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O poço sem fundo da corrupção que tragou o bilionário investimento dos EUA no Afeganistão

Programas com objetivos irreais, ajuda em excesso e desconhecimento do contexto local também condenaram os esforços de Washington ao fracasso. Após pressão, Biden discute adiar retirada total

Militares dos EUA mobilizados perto da aldeia Deh Afghan, em 2006.
Militares dos EUA mobilizados perto da aldeia Deh Afghan, em 2006.John Moore (Getty Images)
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O caos desatado nos últimos dias em Cabul transformou uma decisão popular —a retirada das tropas norte-americanas do Afeganistão— em uma derrota. Mas não foi uma surpresa nem uma fatalidade; tampouco a maldição insondável desse remoto país que muitos chamam de “tumba dos impérios”. O Afeganistão desmoronou como um castelo de cartas apesar dos seguidos avisos de diplomatas, militares e observadores no terreno. Nada menos do que 11 relatórios do inspetor-geral para a reconstrução do Afeganistão (Sigar, na sigla em inglês), uma figura criada em 2008 pelo Congresso dos EUA, constataram as falhas no país centro-asiático, entre elas a impaciência política quanto ao longo prazo, resolvida através de crescentes injeções de recursos, e a insuficiente sinergia das diferentes agências dos EUA envolvidas na operação. São buracos pelos quais sumiram bilhões de dólares. Mas o verdadeiro poço sem fundo é a corrupção endêmica do país, que já em 2010 tragava 25% do PIB nacional.

O incessante maná da ajuda internacional contribuiu para solapar ainda mais os frágeis alicerces do país, segundo muitos analistas. Não só por criar a chamada “fadiga da ajuda”, essa espécie de teto paralisante provocado pelo bombeamento maciço de dinheiro, e que limita ou mesmo joga por terra os esforços; também por engordar as contas bancárias abertas em Dubai por caciques afegãos, como denunciou em 2019 John F. Sopko, o inspetor-geral designado por Barack Obama em 2012. “Os EUA e seus parceiros gastaram muito, e muito rápido, numa economia muito pequena, com pouquíssima supervisão”, escreveu na época. “Fizemos vista grossa ou simplesmente não nos pusemos a par da regularidade que boa parte do dinheiro ia embora em pagamentos por baixo do pano, subornos e contas em Dubai.” O próprio presidente Ashraf Ghani teve que desmentir nesta semana que tenha fugido do Afeganistão com 160 milhões de dólares na mala.

Sopko apresentou sua última avaliação em 31 de julho. “Depois de 20 anos e 145 bilhões de dólares [780 bilhões de reais] tentando reconstruir o Afeganistão, o Governo dos EUA tem muitas lições a aprender […] para salvar vidas e evitar desperdícios, fraudes e abusos no Afeganistão e em futuras missões de reconstrução em outras partes do mundo”, salientava o relatório. O mundo comprometeu no país centro-asiático 2,2 trilhões de dólares —mais do que um ano do PIB brasileiro—, que hoje parecem um investimento a fundo perdido, para não falar na vida de dezenas de milhares de pessoas, afegãs e estrangeiras. O projeto Os Custos da Guerra, da Universidade Brown, estima em 241.000 o total de mortos no conflito.

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O Sigar não é o único a pôr o dedo nessa ferida. Vinte documentos liberados de sigilo e publicados nesta sexta-feira pelo Arquivo de Segurança Nacional (ASN), uma ONG ligada à Universidade George Washington, revelam como as fontes no terreno contradiziam continuamente o otimismo oficial do Pentágono enquanto o Paquistão, oferecendo proteção aos barbudos e ao mesmo tempo mantendo uma relação preferencial com Washington, e a corrupção na cúpula afegã alimentavam a insurgência do Talibã. Para o ASN, não se trata de erros de cálculo, e sim da atuação “enganosa” da Casa Branca desde 2001. “O Governo dos EUA enganou a população durante quase duas décadas sobre o progresso no Afeganistão, enquanto ocultava em canais confidenciais as falhas detectadas”, salienta o ASN.

O próprio Biden ignorou meses atrás as recomendações —mais advertências que conselhos— de comandantes militares que insistiam na necessidade de cancelar uma retirada total e deixar um resquício de tropas para evitar um vazio de poder. Neste domingo, o presidente norte-americano afirmou que há “discussões” com os chefes do seu Exército sobre a possibilidade de estender para além de 31 de agosto o prazo autoimposto para concluir a retirada das tropas, embora ele tenha esclarecido que espera não ter que chegar a esse ponto, explica Antonia Laborde, de Washington. Enquanto a tensão e o caos continuam a se instalar no aeroporto da capital do Afeganistão, o presidente informou que os EUA e seus aliados evacuaram quase 28.000 pessoas desde 14 de agosto, incluindo 11.000 neste fim de semana, entre as quais estavam cidadãos da OTAN e afegãos colaboradores.

O relatório do Sigar recorda as reiteradas garantias dadas pelo alto comando militar (os generais David Petraeus em 2011, John Campbell em 2015 e John Nicholson em 2017) a respeito da “crescente capacidade operacional” das forças de segurança afegãs. “Foram destinados mais de 88 bilhões de dólares (473 bilhões de reais) para apoiar a segurança. Sobre se esse dinheiro foi gasto adequadamente, a resposta será dada pelo resultado dos combates”, disse Sopko profeticamente, apenas duas semanas antes do colapso do país, quando diferentes capitais provinciais caíam como peças de um dominó em poder do Talibã.

O Arquivo de Segurança Nacional detalha os problemas, hoje evidentes, que atrapalham a missão desde o começo, com especial ênfase na “corrupção endêmica, impulsionada em boa parte pelos bilhões norte-americanos e nos pagamentos secretos dos serviços de inteligência aos senhores da guerra”. Mas nem mesmo as atividades mais cotidianas podiam escapar do obrigatório pedágio: receber atendimento preferencial num hospital, transportar combustível pelo país ou passar a escritura de uma propriedade —tudo isso tinha um preço.

“Todos estavam muito conscientes da corrupção generalizada nas mais altas instâncias do poder. Durante anos a comunidade internacional tentou combatê-la; de fato, quando Ghani chegou à presidência os doadores lhe impuseram 20 condições, a primeira das quais era reduzir em 80% a corrupção na Administração”, diz Vanda Felbab-Brown, pesquisadora da Brookings Institution, que compara a corrupção disseminada nas forças de segurança e no Judiciário a uma gangrena.

Diferentemente das autoridades amparadas pela comunidade internacional, indica ela, “o Talibã não foi corrupto, para eles bastavam os dividendos das drogas [o tráfico de ópio], em cujo negócio ele não foi o único agente; também havia os do Governo”, acrescenta Felbab-Brown. “Nos anos noventa, o Talibã granjeou uma reputação de integridade, com casos muito esporádicos de desvio de dinheiro para bolsos particulares, para benefício de suas famílias, mas não de maneira sistemática como as autoridades do país. Sua legitimidade é duvidosa, mas não podem ser acusados de corruptos se levarmos em conta como proliferavam os subornos no sistema judicial padrão, e como essa prática foi erradicada nos tribunais islâmicos durante seu primeiro mandato [1996-2001]”. É um argumento que poderia explicar em parte o apoio popular ao Talibã em amplas zonas do país.

Em outros casos, sem chegar à corrupção, houve um patente desperdício ao financiar objetivos fadados ao fracasso. Entre 2003 e 2015, afirma o relatório de 140 páginas do Sigar, os EUA destinaram mais de um bilhão de dólares a programas de fortalecimento institucional; 90% desses recursos foram para desenvolver um Judiciário padronizado. Foi outro erro de avaliação, além de um desembolso inútil, dada a impossibilidade de impor instituições formais num entorno informal. “No primeiro ano em Helmand [2010], os novos juízes só analisaram cinco casos, porque ninguém costumava recorrer à Justiça. ‘Nunca vimos isto e precisamos ver se funciona’, diziam os locais”, relata o Sigar, constatando que entre 80% e 90% das disputas civis eram dirimidas por meios tradicionais, comunitários.

Felbab-Brown insiste nessa ideia: “Os subornos alimentavam o funcionamento do sistema judicial”. A conclusão do Sigar é clara: “Os EUA não entenderam o contexto afegão e fracassaram em enfocar seus esforços” para a realidade, além de menosprezar “o tempo necessário para reconstruir o Afeganistão, criando calendários e expectativas irreais que priorizaram o gasto rápido, o que aumentou a corrupção”. A isso se soma “a falta de avaliação e monitoramento por parte das agências do Governo” envolvidas. “O ponto que arrematou o fracasso dos nossos esforços não foi a insurgência. Foi o peso da corrupção endêmica”, disse na época o embaixador Ryan Crocker, que dirigiu a embaixada em Cabul em dois períodos, sob Bush e Obama.

“Um investimento a fundo perdido? É difícil dizer agora, só cabe esperar que os avanços em áreas como a saúde— especialmente a materno-infantil— e a educação não sejam revertidos. O Talibã não poderá manter esses avanços se tiverem o financiamento cortado, se não forem capazes de pagar os salários, e só cabe esperar que a geração de tecnocratas educados no exterior [durante a intervenção estrangeira] seja capaz de desenvolver seu trabalho, se é que deixam”, conclui a especialista.

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