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Recuperados da covid-19 na Bolívia recebem até oferta de emprego em troca de plasma sanguíneo

Tráfico de doações de sangue como tratamento para a covid-19 prospera à margem da lei e reflete a desigualdade no acesso à saúde em um sistema hospitalar à beira do colapso

Paciente recuperado doa plasma em um centro de saúde em La Paz, Bolívia, em 10 de junho.
Paciente recuperado doa plasma em um centro de saúde em La Paz, Bolívia, em 10 de junho.AIZAR RALDES (AFP)
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Greek Police wearing face masks to prevent the spread of the new coronavirus, check the documents of the passengers who arrived from Doha, Qatar to the Eleftherios Venizelos International Airport in Athens, Monday, June 15, 2020. Greece is officially open to tourists as of Monday, with the first international flights expected into Athens and the northern city of Thessaloniki where passengers will not face compulsory COVID-19 tests. (AP Photo/Thanassis Stavrakis)
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Na Bolívia, uma bolsa de 400 mililitros de plasma sanguíneo de uma pessoa recuperada de covid-19 pode ser trocada por um emprego, o pagamento de dívidas ou quantias em dinheiro que vão de cerca de 2.500 a mais de 15.000 reais. Esse tráfico é uma das consequências colaterais da aposta do Ministério da Saúde e da maioria dos hospitais bolivianos no plasma hiperimune, um componente do sangue de quem superou a doença e que, neste país, é considerado uma última esperança para os pacientes graves. A maioria das doações foi voluntária, mas as autoridades sanitárias reconhecem que houve “múltiplas violações” enquanto os incentivos para aqueles dispostos a doar o plasma se multiplicam: muitas empresas e negócios oferecem descontos ou presentes aos clientes que tiverem feito doações, e pelo menos duas universidades anunciaram que aceitarão alunos sem vestibular se comprovarem que foram doadores.

Vários países, inclusive o Brasil, estão fazendo pesquisas sobre o uso do plasma de pessoas convalescentes no combate do coronavírus. No procedimento, que já foi utilizado em outras epidemias, o plasma de um paciente curado é transferido para uma pessoa infectada. O objetivo é que os anticorpos presentes no plasma forneçam imunidade, ajudando na diminuição da infecção e da carga viral de pessoas com a doença. Porém, ainda não há estudos que demonstrem a eficiência desta terapia.

Na Bolívia, que registra nesta quarta-feira um total de 26.389 casos e 846 mortos, a pandemia gerou uma oportunidade para pessoas com recursos escassos que sobreviveram à enfermidade. Devido ao desespero das famílias dos doentes, há quem aceite em participar do negócio ilegal de venda de plasma, que prospera em meio ao colapso dos serviços sanitários e que pode ser sancionado com até oito anos da prisão. “O que distorceu a doação voluntária? O medo, transformado em pânico, de perder um familiar. Primeiro, as pessoas começam a pedir plasma nas redes sociais diante do primeiro diagnóstico, do primeiro resultado positivo, sem saber se seu familiar vai chegar à terapia ou se vai precisar ou não do plasma. Por via das dúvidas...”, conta o jornalista José Pomacusi, que cobre os efeitos da pandemia na cidade de Santa Cruz de la Sierra (no leste), a mais afetada pela covid-19 em todo o país. “Segundo, quem tem dinheiro ou uma empresa oferece um pagamento ou um emprego em troca do plasma. Há quem ofereça 500 dólares (2.576 reais) e quem chega a pagar até 3.000 (15.458 reais). Quem tem uma empresa oferece um emprego ao potencial doador, se vir que está desempregado”, afirma Pomacusi.

Em Santa Cruz e outras duas cidades, Trinidad e Cochabamba, os serviços médicos públicos e privados, em particular as UTIs, estão paralisados. Em La Paz, a sede de Governo, a situação é só um pouco melhor. A cada dia surgem relatos de pessoas que morrem logo depois de percorrerem vários hospitais sem encontrar um respirador que lhes permita suportar a infecção. “Não desejo a ninguém o que eu passei... Sei que tudo está paralisado, mas os médicos deveriam ser um pouco mais humanitários e tratar com paciência uma família que está com seu ser querido agonizando… Tenho uma raiva… Porque tudo que sai no noticiário é só para aparecer, porque não há os equipamentos necessários para salvar vidas. Tudo é uma mentira”, disse a filha de uma destas pessoas ao jornal El Deber.

A situação dos bancos de sangue, onde é feita a extração de plasma dos doadores, não é diferente. Em Santa Cruz só há uma máquina para aférese de plasma. Seus esforçados operadores conseguiram passar de 10 a 30 extrações por dia para responder à emergência, mas, mesmo assim, não dão conta da extraordinária demanda. Há semanas eles vêm solicitando a aquisição de mais duas máquinas, mas o Ministério da Saúde não lhes respondeu. Mesmo que a doação de plasma seja gratuita, quando o receptor não tem plano de saúde precisa pagar 3.200 bolivianos (2.400 reais) para acessar o banco de sangue. É um serviço público, mas a quantia é cobrada para repor os equipamentos e as substâncias usadas na extração. A soma ultrapassa em mais de 500 reais o salário mínimo nacional.

Não é a única dificuldade que os mais pobres devem enfrentar em busca de atendimento médico. Para que o plasma possa ser usado, é preciso que o doador prove que seus exames de covid-19 deram positivo, primeiro, e depois, que tenha o resultado negativo. Ou seja, que a pessoa efetivamente adoeceu e se curou. O problema está em que os serviços públicos não entregam um documento onde fique registrado que o resultado do exame foi positivo; isto só ocorre se o teste for feito em laboratórios privados. Esse empecilho burocrático complica a obtenção de doadores. Do outro lado, o beneficiário do plasma deve pagar de seu bolso o exame privado para verificar que o doador é negativo no momento da transfusão, já que os testes gratuitos oferecidos pelo Estado são escassos. Para isso, necessita de mais 1.000 bolivianos (750 reais).

Em suma, o tratamento com plasma só está à disposição dos bolivianos endinheirados, como também ocorre com os outros procedimentos contra a covid-19. Antes da pandemia, 60% dos leitos de UTI e 80% dos respiradores da Bolívia eram privados. Ainda não foram quantificadas eventuais mudanças no atual período.

Os hospitais privados cobram entre 500 e 1.500 dólares por dia de pacientes graves, sem contar a taxa pelo respirador. Um cidadão denunciou que teve que pagar 70.000 bolivianos (mais de 52.000 reais) por quatro dias de atendimento ao seu filho na clínica mais luxuosa de Santa Cruz. A maioria dos seguros privados não cobre os efeitos de uma pandemia, então apareceu um especial que custa cerca de 800 reais por ano. Ao mesmo tempo, os planos de saúde mistos, que são propriedade do Estado, das entidades patronais e sindicatos, e que no país são chamados de “caixas de saúde”, só autoriza a internação de pacientes que estejam com as mensalidades em dia.

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