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O retorno da jihad

Em Bruxelas, Orlando, Nice, Berlim... o terrorismo atacou o coração do Ocidente em 2016 Mas a Europa não é a vítima mais golpeada pelo terrorismo de raiz islamista

Memorial para as vítimas dos atentados de Bruxelas na Praça da Bolsa.
Memorial para as vítimas dos atentados de Bruxelas na Praça da Bolsa.Adam Berry (Getty Images)

Um detalhe passou despercebido na análise do ataque perpetrado no aeroporto de Zaventem, em Bruxelas, em 22 de março. Um dos que atacaram o aeródromo da capital belga, Ibrahim el Bakraoui, tinha tentado entrar na Síria em junho de 2015. Não conseguiu. Foi detido pelas autoridades turcas em Gaziantep e enviado de volta para a Europa. Menos de um ano depois, entrou em Zaventem e detonou sua carga explosiva. E aqui surge o novo detalhe: Ibrahim el Bakraoui não tinha pisado em solo do autoproclamado califado do Estado Islâmico (também conhecido como ISIS, na sigla em inglês), grupo que assumiu a autoria dos atentados em Bruxelas, com 32 mortos. Nem tampouco seu irmão Khalid, que participou nesse mesmo dia do atentado no metrô de Maalbeek. Nenhum dos dois, delinquentes comuns conhecidos dos serviços de inteligência belgas, tinha sido treinado por homens do Estado Islâmico, como foram aqueles que fizeram os atentados do 13 de novembro precedente, em Paris. As investigações sobre os atentados nas capitais francesa e belga permitiram reconstituir uma única rede terrorista. Mas os Bakraoui eram a exceção. Foi a primeira vez que o Estado Islâmico se valeu de indivíduos radicalizados não treinados em seu território.

A novidade não está livre de nuances. Os atentados de Bruxelas se deram, como último recurso, depois da detenção de um dos foragidos da França, Salah Abdeslam, no bairro bruxelense de Molenbeek. Nesse contexto, a célula organizada e comandada do califado pelo Estado Islâmico desferiu um novo golpe, talvez de modo apressado. É aí em que entraram dois outsiders como os irmãos Bakraoui. Os dois executaram a determinação geral de uma das grandes vozes do Estado Islâmico, Mohamed al Adnani, já morto: se vocês não podem chegar ao califado (hijra) e se unirem aos vossos irmãos [o que parece ter acontecido com Ibrahim el Bakraoui], ataquem onde estiverem, com o que tiverem. O Estado Islâmico deu em Bruxelas um novo passo na descentralização de seu terror. O objetivo: a Europa.

Mas a Europa, de acordo com a análise dos atentados em 2016, não é de modo algum a vítima mais golpeada pelo terrorismo de raiz islamista. Em um mapa do mundo no qual o tamanho dos países guarda relação com o número de ataques/vítimas, alvos como Bruxelas, Orlando, Istambul e Nice são relativamente pequenos em comparação com o dia-a-dia da violência em nações como o Iraque, Afeganistão ou Nigéria. O contexto tampouco é o mesmo: a investida do Estado Islâmico no norte do Iraque, com seu bastião em Mossul, lançou na batalha as forças iraquianas, que, com a aviação norte-americana e a artilharia francesa, tentam arrebatar-lhe terreno. Nessa batalha, o terrorismo do Estado Islâmico é uma tática recorrente como ponta de lança da guerra de guerrilhas que agora empreende na defensiva (a série de atentados em Kirkuk, depois do início da ofensiva em Mossul, em outubro, é prova disso). Além disso, a capital, Bagdá, é alvo praticamente diário das células do grupo, em sua campanha para atacar sobretudo a minoria xiita, mas também seus correligionários sunitas.

A guerra é também o cenário para interpretar os atentados dos dois lados da fronteira afegã-paquistanesa. Pelo avanço dos talibãs, que recuperam distritos perdidos depois da invasão norte-americana de 2001, e pelas cisões em suas fileiras na direção do entorno do Estado Islâmico. Sob esse mesmo guarda-chuva se move também a seita islamista radical nigeriana Boko Haram, hoje em recuo ante a campanha militar regional que a expulsou do nordeste da Nigéria, mas ainda com capacidade para cometer atentados contra a população civil no Estado de Borno.

Iraque, Afeganistão, Nigéria. Os três se encaixam nisso que muitos analistas denominam de buracos negros do terrorismo: pedaços de terra onde o aparato do Estado não está presente nem é esperado e onde os grupos armados operam com liberdade e atacam de forma indiscriminada. E embora seja preocupante pela magnitude da barbárie, não pode ocultar, de novo, o alvo: a Europa.

Voltemos à Europa. 2016 foi o ano em que o Estado Islâmico lançou uma nova semente em sua terceira etapa: de ataques em território controlado ou sonhado (Iraque/Síria), passou a atentados organizados a partir dali com comandos enviados para perpetrá-los (Paris), e investidas, na atualidade, inspiradas pelo grupo jihadista. Mesmo sem que haja elo algum de comunicação. Um fenômeno nada novo na história do terrorismo de raiz islamista: a Al Qaeda, depois de sua derrota no Afeganistão, optou por se descentralizar e atacar no Ocidente por meio de células independentes (Madri, Londres). Assim defendiam líderes como Ayman al Zawahiri e ideólogos como Abu Musab al Suri. Esse é o possível cenário hoje para o Estado Islâmico e os milhares de combatentes que podem voltar a seu país expulsos pela guerra. É o retorno da jihad.

O mapa aponta a quantidade de vítimas mortais do jihadismo em 2016 por país.
O mapa aponta a quantidade de vítimas mortais do jihadismo em 2016 por país.

Comparação

Contabilizar os atentados terroristas de raiz islamista no mundo é um trabalho árduo por várias razões. Primeiro, porque a maioria deles ocorre em países como Iraque, Afeganistão, Síria e Nigéria, onde a guerra, a falta de instituições estáveis, a fragilidade da imprensa livre e a grande quantidade de ataques resultam em uma multiplicidade de fontes nem sempre confiáveis e em um confuso baile de cifras. Os dados de partida são, no melhor dos casos, erráticos.

O segundo problema é uma questão de fundo e uma das chaves para entender a situação da jihad, sobretudo depois da entrada em cena do Estado Islâmico. Traz à tona uma pergunta muito simples com uma resposta muito complicada: o que é um atentado terrorista? Nos países onde o terrorismo é cotidiano, a linha tênue entre terrorismo, insurgência e atos de guerra é extremamente difusa. Nos países ocidentais, onde o terrorismo é raro, os chamados “lobos solitários” e o funcionamento descentralizado do Estado Islâmico dificultam a distinção entre um ato terrorista organizado ou inspirado pelo Estado Islâmico e outro simplesmente perpetrado sob esse guarda-chuva para conseguir maior difusão midiática: por parte do indivíduo que busca ganhar certo status e por parte do Estado Islâmico, que o desfecha para semear mais terror. Para complicar ainda mais o assunto, entra a questão sobre a inclusão ou não da contrainsurgência e do terrorismo de Estado.

Várias instituições, como o Consórcio Nacional para o Estudo do Terrorismo e Respostas, da Universidade de Maryland (autor da base de dados Global Terrorism, utilizada pelo Departamento de Estado dos EUA), ou o Centro de Terrorismo e Insurgência, da consultoria Jane’s IHS, contabilizam em meados do ano os atentados do ano anterior (com base em informações da imprensa e algumas pesquisas próprias). Ou seja, debatem e investigam durante meses que atentados incluir ou não. Ainda assim suas cifras nunca coincidem e não são comparáveis entre si, já que usam fontes e datas diferentes e têm alguns critérios divergentes. Em seus relatórios de 2015, para a Jane’s houve 19.151 ataques e 31.647 mortos, e para o Consórcio, 11.774 ataques e 29.376 mortos. The New York Times e a CNN fazem contagens próprias dos ataques exclusivamente do Estado Islâmico, e sem considerar os ocorridos no Iraque e Síria. Para o jornal foram 1.200 entre outubro de 2015 e julho de 2016 e para a rede de televisão, 2.043 entre julho de 2014 e julho de 2016.

Como, então, comparamos? A Wikipedia tem uma contagem mensal de atentados terroristas publicados como notícias em uma ampla gama de órgãos da mídia internacional. Dessa lista separamos caso a caso somente aqueles de raiz jihadista (não incluímos, por exemplo, os atos dos independentistas curdos do PKK, entre outros). Tampouco consideramos ataques ocorridos no contexto do conflito palestino-israelense, nem atos que poderiam fazer parte de técnicas de guerrilha em uma batalha (por exemplo, a reação do Estado Islâmico à ofensiva em Mossul ou as execuções em massa). O critério geral foi que um atentado terrorista busca intimidar e lançar uma mensagem política, social ou religiosa a um público que vai além de suas vítimas diretas. Da lista resultante também foram eliminados os ataques que não apareciam em pelo menos dois órgãos confiáveis da mídia ou que provinham de publicações sem uma fonte fidedigna. Quando o número de vítimas referido variava, sempre consideramos a cifra mais baixa, e sem contabilizar os terroristas que morreram nos ataques. A tortura, o estupro e a extorsão são práticas comuns do terrorismo, mas só contamos os mortos. Também não computamos os feridos em atentados, já que, se as cifras de mortos são pouco confiáveis e variam de uma notícia a outra, imaginem como são as dos feridos.

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