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Caos, socos e desespero ao redor do aeroporto de Cabul: “É preciso chegar lá como for”

Milhares de pessoas se aglomeram às portas do terminal aéreo controlado por soldados dos EUA, na esperança de conseguir deixar o Afeganistão. Só há uma lei para poder partir: a lei do mais forte

Afegãos se aglomeram junto aos muros do aeroporto de Cabul na esperança de serem retirados do país, nesta sexta-feira.
Afegãos se aglomeram junto aos muros do aeroporto de Cabul na esperança de serem retirados do país, nesta sexta-feira.Juan Carlos

Um homem de meia-idade esperava na quinta-feira a 300 metros do portão metálico que dá acesso ao aeroporto de Cabul, controlado pelas forças norte-americanas. É a única saída do país. Não há outra. O homem, com um inglês impecável, perguntou a um jornalista estrangeiro o que precisaria fazer para chegar lá. Entre ele e essa porta se interpunham centenas de pessoas, talvez mil, tão desesperadas como ele para escapar. Mais adiante, alguns soldados afegãos serviam de primeira barreira armados com paus e bastões para impedir avalanches humanas. O funil acabava em um acesso estreito, pelo qual se passava de um em um. O jornalista olhou para o homem e para o resto da família dele ―uma mulher, uma filha de 15 anos e dois filhos pequenos, todos com pequenas mochilas― e lhe aconselhou: “Tem que ir na marra. Atravessar isto aqui como for”.

Foi o mesmo conselho que um funcionário da Embaixada irlandesa deu a um amigo, seu compatriota, que desistiu depois de passar toda a quarta-feira tentando entrar no aeroporto de Cabul, onde recebeu empurrões e socos e brigou com um afegão que também estava na fila. Por isso procurou seu amigo da embaixada e perguntou se havia outra maneira de entrar no aeroporto. Seu contato lhe respondeu com a frase: “É preciso ir na marra. Não tem outro jeito”.

Finalmente, o pai de família olhou desanimado para o portão. Dava a impressão de que não teria forças para atravessá-lo com sua família, empurrando e lutando até chegar o mais perto possível do final do funil. Talvez no dia seguinte estivesse melhor…

Milhares de afegãos esperam nos arredores do aeroporto de Cabul.
Milhares de afegãos esperam nos arredores do aeroporto de Cabul. Juan Carlos

O aeroporto de Cabul, especificamente seu acesso norte, virou um monstruoso gargalo. Diariamente passam por lá milhares de pessoas que tentam pegar um avião qualquer. O calor é asfixiante. Não há sombra. Nem água, nem comida. Além disso, desde quinta-feira os soldados norte-americanos deixaram o trabalho mais ingrato ―dispersar as pessoas a pauladas quando a situação se torna insustentável― aos membros do Exército afegão que se refugiaram no aeroporto após serem derrotados pelo Talibã.

Não há listas, nem nenhum meio de controle numérico, nem ninguém que organize nada. Só existe a sorte de chegar numa hora em que surge uma brecha que permita avançar. Ou ganhar o lugar roubando-o dos outros. Há muitas pessoas que, carregadas de crianças, chegam pela manhã e vão embora à noite sem conseguirem avançar nada. Outros que desistem porque seus filhos pequenos não aguentam mais de fome, de sede e de cansaço. Nos primeiros dias, segunda e terça-feira, os soldados norte-americanos usavam sinalizadores e foguetes para tentar controlar a multidão, mas o ruído assustava as crianças pequenas, que começavam a chorar. Desde que o Exército afegão passou a se encarregar do acesso ao portão, ficou ainda pior: utilizam fuzis com balas de verdade, que deixaram vários mortos nos últimos dias.

Em meio a este caos, um senhor de 70 anos, junto com sua esposa, que andava de bengala, também hesitava. Eles diziam que haviam trabalhado em San Diego, nos EUA, que tinham todos os documentos em regra. Mas não havia forma de que, na sua idade, pudessem se meter na multidão que se empurrava e se agredia para tentar chegar ao começo da fila.

Um homem segura seu passaporte diante dos militares que guardam o aeroporto de Cabul.
Um homem segura seu passaporte diante dos militares que guardam o aeroporto de Cabul. Juan Carlos

Há quem tenha os vistos necessários. Outros portam um certificado de que trabalharam por certo tempo para uma empresa estrangeira. Há quem apresente um e-mail dizendo apenas que a autorização para poder sair está sendo tramitada por algum governo estrangeiro. Na quarta-feira, um homem mostrou o passaporte afegão a um soldado, mas no lugar errado da fila, e o soldado jogou o documento na sua cara. Os soldados, para controlar a multidão, ficam gritando para que todos se sentem, que se agachem ao sol, que não se mexam. Enquanto isso, todos ouvem o ruído dos aviões que decolam do aeroporto, mesmo à noite.

Na quinta-feira, para proteger ainda mais o acesso, o Exército afegão instalou arame farpado entre o corredor que serve de funil e a multidão. Um homem que avançava com seu filho pequeno tropeçou e, para que seu filho não se ferisse, se interpôs entre o arame e ele. Enganchou a manga, machucou a mão. Nada grave. Mas ninguém sabe se houve mais feridos.

Um homem mostra seus documentos no aeroporto de Cabul.
Um homem mostra seus documentos no aeroporto de Cabul. Juan Carlos

Um grande congestionamento

À noite, a maré de pessoas reflui um pouco. Mas não totalmente. Um afegão com passaporte norte-americano dizia na quinta-feira que era seu terceiro dia chegando às 4h da manhã, e que sempre já havia pessoas esperando para passar.

De fato, entrar na área de espera já é quase um milagre. A estrada de acesso ao aeroporto sempre está congestionada. É preciso ir de táxi e chegar o mais perto possível. A partir daí caminhar —carregando malas, sacolas e crianças.

As cercas do aeroporto de Cabul.
As cercas do aeroporto de Cabul. Juan Carlos

Há outro acesso, mas esse está mais controlado pelo Talibã. Até poucos dias atrás, ficava menos cheio de solicitantes, mas agora está quase tão abarrotado como o do portão norte. Um sinal de que cada vez mais gente vai ao aeroporto, de que cada vez se espalham mais o desespero e a sensação de urgência em ir embora do país. Às vezes, os que querem escapar por este portão aproveitam que os guardas do Talibã se distraem ao pedirem os documentos a outra pessoa ou ao olharem para o outro lado, e então correm para chegar ao acesso controlado por soldados dinamarqueses ou ingleses. Mas não é fácil. E se arriscam a serem descobertos e surrados pelos milicianos do Talibã. Fugir de Cabul é como brincar de um macabro esconde-esconde.

Nem sequer é fácil chegar ao congestionamento que leva ao aeroporto. “O Talibã controla não só as vias de acesso ao aeroporto, mas também patrulham as ruas, há controles aleatórios, e as pessoas têm medo de serem abordadas com suas famílias e nem sempre acham seguro ir aos pontos de encontro”, afirmou uma fonte próxima à operação espanhola de retirada, acrescentando que “as comunicações telefônicas são muito ruins e falham”. Entre os colaboradores que desejam ser levados embora há pessoal de todo tipo: “Motoristas, secretárias, tradutores, pessoal local, gente que trabalhava em projetos europeus de desenvolvimento da agricultura, de promoção da mulher, de higiene e saúde...”, disse essa fonte à repórter Patricia Ortega Dolz.

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