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“Bolsonaro sempre imitou Trump. E vai fazer a mesma coisa em 2022”

Para o cientista político Christian Lynch, reações do bolsonarismo em 2022 em caso de derrota devem ser semelhantes à do presidente americano, que alega fraude como motivo para perda do poder

Bolsonaro entrega uma camisa da seleção brasileira a Trump na Casa Branca.
Bolsonaro entrega uma camisa da seleção brasileira a Trump na Casa Branca.KEVIN LAMARQUE (reuters )

Enquanto Joe Biden vence as eleições nos EUA, Donald Trump ainda tenta se agarrar ao poder apelando à Suprema Corte dos Estados Unidos pela paralisação da apuração e recontagem dos votos. Ao mesmo tempo, no Brasil, o fiel aliado Jair Bolsonaro e seu entorno se somam ao coro que sugere —sem nenhuma evidência de comprovação— fraude nas eleições norte-americanas. O presidente, inclusive, voltou a fazer campanha pela substituição da urna eletrônica pelo voto impresso, reforçando a tese conspiratória de que o sistema seja mais propenso a manipulações que o dos EUA.

Para o cientista político Christian Lynch, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ, a reação do bolsonarismo à derrota de Trump indica a tendência de que a estratégia de desacreditar o processo eleitoral pode ser reproduzida na próxima eleição presidencial brasileira, em 2022. “Em época de muita polarização, o populismo de extrema direita precisa manter sua base de apoiadores hipnotizada, ainda que o resultado das eleições ou o contexto político não lhe favoreça”, analisa Lynch. O pesquisador ainda reflete sobre as lições que o revés de Trump deixa para bolsonaristas e para a oposição no Brasil.

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Pergunta. Há o risco de Bolsonaro repetir, daqui a dois anos, em caso de derrota, o discurso de fraude na votação encampado por Trump nos Estados Unidos?

Resposta. Eu acho que sim. Bolsonaro sempre imitou o Trump. E vai fazer a mesma coisa em 2022. Assim como o Bolsonaro, o Trump já dizia antes que desconfiava do sistema eleitoral. Agora, volta a bater nessa tecla, questionando o mecanismo que o elegeu para deslegitimar o resultado como se tivesse previsto um esquema para lhe tirar do poder. Se for derrotado, Bolsonaro usará as mesmas desculpas.

P. Bolsonaro especulou, sem provas, que teria vencido no primeiro turno não fosse uma suposta fraude nas urnas em 2018. Esse tipo de declaração seria uma espécie de garantia para recorrer ao pretexto no futuro?

R. Ao revisitar a teoria de fraude, Bolsonaro caminha para dar a cartada do Trump. Mas isso também se explica por sua lógica populista. Em época de muita polarização, o populismo de extrema direita precisa manter sua base de apoiadores hipnotizada, ainda que o resultado das eleições ou o contexto político não lhe favoreça. É uma maneira de continuar magnetizando as massas radicais. Na linguagem dos populistas, povo se resume àqueles que os seguem. Os outros são traidores. O líder, nesse caso, representa a alma do povo. Se ele é a encarnação popular, logo não será derrotado. Caso isso aconteça, a eleição só pode ter sido fraudada, ou foi um golpe ou o povo foi enganado. E aí se trata de uma narrativa típica de qualquer movimento populista. Quando a direita perde, diz que o povo foi enganado pelos caudilhos. Quando a esquerda perde, diz que o povo foi enganado pelas elites.

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P. Existe alguma particularidade que distinga o populismo de Trump e Bolsonaro de governos anteriores na América Latina?

R. O populismo da nova extrema direita se parece mais com os movimentos fascistas na Europa, a exemplo de Alemanha, Itália e Polônia, países de tradição liberal fraca. No caso americano, esse populismo não conseguiu destruir os quadros tradicionais da democracia liberal, que já era bastante sólida, mas cresceu por causa de uma conjunção inédita. Pela primeira vez, os Estados Unidos vivenciaram a sensação de que o poder americano está em declínio diante da ascensão da China. E a autoimagem de sua população também passa por transformações. Uma sociedade deixando de ser essencialmente branca, machista, patriarcal e protestante para ser mais latina e multiétnica. A soma dessas duas percepções num contexto de crise econômica ajuda a explicar a ascensão do Trump. Seus eleitores acham que ele é a representação dos princípios autênticos do país. Muitos esperam um retorno à civilização cristã medieval, que já não existe nem na Europa, e imaginam que somente essa reação cultural seria capaz de impedir o declínio do império e a perda da essência do que, para eles, é ser americano.

P. De certa forma, a defesa dos valores tradicionais aproxima ainda mais o bolsonarismo do trumpismo?

R. Bolsonaro não se explica só pelo que acontece nos EUA. O conservadorismo tinha praticamente sumido no Brasil. Nem a Nova República foi conservadora. Alguma hora teria de voltar. Então, houve a tempestade perfeita. Operação Lava Jato, impeachment, clima de terra arrasada, descrença na política e uma crise da globalização favoreceram a retomada do espectro conservador. Mas Bolsonaro se orienta a partir de dois modelos aparentemente opostos. O do trumpismo, através de Olavo de Carvalho e seus discípulos. E a outra referência, por incrível que pareça, é o lulismo, em que o Bolsonaro se modela como um Lula às avessas, a partir de um eleitorado fidelizado.

P. Até que ponto a mudança de poder nos EUA impacta um Governo que diz renegar o que chamam de “globalismo”?

R. A queda do Trump é um choque para a ala reacionária do bolsonarismo. Ela é formada por um pessoal mais jovem, que veio da rua, que se vendia como detentor de novas técnicas de manipulação digital. Muitos deles são milenaristas. Acreditavam que o Trump era a expressão da vontade de Deus pra salvar o Ocidente e estavam tocados por uma ideia de invencibilidade. Mas essa ala já tinha tomado um tombo em fevereiro, quando os militares foram para a Casa Civil, e outro, em julho, quando STF acabou com o golpismo [bloqueio de contas bolsonaristas nas redes sociais em desdobramento do inquérito das fake news]. No caso do clã Bolsonaro, eles sabem que a derrota do Trump significa o avanço do Centrão e dos militares sobre áreas que ainda estão na mão deles, como o Meio Ambiente e as Relações Exteriores. Serão obrigados a rever estratégias, abrasileirar seu pensamento e se moderar, sob o risco de perder a influência que ainda exercem no Governo.

P. Quais as lições deixadas pela derrota do Trump para o Brasil?

R. Antes do EUA, a direita já tinha perdido espaço na Argentina, Bolívia e Chile. O período de 1.000 anos projetado pelos ultradireitistas da América tem se revelado muito mais breve do que haviam imaginado. O populismo de direita não vai desaparecer após o Governo Trump, mas as derrotas recentes mostram que o movimento é frágil do ponto de vista da governança. Por não ser mais novidade, também tende a ter menos eficácia nas próximas eleições. A oposição ao bolsonarismo pode observar o que aconteceu nos EUA e arrumar um candidato como o Biden, que não pode ser tachado de esquerdista nem está associado à direita. Mas, assim como a oposição aprende, Bolsonaro também pode tirar lição da derrota do Trump. Ao contrário do americano, o sistema político brasileiro é pulverizado, o que torna mais difícil a missão dos opositores de se organizarem em torno de um nome de consenso.

P. As denúncias contra a família Bolsonaro podem pesar numa eventual resistência do presidente em deixar o Planalto por vias democráticas?

R. Sem dúvida. No dia em que Bolsonaro cair, a família corre risco de ir pra cadeia. Ele não tem gratidão por ninguém. Seu projeto de poder é proteger a própria família. O Congresso brasileiro é muito mais complacente que o americano. Mas nossa Suprema Corte é mais poderosa que a deles. Com todos os problemas, é o STF quem garante a democracia no país, até por não querer virar uma Suprema Corte da Venezuela. O cenário político deixou de ser favorável ao Bolsonaro, muito pelo fato de ter formado um Governo sectário, sem pragmatismo. Ele se espelhou na trajetória do Lula, mas não tem sequer um partido estruturado. A Aliança pelo Brasil é o maior fracasso partidário da história do país. Para alguém que queria ser Médici, Bolsonaro está mais para uma mistura de Figueiredo com Sarney.

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