Desespero se espalha no aeroporto de Cabul com a negativa do Talibã de estender prazo para retirada
Controles no Afeganistão se tornam mais rigorosos e agressivos, refletindo as novas diretrizes políticas dos fundamentalistas
A decisão do Talibã de não permitir o controle do aeroporto de Cabul por tropas internacionais a partir de 1º de setembro e de impedir o acesso de mais afegãos ao terminal aéreo tornou ainda mais caóticas e perigosas as tentativas de fuga do Afeganistão desde segunda-feira, quando o anúncio foi feito. Nesta terça, a milícia reforçou os controles de tráfego nos acessos ao terminal aéreo. Há mais veículos militares e mais homens armados com metralhadoras barrando milhares de pessoas que lutam para chegar até lá. Também sua atitude parece ter mudado: está muito mais agressiva e intransigente que nos primeiros dias.
Em uma dessas blitze, na manhã de terça, quando ainda não havia sido anunciada a decisão de impedir a passagem de mais gente, três talibãs, com idades entre 20 e 25 anos, usavam paus e faziam disparos para o ar na tentativa de conter centenas de compatriotas que tentavam passar. A multidão aguardava um descuido dos milicianos que deixassem o acesso livre. É impossível dialogar com eles, apresentar documentos, passaportes ou autorizações. Dão coronhadas com seus fuzis na barriga ou na cabeça de quem ousa abordá-los. É a sua única resposta.
Os que esperam estão unidos pelo desespero e a extenuação. Quem por acaso consegue burlar a vigilância do Talibã se depara, junto aos muros do aeroporto, com um espetáculo ainda mais desolador do que dias antes.
Dezenas de milhares de pessoas tentam alcançar uma das pequenas portas metálicas que dão diretamente no recinto. Onde no domingo havia 10 pessoas, na terça-feira já eram 100. Parecem se multiplicar. Onde no domingo havia pequenas roças ou descampados, agora se espalham dezenas de acampamentos improvisados onde as pessoas aguardam dia e noite por uma brecha que lhes permita entrar no terminal. Há disparos em quase todas as portas. Os soldados que as protegem se mostram cada vez mais nervosos. Houve troca de socos entre soldados de países diferentes, vítimas também do medo e do estresse da situação. Muitos idosos têm dificuldades para entrar, inclusive mulheres que chegaram até aqui em cadeiras de rodas. Na terça-feira tudo levava a crer que a noite seria ainda pior e que pessoas poderiam ser pisoteadas. Já foram contabilizados 20 mortes nas últimas semanas, inclusive de crianças esmagadas.
Yussuf, com um passaporte britânico, um dos milhares que davam voltas ao redor do perímetro do aeroporto procurando a forma de entrar, dizia que “o mundo precisa saber do sofrimento que [governos ocidentais] causaram aos afegãos, as falsas promessas que lhes fizeram de que seriam todos retirados. Isto é uma vergonha para a comunidade internacional”.
Ao seu lado, Mohamed, um jornalista com nacionalidade francesa, perguntava-se onde estavam os soldados franceses para que o ajudassem a entrar. E denunciava, com desespero: “Nem sequer podemos entrar no lugar onde deveriam controlar nossos documentos. Disseram que poderíamos sair, mas agora, a uma semana do prazo, temos pavor só de pensar que o Talibã verá quem queria ir embora. Saberão imediatamente quem somos e onde trabalhávamos, e vão nos levar do aeroporto direto para a cadeia”.
Sem música nem fotos
Enquanto isso acontece no aeroporto e em seus arredores, no centro de Cabul a vida vai mudando um pouco a cada dia, tornando-se mais compatível com a existência preconizada pelo Talibã. E isso já se nota em cada parcela da sociedade. Um importante salão de casamentos parecia fechado na terça-feira. Os funcionários estavam sentados, sem nada para fazer. Um deles contava que durante esta semana alguns talibãs tinham ido lá para avisar que a partir de agora estavam proibidas a música, as fotografias e os vídeos. Por isso fecharam. Fim do negócio.
“Quem vai vir aqui para comemorar um casamento sem música, sem fotos e sem os vídeos que todos querem conservar para vê-los depois? Que casamento é esse?”, acrescentava. O dono do local, conhecido por sua oposição ao Talibã, fugiu para Dubai. E os músicos estão desempregados e sem a menor chance de encontrar trabalho no futuro imediato. “A música deixará de existir”, lamentava o funcionário. É o que mostram os instrumentos destroçados no Conservatório de Cabul. O Talibã visitou nesta semana a instituição para deixar tudo em pedaços.
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