistão, entende que “a madraça Haqqania não é um campo de treinamento nem um lugar operacional ou de planejamento para o movimento talibã”. Na verdade, embora calcule em oito os atuais ministros do Talibã formados nesta instituição, ele não acredita que a escola tenha qualquer relação direta com a mudança de poder em Cabul, nem interpreta que o centro como tal tenha se vinculado em algum momento a atividades terroristas em qualquer lado da fronteira.

Um grupo de alunos faz suas abluções antes da oração do meio-dia.
Um grupo de alunos faz suas abluções antes da oração do meio-dia. Luis De Vega Hernández

Além dos titulares das novas pastas ministeriais em Cabul, encontram-se entre os nomes mais conhecidos da madraça Haqqania os já falecidos ex-líderes do Talibã mulá Omar e mulá Akhtar Mansour, assim como o suicida que assassinou a então primeira-ministra paquistanesa Benazir Bhutto e o cúmplice dele, que foi detido. Mas, 74 anos depois de entrar em funcionamento, este é um dos seminários corânicos mais renomados entre os aproximadamente 35.000 que existem no Paquistão. Conta com ajudas oficiais e de partidos políticos. Entre seus benfeitores está também Amir Khan Muttaqi, o novo ministro de Relações Exteriores do Talibã.

Osama bin Laden, por exemplo, se formou em Engenharia numa universidade sueca. Se uma pessoa se forma num lugar e depois faz alguma coisa, isso é problema dela, não é responsabilidade dessa instituição ou universidade”, alega Rashid Ul Haq, de 49 anos, enquanto acaricia sua barba azeviche, tão perfeita que às vezes parece postiça. Aproveita também a efeméride para condenar os atentados de 11 de setembro de 2001 e a morte de “civis inocentes”. “Mas em nosso país e em todo o mundo islâmico não há um só dia sem um 11 de Setembro”, prega.

O país vizinho ocupa boa parte do seu discurso. “O principal problema do Afeganistão era a lei e a ordem. Com esta mudança, esse problema vai ficar resolvido, inshallah (se Deus quiser). O Afeganistão se tornou um bastião para diversos movimentos”, acrescenta, sem citar diretamente a Al Qaeda e o Estado Islâmico. “Com a chegada do Talibã afegão, todos eles se acabarão”, afirma otimista, em respostas que claramente evitam entrar em terreno escorregadio.

Seus dirigentes não gostam do apelido de “universidade da jihad”, muito difundido na mídia, mas entendem que os jornalistas perguntem a respeito. E respondem com seus argumentos. “Referem-se à nossa instituição educacional pura como escola de combatentes, um refúgio para os terroristas, o pai dos talibãs [apelido do pai de Rashid Ul Haq] etc.. Todos estes títulos foram dados pelo Ocidente, enquanto nosso principal objetivo sempre foi apenas a educação”, defende Ul Haq.

Alunos na área da madraça Haqqania dedicada aos menores.
Alunos na área da madraça Haqqania dedicada aos menores. Luis De Vega Hernández

O Paquistão criou em 2015 um plano para tentar fiscalizar melhor as mais de 30.000 escolas corânicas do país. Busca aumentar o controle dos serviços de inteligência e da Justiça para frear a possível relação delas com o terrorismo, especialmente as que não são consideradas oficiais, que eram entre 8.000 e 10.000 naquele momento.

Esse plano não agrada a todos, pois o grupo composto pelas principais madraças, agrupadas em cinco escolas de pensamento (entre elas a Deobandi, na qual se emoldura a Haqqania), considera que ativismo armado e a religião não estão relacionados, segundo um estudo do Instituto de Estudos da Paz em janeiro deste ano. O Governo teme especialmente o financiamento e a chegada de estudantes estrangeiros. Em todo caso, considera-se uma vitória que Islamabad tenha aceitado manter as madraças sob o guarda-chuva do Ministério de Educação, e não sob os tentáculos dos órgãos de segurança.

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Jihadismo radical

Mesmo assim, o Governo deposto recentemente em Cabul se sentia ameaçado por instituições como a madraça Haqqania, que “geram jihadismo radical, produzem talibãs e ameaçam nosso país”, como afirmou de novembro Sediq Sediqqi, porta-voz do então presidente Ashraf Ghani, à agência AFP.

A madraça Haqqania foi fundada em 1947 pelo maulana (professor) Abdul Haq, avô de Rashid Ul Haq. Posteriormente a direção passou às mãos do pai de Rashid, Sami Ul Haq, conhecido como o “pai dos talibãs” no Paquistão, que foi deputado e senador até seu assassinato em 2018. Hoje, segundo seus responsáveis, a escola conta com 4.000 talib (alunos), dos quais 3.500 vivem no campus —gente de todas as idades, de crianças a idosos, como se pode observar durante a visita. São acolhidos e doutrinados gratuitamente em instalações espartanas. Um grupo de garotos que cozinham num fogareiro junto às escadas de um dos alojamentos mostra o interior da quarto onde oito deles dormem, sem nenhum mobiliário além de alguns colchonetes no chão. Parecem felizes acomodados nessa austeridade.

Um estudante diante do edifício principal da madraça Haqqania, perto de Peshawar.
Um estudante diante do edifício principal da madraça Haqqania, perto de Peshawar. Luis De Vega Hernández

“As madraças atendem em grande medida às necessidades educacionais dos setores mais pobres da sociedade, que não podem levar seus filhos a escola públicas ou privadas”, comenta o analista Safdar Hussain sem ocultar que, atividade filantrópica à parte, elas também despertam olhares interessados dos doadores. Dentro do próprio Paquistão, assinala, essas escolas representam também um peso importante tanto nas ruas como para os partidos religiosos.

Porta para meninas

Junto à zona infantil da madraça Haqqania há uma porta que leva a uma ala destinada a meninas, conforme relata um guia que, veloz, não permite ao repórter nem espiar lá dentro. “As mulheres têm direito à educação”, defende o porta-voz da instituição, Sayed Yousuf Shah, de 56 anos, embora deixe claro que cada gênero tem que estudar no seu canto. A alguns metros desse espaço proibido aos homens, um terreno cercado acolhe um pequeno cemitério onde estão sepultados, entre outros, o fundador da madraça e seu filho, o considerado “pai dos talibãs” no Paquistão.

“O mundo está dando uma chance ao Talibã, e em dois meses tudo vai mudar”, afirma Rashid Ul Haq quase no final da entrevista, lamentando ao repórter o fato de não visitar a Espanha desde antes do 11 de Setembro. Ao contrário do acontecia com seu pai, ele não sofre restrições de viagens, mas nos últimos 20 anos só se desloca entre países muçulmanos. O repórter pede para fotografá-lo e comenta sobre como sua barba é bem cuidada. Ele reconhece então que a tingiu na noite anterior. Saca um pente e a alisa, garboso, antes de posar.

Rashid Ul Haq, um dos diretores da madraça Haqqania, durante sua entrevista ao EL PAÍS.
Rashid Ul Haq, um dos diretores da madraça Haqqania, durante sua entrevista ao EL PAÍS. Luis De Vega Hernández

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