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“Parem de contar os votos!”: os ecos de Bush x Gore e o desastre eleitoral da Flórida em 2000

A eleição presidencial que acabou decidida pela Suprema Corte foi dominada pela confusão e por problemas técnicos, que os republicanos souberam aproveitar. TVs anunciaram vencedor antes da hora e Gore chegou a parabenizar Bush, recuando dos parabéns em seguida

Na quarta-feira, um grupo de apoiadores de Trump invadiram um centro eleitoral em Detroit para exigir a suspensão da contagem dos votos.
Na quarta-feira, um grupo de apoiadores de Trump invadiram um centro eleitoral em Detroit para exigir a suspensão da contagem dos votos.JEFF KOWALSKY (AFP)
Pablo Ximénez de Sandoval
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Supporters of US President Donald Trump gather to protest outside the Maricopa County Election Department as counting continues after the US presidential election in Phoenix, Arizona, on November 5, 2020. - President Donald Trump erupted on November 5 in a tirade of unsubstantiated claims that he has been cheated out of winning the US election as vote counting across battleground states showed Democrat Joe Biden steadily closing in on victory. (Photo by OLIVIER  TOURON / AFP)
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As imagens são atuais, mas rimam com a história. Uma turba de seguidores de Donald Trump tentou invadir o centro de apuração eleitoral de Detroit, aos gritos de “parem de contar os votos!”. Era a manhã da quarta-feira pós-eleitoral, faltavam centenas de milhares de cédulas a serem apuradas, e a cada hora que passava a distância do presidente sobre Joe Biden diminuía. Paralelamente, a campanha de Trump ia aos tribunais para interromper a apuração na Pensilvânia, Michigan e Geórgia. Há exatamente 20 anos, outra manifestação de militantes republicanos marcou o momento mais lamentável na história recente das eleições presidenciais norte-americana, a apuração da Flórida de novembro de 2000. Mas só as imagens rimam, porque o contexto é muito diferente.

A eleição do republicano George W. Bush como presidente frente ao democrata Al Gore acabou se tornando um símbolo da confusão e da improvisação que às vezes marcam as votações nos Estados Unidos. Desde então, leis eleitorais foram alteradas em todo o país, sempre com esse episódio em mente. Não ser “a Flórida de 2000” é a obsessão de qualquer autoridade eleitoral estadual nos Estados Unidos. E talvez isso ajude a explicar a parcimônia das autoridades da Pensilvânia, que, diante de um planeta que rói as unhas, deixaram claro que vão apurar todos os votos e verificar cada um deles a mão, não importa o quanto demorem.

Aquele episódio também passou à história pela forma como rapidamente os dois lados judicializaram o processo, algo que Trump trata de repetir nas eleições de 2020. Mas as circunstâncias são muito diferentes. Nesta sexta-feira, os votos seguiam sendo apurados e as diferenças eram de dezenas de milhares. Na Flórida, em novembro de 2000, a diferença era algumas poucas centenas, e a chave não era em quem as pessoas tinham votado, e sim em quem desejavam votar. A campanha de Biden diz estar preparada para defender o resultado nos tribunais, mas não está assumindo a iniciativa.

Em 7 de novembro 2000, dia das eleições, pouco depois de fechadas as urnas, todas as grandes redes de televisão previram que George W. Bush ganharia a Flórida. Mas à medida que a noite avançava isso começou a não ficar tão claro. Gore venceu na Pensilvânia, Michigan e Illinois, na época um Estado-pêndulo. Bush ganhou Ohio, Tennessee e Missouri. A eleição ficava pendente da Flórida ―quem ganhasse ali seria presidente. Às 2h17 (hora local), a Fox News deu a Flórida a Bush. Numa época em que os canais disputavam acirradamente para serem os primeiros a darem o resultado, por volta de 4h todas tinham seguido o exemplo. Gore ligou para Bush e admitiu a derrota. Pode parecer um gesto de simples educação, mas a concessão do resultado é um protocolo essencial no processo, é quando a eleição acaba de verdade.

Apenas 45 minutos depois, Gore vai proferir o seu discurso de concessão quando é interrompido a caminho do palco. A situação da Flórida não estava clara. A vantagem se reduzira muito. Em um gesto inédito, Gore ligou novamente para Bush e retirou os parabéns. Os relatos daquela noite dizem que Bush ficou furioso. Respondeu que seu irmão Jeb, então governador da Flórida, lhe havia assegurado que era o ganhador. “Seu irmão mais novo não decide a eleição”, respondeu Gore. E no final da madrugada os canais começaram a recuar em suas projeções sobre a Flórida. O país amanheceu em 8 de novembro sem saber quem era o presidente.

Os jornalistas que viveram aqueles dias contam que o fato de todos os canais terem anunciado a vitória de Bush ajudou a criar uma narrativa a favor do republicano. Não havia mídias alternativas nem redes sociais. Bush era o ganhador porque a televisão havia dito, e Gore estava criando problemas, como um mau perdedor. Essa sensação foi crucial nos dias seguintes. Talvez Trump estivesse tentando algo semelhante ao se atribuir pelo Twitter a vitória em todos os Estados decisivos. A diferença é que ninguém além dele afirma que Trump ganhou. Os canais aprenderam bem a lição. E o republicano não tem um irmão caçula como governador de Michigan.

Em seguida, toda a atenção dedicada à Flórida começa a revelar coisas estranhas. Em Palm Beach, onde há uma grande comunidade de aposentados judeus e afro-americanos, havia um monte de votos para Pat Buchanan, um candidato ultrarreacionário, acusado de antissemita e racista. Os Estados Unidos descobrem o chamado voto-borboleta, uma cédula dobrada ao meio, em que o campo a ser marcado pelo eleitor de Gore aparece ao lado do nome de Buchanan. Começam a chegar queixas de pessoas que dizem ter votado errado, enganadas pela cédula.

Autoridades de Florida examinam votos pelos correios. .
Autoridades de Florida examinam votos pelos correios. .Lynne Sladky (AP)

A esta circunstância se soma uma falha técnica. O voto era feito com uma máquina que perfurava o campo marcado ao lado do nome do candidato. Mas logo se soube que havia cédulas com o pedacinho de papel pendurado, ou só meio perfurado, ou cédulas em que se via claramente a protuberância indicando que o papel foi batido, mas não se soltou, por isso as máquinas apuradoras não o contabilizavam. Milhares de cédulas estavam repentinamente no centro da discussão.

Em 9 de novembro, Gore pede uma recontagem. Um juiz ordena ao condado que não certifique os resultados ainda. Em 10 de novembro, a apuração automática revela que a vantagem de Bush é de 327 votos, dos seis milhões de sufrágios emitidos na Flórida. Em 12 de novembro, o condado de Palm Beach começa uma apuração manual. As solicitações de recontagem por parte de Gore se estendem a outros condados, e ao mesmo tempo a campanha de Bush move ações para paralisar todas as recontagens. A diferença continua em algumas centenas de votos. As ações dos republicanos vão fracassando em todas as instâncias judiciais da Flórida.

Em 23 de novembro, o condado de Miami-Dade, onde havia milhares de votos por revisar, decide suspender a recontagem, sob as pressões de um grupo de pessoas que montam uma manifestação aos gritos de “Parem a apuração!”. É um puro ato de intimidação, e funciona. A calma dos funcionários e voluntários eleitorais da Pensilvânia parece ter evitado algo semelhante no atual processo eleitoral.

Voltando a 2000, uma fenomenal batalha jurídica é travada em todos os níveis da Flórida, dos condados até a Suprema Corte estadual e o Tribunal de Recursos. Basicamente, a campanha de Gore quer continuar examinando os votos, e a de Bush solicita a interrupção. Enquanto isso, aproxima-se a data-limite para designar os eleitores do Colégio Eleitoral. Para surpresa de muitos, a Suprema Corte acata um recurso de Bush e decide intervir no caso. Em 12 de dezembro, por volta de 22h, por cinco votos a quatro, a principal instância judicial norte-americana determinou que a apuração fosse interrompida. O magistrado progressista Stephen Breyer escreveu um voto discordante em que advertia que tal decisão mancharia a reputação do tribunal, e que o dano à credibilidade acabaria prejudicando o país. Gore compareceu perante as câmeras no dia seguinte e disse: “Há alguns momentos, falei com George W. Bush e o cumprimentei por se tornar o 43º presidente dos Estados Unidos. E prometi a ele que desta vez não voltarei a ligar [para se desdizer]”.

Desde a terça-feira, 3 de novembro, Donald Trump parece estar tentando repetir todos os elementos principais daquela batalha. A manifestação supostamente espontânea de militantes pedindo que a apuração seja interrompida, a atribuição da vitória, a sensação de que tudo está caótico, as ações judiciais a torto e a direito para interromper o processo. No momento, os trabalhadores dos escritórios eleitorais da Pensilvânia, Geórgia, Arizona e Nevada continuam pacientemente com seu trabalho. Não consta que haja erros nas cédulas. Além disso, Trump vai ganhando em alguns lugares e perdendo em outros por dezenas de milhares de votos, não por algumas centenas de cédulas. A situação não se parece em nada com a Flórida de 2000. Por enquanto. Falta um último passo: fazer que o resultado da eleição vá parar nas mãos da Suprema Corte.

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