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Argentina, de exemplo regional a país encurralado pela covid-19

Nação está em nono lugar na América Latina em mortes por milhão de habitantes, mas tem o maior ritmo de crescimento de casos

Manifestante participa de uma passeata contra o presidente argentino, Alberto Fernández, em 12 de outubro, em Buenos Aires.
Manifestante participa de uma passeata contra o presidente argentino, Alberto Fernández, em 12 de outubro, em Buenos Aires.Juan Ignacio Roncoroni (EFE)

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A man is seen outsoide a closed beer bar under a banner reading �We closed permanently. 80 days closed it was impossible to sustain. Thank you all for these years� in Buenos Aires, on June 17, 2020, amid the new coronavirus pandemic. - After two years of economic recession and three months of compulsory confinement due to the COVID-19 pandemic, several stores and restaurants in Buenos Aires are auctioning their furniture and implements, convinced they will not be able to reopen. (Photo by RONALDO SCHEMIDT / AFP)
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O desafio econômico de sobreviver à pandemia na América Latina

A Argentina chegou ao pico da pandemia de covid-19 depois de quase sete meses de uma quarentena cada vez mais difícil de sustentar. Passou de ser considerada exemplo na contenção do coronavírus na América Latina para se tornar um dos países da região com maior número de casos, 917.035, e uma cifra crescente de mortes, 24.572. O consenso inicial que cercou o presidente Alberto Fernández voou pelos ares, e o descontentamento social fortaleceu a oposição, que respalda as manifestações populares contra o Governo, critica a “quarentena eterna” e exige uma rápida volta à normalidade.

Já em meados de março, o Executivo argentino cancelou voos internacionais e aulas presenciais nas escolas, e uma semana depois, com menos de uma centena de casos registrados, ordenou que a população se trancasse em suas casas. Nas primeiras semanas, fábricas e negócios não essenciais fecharam, e as ruas das grandes cidades do país se esvaziaram por completo, enquanto o Governo adquiria suprimentos médicos, as províncias instalavam novos leitos de UTI e os hospitais capacitavam o seu pessoal.

Essa quarentena rigorosa desacelerou a propagação do coronavírus, mas não a deteve. Até agosto, quase 90% dos casos de covid-19 se concentravam em Buenos Aires e na sua área metropolitana, onde vivem mais de 14 milhões de pessoas, mas a partir de setembro o coronavírus começou a se espalhar com rapidez pelo resto do território. “Isso tem a ver com o fato de a Área Metropolitana de Buenos Aires ter irradiado o problema, porque continuamos tendo um país muito centralizado, e muitas províncias tiveram que buscar insumos e alimentos. Também porque o vírus começou a circular localmente em todas as províncias”, argumentou Fernández na semana passada ao anunciar a nova prorrogação do isolamento social preventivo e obrigatório, vigente até o próximo dia 25, que incluiu maiores restrições à circulação em 18 das 24 jurisdições do país.

Milhões de pessoas precisam sair de casa para trabalhar ou para buscar alguma renda que complemente os subsídios públicos, e isso se reflete num crescimento da insatisfação social e num relaxamento das medidas de prevenção, apesar de estarmos no momento mais crítico. Cada vez mais gente descumpre a orientação do Ministério da Saúde de não se reunir em casa ou em outros espaços fechados.

A atual dispersão do vírus por todo o país levantou a curva da pandemia num momento em que esta cai na maioria dos países latino-americanos. Em número de mortos por milhão, considerado o dado mais confiável para estabelecer comparações, dada a subnotificação generalizada de casos, a Argentina tem a metade do Peru (552 a 1.045) e está em nono lugar no continente, atrás de países como Bolívia, Brasil, Equador, México e Chile. Entretanto, afasta-se cada vez mais do Uruguai, considerado hoje o caso de sucesso regional (15 mortes por milhão), e é provável que logo supere a Colômbia (567), que teve seu pico em agosto e hoje ronda as 150 mortes diárias, contra 400 da Argentina.

“Não há dúvida de que sem quarentena não teríamos conseguido preparar o sistema de saúde. Os leitos de UTI, as alas de internação e o atendimento ambulatorial não teriam dado conta. Não podemos imaginar quanta gente a mais teria adoecido e morrido se não tivéssemos tido tempo para nos preparar e educar para as medidas de prevenção”, salienta Gabriel Levy Hara, chefe da Infectologia do hospital público Durand, da cidade de Buenos Aires.

A capital argentina chegou a superar os 1.500 casos diários no fim de agosto, quase o dobro de agora, mas as UTIs não chegaram ao limite de ocupação. Tampouco lotaram na província de Buenos Aires, que duplicou o número de leitos para fazer frente à pandemia. Entretanto, a situação hospitalar é complicada em províncias onde a circulação comunitária é recente, como nas patagônicas Río Negro e Neuquén, em Mendoza (oeste) e na nortenha Tucumán, onde nesta terça-feira foram registrados 1.254 novos casos e 18 óbitos por covid-19.

O esgotamento e a sobrecarga de trabalho são visíveis em todo o pessoal sanitário. Cerca de um quarto dos 2.000 funcionários do hospital Durand se contagiaram de covid-19. “Tem dias em que montar um plantão de pelo menos três pessoas nas UTIs é como mover peças num tabuleiro de xadrez. À medida que as semanas passam e a carga de trabalho continua elevada, o risco de contágio aumenta significativamente, porque é esperável que ocorra algum descuido, por exemplo, ao tirar o equipamento de proteção pessoal (óculos, máscaras etc.)”, observa Levy Hara. Por esse motivo, o infectologista critica a mensagem dos manifestantes antiquarentena que pedem liberdade absoluta de circulação e questionam as restrições vigentes: “Quando vejo as passeatas penso que essa gente não vem aos hospitais; é preciso ser responsável e coerente ao emitir mensagens públicas”.

Uma das participantes da última manifestação contra o Governo, em 12 de outubro passado, foi a ex-ministra de Segurança macrista Patricia Bullrich. “Faz sete meses que estamos doentes não somente de covid-19, mas de um país fechado, o que não significou nada, porque somos o sexto país com mais contágios. Depois de sete meses de fechamento, a política do Governo foi um fracasso”, afirmou Bullrich. “A quarentena eterna foi muito nociva e afetou muito severamente as liberdades e a forma de vida”, disse o ex-presidente Mauricio Macri numa entrevista televisiva no domingo passado. “Não houve nenhum resultado à vista porque claramente estamos entre os piores países em termos de resultados sanitários pelo coronavírus.” Os governadores de oposição, por outro lado, demonstram muita prudência. Eles precisam dos recursos e suprimentos médicos fornecidos pelo Estado para combater a pandemia e evitar a superlotação hospitalar.

Desabamento econômico

Apesar das discrepâncias partidárias, há consenso de que não é possível voltar a uma quarentena rigorosa e é necessário conviver com a covid-19 até que haja uma vacina ou apareçam tratamentos eficazes. A pandemia golpeou a Argentina em seu terceiro ano de recessão, com uma dívida externa bilionária em plena renegociação e um prognóstico pior que a média regional: segundo o FMI, o PIB desabará 11,8% neste ano. O desemprego chegou na metade do ano a 13,1%, a taxa mais alta desde 2005, e continua subindo, enquanto o índice de pobreza disparou para 40,9%.

“O ideal seria fechar tudo, o isolamento por um tempo, mas a realidade, o que é possível hoje, é que não se pode”, admitiu a secretária da Saúde de Tucumán, Rossana Chahla, quando os casos diários de coronavírus começaram a ser contados às centenas na província. Até mesmo assessores do Governo, como Angela Gentile, chefa de epidemiologia do Hospital Infantil Ricardo Gutiérrez, concordam que é preciso obter “um equilíbrio entre o social e o sanitário”. Os dados mostram que a Argentina tem medidas de isolamento mais rigorosas que o Brasil e o México, mas menos que Bolívia, Equador e Peru.

Gentile destaca “o dano emocional” que a pandemia causou em crianças e adolescentes e apoia a volta às aulas presenciais, que o Governo autorizou na semana passada em distritos com baixo risco. “A volta à escola neste contexto é muito importante, e não tanto pelo conteúdo acadêmico, mas sim pelo vínculo com os colegas. Eles precisam ver que há um horizonte, e nós temos que lhes mostrar.” No plano sanitário, esse horizonte é mais sombrio do que Fernández previa meses atrás.

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