Na Hungria ou no Brasil, a arte volta a ser escudo da democracia
O mesmo líder que ameaça os teatros é aquele que vem proliferando encontros com o Governo de Jair Bolsonaro
“Se o governo continuar permitindo que algumas pessoas pensem pela própria cabeça […]; e se continuar permitindo espetáculos como este, com tudo que a gente já disse e ainda vai dizer —nós vamos acabar caindo numa democracia!”
O trecho faz parte da obra Liberdade, Liberdade, de Flávio Rangel e Millôr Fernandes. Bem-humorada e contundente, ela trazia alertas sobre os riscos que o Estado de Direito e as liberdade fundamentais atravessavam nos anos 60, no Brasil.
Mas seu texto traz um recado que, décadas depois, ecoa hoje de forma intensa em diferentes parte do mundo: a liberdade de expressão e a arte são ameaças àqueles que desprezam a democracia.
Nesta semana, o Governo de extrema direita de Viktor Orbán aprovou uma lei que submete todos os teatros do país ao Estado.
Um novo Conselho Nacional da Cultura será criado para permitir uma “direção unificada e estratégia de vários segmentos da cultura”. Mas o projeto de lei também diz que organizações culturais, tais como teatros, devem “defender ativamente os interesses da nação”.
Caberia ao Governo escolher os diretores de teatros que tenham qualquer tipo de financiamento do estado ou de municípios. Na prática, 90% dos teatros do país se beneficiam de algum tipo de subvenção, isenção de impostos ou publicidade estatal. O resultado é a transformação da cultura na Hungria em um assunto de Estado. Em seu pior sentido.
Depois de controlar a imprensa e parte das universidades, muitos temem que o foco de Orbán agora seja o de silenciar as vozes dissidentes na cultura. Ainda em 2018, ao vencer sua terceira eleição, ele deixou claro que havia recebido o mandato para “construir uma nova era”.
Nessa “obra”, a cultura passa a ser considerada como estratégica, inclusive para desmobilizar a oposição e frear a capacidade da sociedade civil em dar respostas a um regime que há muito tempo deixou de ser democrático.
Pelo país, protestos foram realizados, enquanto artistas alertaram que a medida teria sido aplaudida pelo regime comunista que governou a Hungria por décadas. Mas, controlando uma parcela significativa do Parlamento, Orbán conseguiu passar sua lei.
A censura e o controle já vêm sendo uma marca de Orbán nas artes. Mas jamais de forma direta. Artistas medíocres que assumiram o papel de ser o porta-voz do Governo passaram a receber volumosas ajudas financeiras. Já mitos da cultura local desapareceram dos palcos.
Nos teatros nacionais, o programa também foi fortemente influenciado pela ideologia política do Governo. Num deles, todas as peças em 2019 foram dedicadas a temas cristãos, uma das bandeiras do líder húngaro. A imprensa aliada ao Governo também passou a ser usada para derrubar mostras ou programas que não convém ao primeiro-ministro. Uma exposição sobre Frida Kahlo, por exemplo, foi atacada por suas ideias comunistas.
Uma turnê do musical Billy Eliot foi interrompida antes de seu final depois que os porta-vozes do Governo passaram a atacar a obra e alertar que ela estaria convidando os jovens a adotar a homossexualidade.
Teatros independentes também sofreram com a queda de subsídios, enquanto diversos outros grupos ficaram sem patrocinadores. Empresas, mesmo privadas, foram alertadas sobre quem bancariam. Caso o cantor ou ator fosse da oposição, a empresa correria o risco de perder contratos públicos.
A transformação artística também se nota nas ruas de Budapeste. Numa das principais praças do país, Orbán ergueu na madrugada de 20 de julho de 2014 um monumento simbolizando o ataque de uma águia nazista contra o Arcanjo Gabriel, representando os pacíficos e inocentes húngaros. A mensagem era clara: a Hungria jamais colaborou com Hitler e, portanto, não tem responsabilidade sobre os massacres.
A reação popular foi de indignação e, diante do monumento oficial, cidadãos colocam quase semanalmente mensagens e itens pessoais para provar que o Governo húngaro da época colaborou com os nazistas. “Este monumento é uma mentira que atende a uma intenção política”, diz uma mensagem, lembrando que a Hungria foi o primeiro país europeu a ter leis antissemitas.
O grupo de manifestantes alerta que a escultura é uma concessão à extrema direita húngara e que sua retirada, um dia, significará a volta da “liberdade” ao país.
O mesmo Governo húngaro que ameaça os teatros é aquele que vem proliferando encontros com o Governo de Jair Bolsonaro. Em um ano, foram seis reuniões e visitas de alto escalão entre os dois Governos. Numa delas, o novo e polêmico secretário de Cultura, Roberto Alvim, esteve com representantes húngaros no mesmo dia em que, na Unesco, atacou a cultura brasileira dos últimos 20 anos, “denunciou” uma “tirania” e reivindicou um retorno ao “belo” e aos “clássicos”. Sempre para a glória da nação e do Senhor.
Mas ele não está sozinho na Cruzada. No Governo Bolsonaro, descobrimos graças ao maestro Dante Mantovani, novo presidente da Funarte, que os Beatles vieram “para combater o capitalismo” e implantar o comunismo.
Já a Biblioteca Nacional será liderada por uma pessoa que associou Caetano Veloso, Legião Urbana e Gabriel O Pensador ao analfabetismo. “Livros didáticos estão cheios de músicas de Caetano Veloso, Gabriel O Pensador, Legião Urbana. Depois não sabem por que está todo mundo analfabeto”, escreveu Rafael Nogueira, em 2017.
Nesta semana, deputados do PSOL entregaram à ONU um apelo urgente, pedindo ações contra o Governo Bolsonaro por conta de medidas de censura às artes e cultura no Brasil.
Na Hungria ou no Brasil, não há como negar que a arte sofre um duro ataque. E existe um motivo: ela é e sempre será subversiva. Mesmo em um palco nu, numa fala bem-humorada ou num acorde deliberadamente dissonante, ela tem o poder de desafiar o poder. Ela exige diálogo, algo inexistente fora de uma democracia. Ela exige a tolerância, ausente de qualquer poder autoritário.
Alguns de seus maiores expoentes foram aqueles que usaram sua criatividade para denunciar a injustiça, para promover a liberdade. A poesia jamais foi um luxo. Qiu Jin ou Ana Blandiana não foram apenas escritoras. Foram expressões de liberdade. Jose Rizal foi julgado por rebelião no final do século 19 por escrever um romance em que denunciava a violência dos colonizadores espanhóis.
Nas trincheiras da luta pela liberdade e democracia no século XXI, a arte volta a ser seu maior escudo. E por isso é temida por aqueles que estão no poder. Por qual motivo aquele que é o chefe de tanques e artilharia estaria preocupado com uma mulher desarmada recitando poesias?
Ao longo dos séculos, artistas foram manipulados, silenciados e destruídos por líderes na busca de conquistar “corações e mentes” de uma população prisioneira de um regime. Ou simplesmente para fazer vingar uma visão autoritária do mundo, em que a liberdade de expressão é um crime.
Poucos conheceram essa arbitrariedade de tão perto quanto o compositor Dmitri Shostakovich. Após a Segunda Guerra Mundial, ele foi acusado pelas autoridades soviéticas de promover “música inapropriada” e de influenciar a arte local com influências ocidentais. Ou seja, capitalistas.
Um decreto determinou que apenas “músicas proletárias” fossem compostas. Shostakovich teve de pedir desculpas em público, suas obras foram proibidas de serem executadas, seu posto no Conservatório foi encerrado e seus subsídios cortados. Convencido de que seria preso, ele passou uma certa noite ao lado do elevador de seu prédio, esperando pelos agentes do estado. Assim, evitaria tumultuar o local. Sua prisão jamais ocorreria.
Qualquer músico sabe que o silêncio tem seu papel numa obra, sempre que essa pausa for livremente construída para permitir a mudança de um cenário, de um diálogo, de uma ideia.
Quando esse silêncio é imposto, ele se transforma em violência. E fere não apenas uma obra artística ou a liberdade de expressão. Mas a existência humana.
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