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Mulheres e jovens explodem contra a Polônia ultraconservadora

Última sentença do Tribunal Constitucional que restringe ao máximo o aborto foi o detonador que provocou as maiores manifestações contra o Governo e a Igreja católica no país eslavo

Uma mulher com um cartaz da organização feminista que lidera os protestos contra o Governo da Polônia na sexta-feira em uma enorme manifestação em Varsóvia.
Uma mulher com um cartaz da organização feminista que lidera os protestos contra o Governo da Polônia na sexta-feira em uma enorme manifestação em Varsóvia.Leszek Szymanski (EFE)

Dez dias se passaram desde que surgiu a faísca do descontentamento e o mal-estar social na Polônia. Durante esse tempo, centenas de milhares de mulheres e jovens saíram às ruas das principais cidades do país para protestar como não haviam feito até agora contra o Governo. Disseram basta. Temem perder seus direitos. E se afastar ainda mais da Europa. Rejeitam a Polônia tradicional, nacionalista e católica há anos moldada pelo partido ultraconservador Lei e Justiça. Pela primeira vez, muitos poloneses questionam abertamente o papel da Igreja a ponto de invadir uma missa de domingo para protestar contra a influência política do clero. Outros setores também se mobilizam pela gestão das autoridades na segunda onda da pandemia. O desencadeador de tudo isso foi a sentença do Tribunal Constitucional em 22 de outubro que restringe ao máximo as possibilidades de abortar em um país que já estava entre os mais restritivos de toda a Europa na interrupção voluntária da gravidez.

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Pro-choice activists from "Women Strike" (Strajk Kobiet)attends a protest in front of Poland's constitutional court who is expected to issue a ruling that could lead to an almost total ban on abortion, in Warsaw on October 22, 2020. (Photo by Wojtek RADWANSKI / AFP)
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A sentença estabelece que a partir de agora será inconstitucional o aborto por malformação fetal, o que afetará 97% dos realizados na Polônia. “Isso é mais um ataque aos direitos das mulheres que não iremos permitir”, disse na sexta-feira uma combativa Marta Lempart, o rosto mais visível do movimento de mulheres que lidera os protestos. Lempart é uma das representantes da organização feminista Strajk Kobiet (Greve Nacional das Mulheres, em polonês); “Mas isso agora vai além da rejeição à sentença do aborto. As pessoas estão muito irritadas. Perdemos o Estado de Direito, não há independência judicial, o coletivo LGTBI é atacado, vimos que brincam com nossa saúde na pandemia. As pessoas odeiam cada vez mais Kaczynski [vice-primeiro-ministro e líder do partido do Governo]. Veremos isso nesta tarde nas ruas”, disse a ativista, de 41 anos.

Marta Lempart, rosto mais visível do movimento feminista contra o Governo da Polônia, na sede da Strajk Kobiet em Varsóvia na sexta-feira.
Marta Lempart, rosto mais visível do movimento feminista contra o Governo da Polônia, na sede da Strajk Kobiet em Varsóvia na sexta-feira.

Sob o lema “Todos a Varsóvia”, na tarde de sexta-feira milhares de pessoas atenderam à convocação da Strajk Kobiet. Foram mais de 100.000 de acordo com as organizadoras; 50.000, contaram as autoridades. Oskar Tokarczuk viajou com seus amigos de Breslávia a Varsóvia (três horas e meia de ônibus). Reconhece que tinha um pouco de medo de vir à capital, muitos preferiram se manifestar em sua cidade. Mas o grupo de amigos não queria perder a marcha em Varsóvia. “Achamos que se estão tirando direitos das mulheres também o farão conosco”, disse o estudante de Odontologia de 20 anos. No rosto, Tokarczuk usava óculos de plástico para o caso de a polícia voltar a utilizar gás pimenta contra os manifestantes.

Cresce o repúdio à Igreja

“Não havíamos presenciados um movimento de jovens tão forte desde a queda do comunismo”, diz Ewa Kulik-Bielinska, diretora do think tank polonês Fundação Stefan Batory. “Vivemos em uma democracia liberal em que prima o individualismo, e os jovens sentem que o veto ao aborto é um ataque a sua liberdade pessoal”, acrescenta. Mas há outros elementos de irritação de parte da sociedade polonesa, que está há anos muito dividida. Até agora pouca gente questionava os direitos dos sacerdotes em um país que sente que deve muito à Igreja Católica por seu importante papel na desintegração do regime comunista. Aqui se idolatra o Papa polonês João Paulo II. “Mas a revelação dos casos de pedofilia dentro da Igreja e a falta de investigação desses abusos enraiveceu parte da sociedade”, diz a escritora feminista Agnieszka Graff.

Um grupo de fiéis em frente à igreja da praça das Três Cruzes, na sexta-feira em Varsóvia, guarda o templo para evitar incidentes com os manifestantes.
Um grupo de fiéis em frente à igreja da praça das Três Cruzes, na sexta-feira em Varsóvia, guarda o templo para evitar incidentes com os manifestantes. WOJTEK RADWANSKI (AFP)

O padre dominicano Michal Pac se mostra preocupado por esse cansaço. “Na Polônia estamos vivendo um ambiente parecido ao de antes da Guerra Civil espanhola. Há muita divisão. Tanto Marta Lempart como Kaczynski exacerbam os ânimos ainda mais”, conta do monastério de São José, em um bairro ao sul de Varsóvia. Pac, de 43 anos, confessa que os ataques da última semana sofridos por algumas igrejas lhe assustam. “Mas não creio que essas manifestações cheguem ao nosso templo, estamos longe do centro”. O padre lembra que a postura do aborto na Igreja é a mesma de sempre, mas não se mostra muito de acordo com a linha dura – e algumas vezes até reacionária – do arcebispado católico na Polônia em debates sociais como a igualdade de gênero e as liberdades do coletivo LGTBI. “É preciso convencer os fiéis para que voltem às igrejas, mas não obrigá-los”.

Na quarta-feira Kaczynski, principal artífice da guinada autoritária do país que provocou uma ruptura entre a UE e a Polônia, pediu em um discurso nas redes sociais “que defendam as igrejas”. Há nervosismo no Governo porque ninguém esperava uma reação assim da população. Também não ajuda a crise sofrida há pouco pela coalizão que ocupa o poder e que mostrou as rachaduras entre uma direita mais radical e outra mais moderada. De setembro até agora, o partido Lei e Justiça (PiS) teve a pior queda em intenção de voto em seis anos, de acordo com uma pesquisa da empresa Kantar.

Mal-estar pela gestão da pandemia

Por outro lado, o mal-estar pela gestão da pandemia durante a segunda onda cresce a cada dia. No sábado a Polônia, com 38 milhões de habitantes, voltou a bater um novo recorde de contágios (21.897). Se na primavera (do hemisfério norte) o país eslavo foi um exemplo de contenção, o relaxamento das medidas no verão e a falta de previsão causaram um autêntico desastre de gestão sanitária. No feriado de Todos os Santos os cemitérios poloneses estão totalmente fechados. A sexta economia da UE também foi atingida pelo coronavírus e a ameaça da primeira recessão do país desde a queda do comunismo em 1989 é mais tangível (de 4,6% de acordo com o FMI). Ao meio-dia de sexta-feira, 400 motoristas de ônibus bloquearam o tráfego do centro de Varsóvia em protesto pela falta de ajudas a um setor muito castigado pela covid-19, como é o turismo.

Protesto de fazendeiros em Varsóvia contra a lei animalista que ameaça seu negócio em 13 de outubro em Varsóvia.
Protesto de fazendeiros em Varsóvia contra a lei animalista que ameaça seu negócio em 13 de outubro em Varsóvia. Czarek Sokolowski (AP)

Uma parte do eleitorado fiel ao PIS como os fazendeiros e as pessoas do campo também se sente traído por Kaczynski e sua lei animalista", acrescenta a analista Ewa Kulik-Bielinska. A lei, aprovada em setembro, proíbe a criação de animais para obtenção de peles. A Polônia é o terceiro produtor mundial de peles de animal (principalmente de visão e raposas) e o segundo da UE, atrás da Dinamarca.

A questão é o que o Governo fará para acalmar os ânimos. Na sexta-feira o presidente da República, Andrzej Duda, anunciou que apresentará um projeto de emenda à lei do aborto para voltar a legalizar a interrupção da gravidez por problemas de formação do feto, mas somente nos casos em que a morte do bebê é inevitável. “Acho que isso não será suficiente. Nos próximos dias ele deve declarar o estado de emergência com a desculpa da pandemia e, desse modo, reprimir as manifestações”, prevê Ewa Kulik. “Os jovens demoraram muito para acordar. Esperemos que continuem assim”, comentou Grzegorz Kowalczyk, de 64 anos, enquanto caminhava sozinho entre a multidão que percorria na sexta as ruas de Varsóvia pedindo liberdade.

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