A geopolítica de um supermercado iraniano em Caracas
Relação entre Irã e Venezuela se estreita com a abertura de um enorme estabelecimento de varejo e eleva a tensão com Washington
A abertura de um supermercado bem abastecido se tornou um grande evento na Venezuela. Uma rede iraniana revolucionou o cotidiano da população no último fim de semana ao inaugurar sua primeira loja em Caracas. Em um país onde 96% das pessoas não têm dinheiro suficiente para comprar alimentos, a comida é a única coisa em que se pensa. O negócio é parte dos acordos do presidente Nicolás Maduro para estreitar laços com o Governo de Teerã, primeiro como salva-vidas durante a escassez de gasolina de dois meses atrás e agora com a importação de alimentos.
José Luis Hernández, de 32 anos, fazia fila pela segunda vez, no sábado, tentando entrar com sua filha no supermercado. Na véspera, dia da inauguração, a superlotação o impediu. “A gente vem ver, mas não tem como comprar”, disse. Usava uma camisa formal, como quem sai a passeio, em meio à rigorosa quarentena decorrente da pandemia de coronavírus, que em Caracas inclui uma espécie de rodízio para poder entrar nos supermercados, segundo o número do RG —algo que no estabelecimento iraniano não estava sendo cumprido. Hernández é morador do Petare, um gigantesco bairro popular na zona metropolitana. De lá tem vista para o enorme supermercado e testemunhou nas últimas semanas a transformação do lugar, com a chegada de dezenas de caminhões com mercadorias no último mês.
A loja foi instalada em um antigo estabelecimento expropriado há uma década pelo então presidente Hugo Chávez de uma rede francesa que operava o hipermercado Éxito. “Quando éramos felizes e não sabíamos. Lembro que vendiam um bom frango na brasa”, relembra Hernández. O prédio depois virou a rede estatal de varejo Abastos Bicentenario e, posteriormente, foi concedido ao empresário colombiano Alex Saab, agora detido em Cabo Verde e à espera da extradição para os Estados Unidos por suposta lavagem de dinheiro. “Isso durou pouco e tudo era muito caro”, diz Hernández. Saab, acusado de ser o testa de ferro de Maduro, foi quem instalou nos supermercados expropriados durante os primeiros anos do chavismo as Lojas CLAP, nome associado ao programa social de alimentos subsidiados.
Uma década depois da expropriação, instalou-se uma empresa do conglomerado Etka. Com 700 lojas no Irã, a empresa é operada pelo Ministério da Defesa desse país e tem vínculos com a Guarda Revolucionária do Irã, designada como grupo terrorista por Washington, conforme informou o The Wall Street Journal há algumas semanas.
A propaganda oficial aponta que se trata do primeiro supermercado iraniano na América Latina. O empresário Issa Rezaie, identificado como vice-ministro iraniano da Indústria pela televisão estatal venezuelana e cabeça visível do conglomerado, afirmou no dia da inauguração que “nosso objetivo principal é comercial”. Longas reportagens publicitárias foram exibidas pelo canal estatal VTV, segundo o qual se trata de um empreendimento de empresários iranianos e venezuelanos, embora não tenham sido mencionados detalhes sobre os supostos investidores locais.
Mais de 3.000 produtos iranianos são vendidos no local, todos com etiquetas em persa ou em inglês e com preço em dólares. Geleia de tâmaras, carne halal enlatada, cobertores grossos demais para o clima tropical de Caracas e cadernos ilustrados com meninas de hijab são alguns dos produtos que podem parecer exóticos para os venezuelanos. Também outros, como o leite em pó por quilo, de empresas expropriadas pelo Governo, são vendidos ao mesmo preço de qualquer outra marca comercial, a quase seis dólares (32 reais), equivalentes a três salários mínimos. O artigo mais frequente nos carrinhos de quem conseguia comprar era o papel higiênico, que se tornou um luxo no país, e cuja apresentação iraniana representava alguma economia: 12 rolos por quase três dólares.
Rezaie disse também que a aliança demonstra como “dois países sancionados podem se complementar”. A abertura do Megasis, que motivou críticas dos Estados Unidos, ocorre no momento de maior asfixia do Governo de Maduro, depois de um ano do endurecimento das sanções de Washington. O acordo empresarial se mostra como um duelo geopolítico travado nos corredores de um supermercado, em cuja entrada tremulam as bandeiras do Irã e da Venezuela. “Qualquer presença da República Islâmica na Venezuela não é algo que vejamos favoravelmente. Este Estado é um patrocinador do terrorismo. O Irã está disposto a vender coisas à Venezuela, quando a Venezuela não tem dinheiro para pagar”, disse Michael Kozak, subsecretário de Estado dos EUA para Assuntos do Hemisfério Ocidental.
A transferência de 1,5 milhão de barris de gasolina que chegaram em maio a bordo de navios iranianos já tinha acendido os alarmes. Em abril, um avião da sancionada companhia aérea Mahan Air pousou na Venezuela como parte das primeiras gestões. Depois, os capitães das embarcações que transportavam o combustível foram alvo de sanções do Tesouro dos Estados Unidos.
Nas últimas duas décadas, o chavismo fez do Irã seu aliado preferencial na sua proclamada “luta anti-imperialista”. Abriu caminho a Teerã na região quando o mapa político estava dominado por Governos então afins à revolução bolivariana, como o Equador e a Bolívia. Vários projetos sem prosperar, como a fábrica de bicicletas Fanabi e a montadora de veículos Venirauto, fazem parte dos antecedentes desta relação. Agora, os laços voltam a se estreitar quando Maduro está encurralado e sem dinheiro. Ocorre também quando a tensão entre o Irã e os Estados Unidos alcançou seu maior ponto, depois do assassinato do general Qasem Soleimani, um dos principais comandantes da Guarda Revolucionária Islâmica do Irã, no começo do ano no Iraque.
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