Derrota de Trump abala o populismo no mundo, mas não o derruba

Os Governos e partidos da Europa e da América Latina que recebem com frustração o afastamento de sua grande referência continuam desfrutando de considerável popularidade

Donald Trump recebe Jair Bolsonaro para jantar na Flórida, em marçoTom Brenner (Reuters)

A saída de Donald Trump da Casa Branca deixou os movimentos populistas sem sua liderança mais visível no poder mundial. Alguns líderes e Governos confiavam com entusiasmo na reeleição do presidente dos Estados Unidos, com destaque para Hungria, Polônia e Brasil. Não saiu como esperavam. Mas sua derrota está longe de ser o fim das tendências eleitorais que nos últimos anos colocaram os partidos de extrema direita no comando de vários executivos ou na liderança da oposição.

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A vitória de Trump em 2016 foi um presente para líderes como Jair Bolsonaro no Brasil, Viktor Orbán na Hungria, Vladimir Putin na Rússia, Narendra Modi na Índia e Rodrigo Duterte nas Filipinas. O presidente do país mais poderoso do mundo ingressou em um clube de contornos difusos formado por dirigentes nacional-populistas. “Isso complica um pouco suas vidas porque eles perdem seu ídolo”, diz o analista Oliver Stuenkel, colunista do EL PAÍS, que acrescenta: “É óbvio que eles vão analisar os erros que Trump cometeu e que farão o que for preciso para evitá-los. Trump não tinha a disciplina necessária para permanecer no poder. Com um pouco mais de disciplina, de tenacidade, de pragmatismo, poderia ter vencido as eleições”.

Na Europa, em particular, tanto os partidos nascidos antes da vitória do presidente dos Estados Unidos em 2016 como aqueles que cresceram no rastro de seu mandato continuam a gozar de uma importante parcela de popularidade, como é o caso de Orbán. E embora o drama da covid-19 tenha deixado em segundo plano seus proclamas identitários e xenófobos, analistas alertam que a tremenda ressaca econômica e social que a pandemia deixará poderá revitalizar a força eleitoral de partidos como o Reagrupamento Nacional, na França, a Liga na Itália, a Alternativa pela Alemanha (AfD) e o Vox, na Espanha.

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A vitória de um político com o perfil de Trump há quatro anos teve mais repercussão entre os populismos do que a derrota agora do republicano. Pawel Zerka, analista do Conselho Europeu de Relações Exteriores, acredita que o ímpeto de 2016 sobreviverá à saída do atual inquilino da Casa Branca “porque Trump mostrou que não há tabus e isso torna mais elegíveis os populistas europeus ou de qualquer outra parte do mundo”.

Além do mais, a hidra populista agora tem muito mais cabeças, tanto visíveis como soterradas. E sua influência não se limita mais aos extremos do arco político, pois também está no cerne das formações tradicionais à direita e à esquerda. Tanto o Partido Popular Europeu (PPE) como os Socialistas (S&D) e os Liberais (Renew) abrigam grupos e líderes claramente identificados com a corrente populista mundial que entre 2016 e 2018 assumiu o poder nos Estados Unidos, Brasil e Filipinas, ficou às portas do Governo na Holanda e na Itália e conseguiu a saída do Reino Unido da UE.

“Sofreram um duro golpe com a derrota de Trump, mas o trumpismo e o populismo continuam vivos”, concorda Shada Islam, analista e fundadora do New Horizons Project, uma empresa de consultoria e serviços estratégicos com sede em Bruxelas. Islam acredita que os partidos tradicionais cometeriam um erro se dessem por derrotadas as candidaturas eleitorais populistas. E recomenda que a presença de Joe Biden na Casa Branca seja aproveitada “para se estabelecer uma corrente transatlântica progressiva que se contraponha à articulação internacional que o populismo organizou durante o mandato de Trump”.

A pressão populista no Velho Continente atingiu seu auge entre 2016 e 2019: o Brexit se impôs no referendo do Reino Unido, a extrema direita de Marine Le Pen parecia estar às portas do Eliseu na França e a de Geert Wilders aparecia com possibilidades de assumir o Governo da Holanda. O líder da extrema direita italiana, Matteo Salvini, alcançou a vice-presidência do Governo (vice-premiê) de seu país. Além disso, Steve Bannon, ex-conselheiro de Trump, agora caído em desgraça por seus problemas com a Justiça, desembarcou na Europa com a intenção de encorajar uma onda populista que arrasasse nas eleições para o Parlamento Europeu.

Mas as previsões mais catastróficas não se concretizaram. A vitória de Emmanuel Macron na França marcou um ponto de inflexão no avanço dos populistas, que também não conseguiram se tornar uma força-chave no Parlamento europeu. Bannon partiu em retirada. E Salvini caiu do Governo por um erro de cálculo eleitoral. A reeleição de Trump significaria o fim da sequência de reveses. Mas a maré de votos democratas impediu seu segundo mandato, apesar do bom resultado obtido por ele.

“Uma das consequências positivas do populismo é que provoca uma grande mobilização do restante do eleitorado”, diz Zerka. Ele recorda que a grande participação nos Estados Unidos também ocorreu nas eleições presidenciais de julho na Polônia, onde o populismo nacionalista liderado por Jaroslaw Kaczynski continua vencendo as eleições, mas se depara com uma resistência popular cada vez maior.

A Europa Central e do Leste se tornou um dos principais celeiros do voto populista no âmbito da UE. E o único onde os dirigentes mais próximos de Trump estão no poder, seja de forma arraigada, como Orbán na Hungria, ou de maneira instável, como Janez Jansa na Eslovênia. Tanto Orbán quanto Jansa pertencem ao PPE. Mas suas estratégias políticas são muito mais semelhantes ao populismo de Trump do que ao conservadorismo tradicional da primeira-ministra alemã, Angela Merkel.

“Sem dúvida, a vitória de Biden complicará a futura atitude política de líderes como Orbán ou Jansa”, prevê Boris Vezjak, filósofo e professor da Universidade de Maribor, na Eslovênia. Vezjak acredita que a Hungria, a Eslovênia e outros países da Europa Central terão mais dificuldade em continuar com políticas que, na opinião deste filósofo, “defendem novas formas de autoritarismo e a chamada democracia iliberal, com a liberdade individual limitada e subordinada a uma cultura nacional e à tradição”.

Os populistas europeus perderão, de cara, o incentivo que recebiam da Administração Trump por meio de seus embaixadores e enviados no Velho Continente. “Os embaixadores de Trump se dedicavam a propagar o populismo, a insultar a UE e a tentar erodir o sistema democrático em geral”, acusa Islam. Talvez o mais beligerante de todos os diplomatas procedentes de Washington tenha sido Richard Grenell, estrategicamente colocado em Berlim e enviado especial aos Bálcãs para mediar o conflito entre a Sérvia e Kosovo. Grenell chegou a ser descrito na Alemanha como “uma máquina de propaganda tendenciosa”. Assim que chegou a Berlim e em meio à ascensão da AfD, de extrema direita, Grenell afirmou que parte de sua tarefa como diplomata era “dar poder a outras forças conservadoras na Europa”, aludindo à substituição de partidos tradicionais como o de Merkel.

A perda do incentivo diplomático de Washington e do apoio financeiro que Bannon tentou canalizar pode enfraquecer os populistas europeus. Entre os potenciais prejudicados está o atual primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, que, embora não se enquadre na classificação de populismo puro, mostrou sem rodeios sua boa sintonia com Trump. Depois do Brexit, Johnson esperava chegar a um rápido e vantajoso acordo comercial com os Estados Unidos, graças a essa relação privilegiada com a Casa Branca, que obrigasse a UE a aceitar termos semelhantes. O pacto de Londres com Washington não chegou e a entrada de Biden deixa essa possibilidade ainda mais distante, o que forçará Johnson a ajustar sua posição negociadora com Bruxelas a menos de 50 dias da consumação, em 31 de dezembro, da saída do Reino Unido da UE.

Zerka também acredita que os ultraconservadores norte-americanos vão se concentrar nos próximos quatro anos na oposição a Biden e na tentativa de retornar à Casa Branca, o que deixará líderes próximos a Trump, como Johnson, Orbán e Kaczynski, sem interlocutores disponíveis em Washington. Islam, por sua vez, está convencida de que “a colaboração populista transatlântica se intensificará porque essas forças têm uma agenda de longo prazo e a experiência dos Estados Unidos lhes mostrou que aquelas que ainda não tomaram o poder podem fazer isso”.

Os analistas concordam em que a grave crise econômica causada pela pandemia, cujo maior impacto poderia ocorrer no primeiro semestre de 2021, dará ao populismo europeu a oportunidade de recuperar o terreno perdido. Nos últimos meses se viu deslocado pelas medidas de ajuda emergencial e de estímulo fiscal adotadas pela maioria dos Governos. “Mas se a pandemia se prolonga, a frustração aumentará e os líderes populistas estão cientes de que poderão transmitir sua mensagem”, prevê Zerka. Sem Trump e com a pandemia no meio, o populismo europeu está abalado, mas não afundado. Somente agachado.

Revés para Bolsonaro

Fora da Europa, o Brasil é um dos principais expoentes do populismo. O resultado eleitoral dos Estados Unidos representa para Bolsonaro, além de um descontentamento pessoal, um revés político e diplomático. Primeiro, perde seu aliado mais estratégico e poderoso. E também “a narrativa de que esta é uma espécie de Governo do futuro, na vanguarda do processo político, foi derrotada”, explica Oliver Stuenkel, da Fundação Getulio Vargas. Uma boa notícia para os que acreditam na democracia e nas sociedades abertas.

A chegada de Trump à Casa Branca em 2017 deu asas à vitória eleitoral de Bolsonaro, seu discípulo mais fiel, mas não é o único fator que a explica. O brasileiro se encaixa perfeitamente na tradição do caudilho latino-americano. A primeira consequência para o Brasil de Bolsonaro é que, sem um Trump no poder atraindo quase toda a atenção, o escrutínio sobre o gigante latino-americano aumentará. E “com Biden apoiando o multilateralismo e o meio ambiente, o custo da atuação radical do Bolsonaro no exterior vai aumentar muito”, acrescenta o analista.

Mas moderar suas posições dentro e fora do Brasil implica um desgaste do apoio fundamental que lhe dão seus partidários mais extremistas. A política externa brasileira deu um giro enorme neste biênio para focar em questões que, em sintonia com a Casa Branca trumpista, ativam sua base eleitoral mais leal, como as críticas pontuais e estridentes à China, o alinhamento com Israel, a defesa de valores conservadores cristãos, a batalha contra o feminismo e os direitos das minorias.

O Brasil ficará isolado como nunca antes, mas a popularidade do presidente tem melhorado, apesar de sua recusa explícita em administrar a pandemia que causou mais de 160.000 mortes, enquanto os desempregados agora já são 14 milhões. Bolsonaro deu mostra de seu instinto político ao aprovar rapidamente um dos maiores pacotes de ajuda pública do mundo, o que amorteceu o golpe e fez sua popularidade disparar.

Outro grande aliado de Trump na América Latina é Andrés Manuel López Obrador, no México. A vitória de Biden abalou a política externa do Governo mexicano, que mantém sua recusa em felicitar o democrata, informa Jacobo García. A reação de Trump após a derrota remete ao protesto público que López Obrador empreendeu em 2006, quando perdeu a eleição presidencial para Felipe Calderón por uma estreita margem de 250.000 votos e mobilizou milhares de seguidores nas ruas. Isso provocou uma crise institucional sem precedentes.

Ao mesmo tempo, a derrota de Trump exige de López Obrador um jogo de cintura política incomum para ele. O presidente terá de reciclar as boas relações que estabeleceu com Trump, a quem sempre se refere em termos elogiosos como um presidente respeitoso. As boas relações que afirma ter com ele significaram, no fundo, suportar em silêncio cada um dos ataques de Trump e permitir que o republicano usasse desde sua primeira campanha em 2016 os insultos ao México como forma de somar votos entre o eleitorado mais racista.



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