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11 de setembro
Coluna
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20 anos que mudaram o mundo

Vale a reflexão sobre quais foram os valores promovidos pelos EUA no Afeganistão. Vale perguntar quem realmente lutou por direitos fundamentais, direitos da mulher, educação e liberdade de expressão?

Mulheres afegãs participam de protesto contra a interferência do Paquistão na política afegã no último dia 7, em Cabul.
Mulheres afegãs participam de protesto contra a interferência do Paquistão na política afegã no último dia 7, em Cabul.HOSHANG HASHIMI (AFP)
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Chaman (Pakistan), 09/08/2021.- Pakistani security officials stand guard as people stranded at the Pakistani-Afghan border wait for its reopening after it was closed by the Taliban who have taken over the control of the Afghan side of the border at Chaman, Pakistan, 09 August 2021. Taliban'Äôs shadow governor for Kandahar province on 05 August issued a statement that announced the closing down of the border with Pakistan at Chaman, and said Islamabad should relax rules for crossing the frontier. (Abierto, Afganistán) EFE/EPA/AKHTER GULFAM
Retirada dos EUA deixa o caminho livre para ofensiva do Talibã no Afeganistão

A retirada dos EUA do Afeganistão, após duas décadas de ocupação, gastos trilionários e o retorno ao palácio de governo do mesmíssimo grupo que o ocupava em 2001, representa uma clara derrota para os EUA e sua política externa de Guerra ao Terror, empregada para justificar aquela invasão.

Mas a retirada americana cobra uma dimensão bem maior que a derrota no Oriente Médio.

Ela é sintoma do fim da hegemonia norte-americana no mundo, sucedido, na falta de definição melhor, pelo que o sociólogo Immanuel Wallerstein chamou de uma era de transição, caracterizada por enormes incertezas e o surgimento de inquietantes irrupções violentas e conflitos regionais.

A Guerra ao Terror inseriu na cena global a ideia nociva de que para se eliminar uma ameaça, assim percebida e jamais comprovada, era justificado abrir mão do processo legal. Não apenas os ataques a drones foram implementados indiscriminadamente, ou a tortura em Guantanamo e Abu Ghraib, mas no início do século XXI foram criados centros clandestinos de detenção em capitais europeias, por onde passaram, em meio a algumas pessoas possivelmente ligadas aos ataques de 11 de setembro, um número até hoje desconhecido de imigrantes suspeitos pela simples cor de sua pele, torturados, deportados, sem qualquer necessidade de processo legal ou comprovação de delito.

Nos Estados Unidos, a Guerra ao Terror gerou um sentimento de urgência que, sob o pretexto de proteger a América, permitiu a George W. Bush abolir o devido processo no tratamento de detidos, com o respaldo da Corte Suprema. Sob Barack Obama, os métodos mais extremos de tortura foram vedados. Outros, mantidos. Métodos de suspeição e vigilância, que antes poderiam ser empregados contra indivíduos mediante pedido formalizado aos órgãos competentes e alguma comprovação de necessidade, passam a ser exercidos sem justificativa e sobre o bojo da população. O país que, na formulação dos neoconservadores da era Bush, queria levar a democracia ao Iraque e Afeganistão, está sofrendo uma das mais preocupantes crises das suas instituições democráticas.

O ex-presidente Donald Trump, ao mesmo tempo em que colhia os frutos da política do medo instaurada pela Guerra ao Terror, e dos movimentos extremistas e fascistas dela derivados, percebeu que a manutenção da ocupação do Afeganistão cobrava um preço alto demais em um período de retrocesso norte-americano e que convinha focar-se na economia. Jamais fez parte das suas intenções aceitar o ingresso dos afegãos que hoje necessitam de apoio e proteção internacional.

Assim, quando Biden justificou que sua “retirada bagunçada” não poderia ter ocorrido de outro modo, não era mera desculpa, mas a afirmação de uma política de estado que nunca pretendeu evacuar a todos. Quando anunciou o “fim da guerra ao terror”, não sinalizou uma real mudança de rota da política externa. Confirmou que seguirá defendendo os “valores americanos no mundo” e combatendo as “ameaças” por métodos menos onerosos, a partir de fora.

Não foi necessário esperar para conhecer a veracidade das palavras de Biden. Foram muito impactantes as cenas onde centenas de pessoas se lançaram aos aviões militares norte-americanos em plena decolagem, sendo vitimadas de todas as formas no esforço de sair do país. Mas o símbolo emblemático da retirada desastrosa dos EUA do Afeganistão foi a triste família com sete inocentes crianças massacradas por um ataque a drone. Para o Afegão médio, os valores americanos foram levados a bordo de um míssil hellfire. A democracia foi o argumento empregado pelos EUA, mas em última instância, não foi o elemento mais promovido, nem em solo afegão, nem em parte algum do mundo.

Não é de se ignorar que a luta por direitos humanos e direitos das mulheres foi favorecida pela presença norte-americana, no intuito de conferir face mais humana ao seu regime e empoderar uma elite que pudesse viabilizar e mesmo justificar sua presença. Mas a pauta da defesa dos direitos fundamentais não foi levada ao país pelos norte-americanos, mesmo que a Ocupação a tenha promovido.

Pelo contrário, muitos dos afegãos que sem dúvida se beneficiaram da presença americana, ou que nasceram e se formaram no âmbito desse contexto, têm a democracia e os direitos fundamentais como valores próprios, cujas raízes estão embrenhadas nos movimentos intelectuais locais do final do século XIX e início do XX, cujas fontes foram tanto a contraditória troca de ideias promovida pela penetração colonialista européia da mesma época, quanto textos da tradição local.

Ou seja, não são valores transportados ao Islã, pela Europa e os Estados Unidos, exclusivamente ou mesmo primordialmente. Movimentos intelectuais como o reformismo islâmico de Jamal Al Din Al Afani (o Afegão) que marcou todo o Oriente Médio no final do século XIX, ou a nahda (o despertar) que representou enorme fervilhar literário entre os árabes na passagem para o século XX, já discutiam as ideias de progresso e modernização, liberdade de pensamento e de expressão. Toda a região conheceu um importante movimento feminista na década de 1920, que se relacionava em pé de igualdade com o movimento feminista europeu. Nomes como o da egípcia Huda Sha’rawi, o comprovam.

Portanto, vale a reflexão sobre quais foram os valores promovidos pelos EUA no Afeganistão. Vale perguntar quem realmente lutou por direitos fundamentais, direitos da mulher, educação e liberdade de expressão? A resposta se vê nas manifestações de mulheres que hoje ensaiam tomar as ruas do Afeganistão, mas são brutalmente dissipadas pelo novo governo Talibã.

Quando as cortinas se fecharem e o mundo se esquecer de que ali existem movimentos de defesa dos direitos fundamentais, liberdade de expressão, e de emancipação da mulher, os taliban - seminaristas das retrógradas escolas deobandi - sabem que poderão implantar sua anacrônica visão de mundo. Já começaram a fazê-lo, na forma da repressão às manifestações, tortura de jornalistas afegãos, proibição das mulheres praticarem esportes, entre outras arbitrariedades.

As condições para a conquista dos direitos fundamentais, emancipação da mulher, e formas locais de governo democrático, pelos países do Oriente Médio e Ásia, oriundos de um longo processo de descolonização e fabricação de elites nacionais colaboracionistas, vão depender de que mundo irá emergir da era de incertezas que hoje adentramos.

Isso, por sua vez, dependerá do surgimento de relações mais igualitárias, social e economicamente. No plano internacional, defender a desmilitarização e as campanhas contra as armas nucleares para todos os países. Individual e coletivamente, podemos influenciar o mundo bem mais do que se imagina. Vivemos uma cena internacional de múltiplas bifurcações, onde as escolhas recobram enorme importância.

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*Arlene E. Clemesha, é professora de História Árabe da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP).

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