O método Merkel de liderar a Europa
Sua saída, prevista para o final de 2021, marcará o ocaso de um tempo político. Mais de uma dúzia de personalidades traçam o retrato de seus 15 anos no comando da União Europeia
Assim a chanceler alemã lidera a Europa
MERKEL
Ilustração de Agustín Sciammarella
“Quando era criança, nas aulas de natação subiu em um trampolim de cinco metros e foi a última a saltar, no último momento. Saltou, mas só quando precisou fazê-lo”. Poucas histórias sobre Angela Merkel revelam tanto sobre a personalidade da chanceler alemã como essa contada por Wolfgang Schäuble, ministro fundamental de seu Governo durante 12 anos. “Tem um estilo de liderança que se caracteriza, como ela mesma já disse, por não se comprometer até o último momento. Mantém abertas todas as possibilidades”, diz Schäuble, uma das pessoas que mais trabalharam com a chanceler alemã, em seu gabinete de presidente do Bundestag em Berlim.
Enigmática e rodeada por um círculo muito reduzido de confiança, Merkel se aproxima do final de uma trajetória política excepcional, que a transformou na líder europeia mais importante do século XXI. No ano que vem, salvo surpresas, concluirá seu quarto e último mandato consecutivo, uma etapa essencial em que deu forma à Europa que conhecemos. Berlim foi a potência de fato da União durante esses 15 anos, nos quais dificilmente algo pôde ser feito sem a autorização da Alemanha. Nenhum outro país tem tanto poder na Europa. É decisiva a maneira como quem governa em Berlim exerce o poder. Compreender Merkel é imprescindível para entender a União Europeia que modelou por ação e, também, por omissão.
Merkel exerceu essa liderança sem se deixar deslumbrar pelo poder e sem ceder um centímetro na proteção de sua personalidade mais íntima. São muitos os líderes mundiais que tentaram desentranhar o pensamento dessa fleumática política, que conjuga uma capacidade de análises e de escuta fora do comum com uma resistência física e psicológica capaz de derrubar o político mais veterano.
Sua formação científica e suas artes divulgadoras encantaram meio mundo com a chegada do maldito coronavírus, cujos estragos econômicos ameaçam semear a Europa com cadáveres sociais. No final de maio, Merkel, pelas mãos de Emmanuel Macron, se atreveu a imprimir uma mudança histórica da política alemã na Europa ao permitir o financiamento da reconstrução com dívida europeia. “A resposta é que a Europa precisa agir junta. O Estado nação por si só não tem futuro [...]. A Alemanha só ficará bem se a Europa ficar bem”, afirmou, após apresentar um plano, já batizado na imprensa mundial como o “momento Hamilton”, em alusão ao secretário do Tesouro norte-americano que forjou a união fiscal após a revolução americana. Em 1 de julho, a Alemanha assume a presidência semestral da União Europeia, com a qual Merkel tem sua última grande oportunidade para selar seu legado.
Os que a conhecem falam de um particular senso de humor, além de sua imagem de política austera e implacável. Em sua agenda procurou um espaço em 2015 para sentar-se à mesa com Mariano Rajoy. “Conversamos por três horas após a refeição. Foi bem agradável, rimos muito, falamos de futebol, ela gosta muito de futebol”, lembra agora bem humorado o ex-primeiro-ministro espanhol.
Rajoy e mais uma dúzia de atores políticos de primeira linha traçam nessa reportagem o retrato europeu de um fazer político extraordinário, através de entrevistas realizadas em Berlim, Bruxelas, Madri, Munique e Milão. Alguns concordaram em publicar seu nome e outros não. Pessoas que a conhecem, que negociaram e viajaram com ela, que trataram no público e no privado, na sala do Conselho Europeu, em um avião e no refeitório de um pequeno restaurante. Seu relato oferece ao mesmo tempo um olhar atípico aos corredores do poder em Bruxelas.
A Alemanha de Merkel chegará previsivelmente a seu fim coincidindo com o final de uma era em que o multilateralismo, a integração europeia, o euro eram vistos como fato. Sua saída, prevista para o final de 2021, marcará o ocaso de um tempo político que começa a ser visto como longínquo e abrirá caminho a um novo, infestado de interrogações existenciais à União Europeia.
Ao mesmo tempo, começa o julgamento sobre a figura de Merkel. As entrevistas lançam um retrato com muitas luzes e algumas sombras. Seus quatro mandatos marcaram a trajetória do Velho Continente durante 15 anos, coalhados de fracassos políticos e econômicos. A popularidade da chanceler dentro e fora de suas fronteiras contrasta com o calamitoso estado que deixa de herança uma União cheia de controles fronteiriços, com guinadas autoritárias em várias capitais e com uma União Monetária ainda incompleta.
A irrupção do coronavírus, o maior desafio desde a Segunda Guerra Mundial, nas palavras de Merkel, lhe deu uma inesperada oportunidade para reivindicar-se como grande líder europeia. E seu recente entendimento com a França mostra que a dirigente alemã parece disposta a colocar sua reputação em jogo para finalizar seu legado com um importante salto na integração europeia tão importante como a emissão de dívida conjunta.
Os hagiógrafos da chanceler atribuem a ela a salvação do euro e da unidade da Europa. Seus críticos a acusam de ter acentuado a divisão e a desconfiança durante a crise econômica, primeiro, a migratória, depois e agora a do coronavírus. Sua liderança ficará irremediavelmente ligada a uma era em que a Europa superou crises existenciais, mas também sofreu a maior recessão da UE, o Brexit e a ascensão do populismo. Os historiadores julgarão se Merkel foi em parte o detonador desses fenômenos e o antídoto que os enfraqueceu e atrasou. Seja qual for o veredito, as marcas de Merkel aparecem por todas as partes nesse período crítico da UE.
“Foi uma sustentação à Europa”, avalia o ex-primeiro-ministro da Itália, Mario Monti, que chegou ao cargo graças em grande parte a Merkel e ao presidente francês, Nicolas Sarkozy, que forçaram a renúncia de Silvio Berlusconi para tentar apaziguar a tormenta financeira que se abatia sobre a Itália. O magnata italiano foi um dos muitos primeiros-ministros que caíram durante uma crise da zona do euro da qual Merkel sobreviveu a duras penas. O vendaval também levou o espanhol Rodríguez Zapatero, o português Socrates, o grego Papandreou e até o próprio Sarkozy.
Na Europa, sua força se sustentou em parte na fraqueza dos outros. Dos franceses e dos britânicos submergindo-se progressivamente em seu próprio caos. Na Alemanha, herdou uma série de reformas de seu predecessor Gerhard Schröder, que marcaram o início do declínio socialdemocrata, mas significaram um balão de oxigênio para a chanceler. A análise de seu legado europeu passa por compreender até que ponto Merkel soube aproveitar os quase 15 anos de prosperidade alemã para transformar a Europa e garantir seu futuro.
A ministra de Relações Exteriores da Espanha, Arancha González Laya acha que “fica o legado de uma pessoa europeísta convencida e uma grande bússola moral à Europa”. “E que seja a Alemanha é muito importante, porque é o centro de gravidade da Europa”, interpretou a ministra durante a conferência de segurança de Munique, em fevereiro deste ano, onde a fragilidade do Ocidente e da UE ocuparam um lugar central.
Mas também acredita que a chanceler “não teve criatividade e audácia suficientes em momento difíceis, por exemplo, na gestão da crise financeira a partir de 2008”. A crise da zona do euro foi um momento definitivo de uma chanceler cujo mandato combinou um sucesso econômico na Alemanha praticamente sem precedentes com uma fratura social em boa parte da União, principalmente, na Grécia.
A crise do coronavírus abre, novamente, numerosas interrogações sobre o futuro da Alemanha e o da União. “A maneira como a Europa sairá dessa crise dependerá, não só, mas em grande medida da chanceler Angela Merkel. Ela sabe que essa crise é sistêmica e que o que está em jogo é o mercado único europeu. Quanto mais ambiciosa for a resposta europeia mais rápido todos nós sairemos. Quanto mais titubearmos, mais corremos o risco de fragmentar o mercado europeu e ficar para trás na crescente competição geopolítica entre a China e os Estados Unidos. Sua posição nas próximas semanas será crucial”, estima a ministra espanhola.
Javier Solana, ex-chefe da diplomacia europeia, também considera o momento atual decisivo. “A Alemanha deve ser capaz de aceitar que [o fundo de reconstrução] não é um presente aos países pobres, é uma questão de justiça. Eu gostaria que Merkel passe a história deixando essa porta aberta para a Alemanha e que o faça com clareza pedagógica, porque o que vier depois, irá fechá-la”, interpreta Solana, já recuperado de uma grave infecção do coronavírus da covid-19. “Com sua popularidade reforçada graças a uma boa gestão da pandemia, Merkel decidiu investi-la em um enfoque mais visionário para a UE. É preciso reconhecer seu mérito, junto com Emmanuel Macron e Ursula von der Leyen, do audaz pacote de recuperação proposto pela Comissão”, diz Monti. E acrescenta: “Pela primeira vez, o orçamento da UE, graças particularmente às contribuições da Alemanha, será mais parecido ao orçamento de um Estado federal, para impulsionar a recuperação e transformação da Europa após a covid”.
Merkel se transformou em cidadã da UE pouco depois de cair o muro de Berlim, em 1989. Sua fé no projeto de integração europeia aumentou pouco a pouco, a base de reuniões em Bruxelas que, contra os prognósticos, a erigiram como a chanceler da Europa. “No começo era mais resistente”, afirma Jean-Claude Juncker, ex-presidente da Comissão Europeia . O luxemburguês acha que o predecessor de Merkel, Helmut Kohl, “tinha a Europa nas entranhas e às vezes na cabeça; Merkel tem a Europa na cabeça e às vezes lhe desce às entranhas”.
A transformação pessoal, de qualquer forma, foi meteórica. Sua entrada na política logo depois da queda do Muro em novembro de 1991 imediatamente a levou ao Bundestag e ao Governo de Kohl, sob cuja proteção rapidamente escalou postos. Dez anos depois da reunificação, Merkel era eleita presidenta da União Democrata Cristã (CDU) e sua sombra já começava a se projetar sobre a União.
Tanto na oposição como uma vez no poder, Merkel fugiu das grandes visões a longo prazo, convencida de que o mundo muda muito rápido e é melhor adaptar-se em cada momento. Não é propensa aos discursos grandiloquentes, não insiste nas questões estratégicas macro. Prefere construir através da gestão; a política dos pequenos passos, às vezes dizem sobre ela. “O problema é que o custo político a longo prazo aumenta porque, por fim, acaba-se caminhando em ziguezague”, diz uma fonte europeia.
Sua primeira tarefa foi tirar a UE do marasmo institucional após o fracasso da Constituição, e a realizou sem exibicionismos e agitações. Impôs o pragmatismo e, em coordenação com Sarkozy, levou adiante o Tratado de Lisboa que desde 2009 rege o funcionamento do clube. “Com ela se criou a estabilidade. Salvou o tratado constitucional durante sua presidência. É a mãe dos tratados de Lisboa”, afirma em um café berlinense Elmar Brok, antigo eurodeputado e destacado membro da CDU, que conhece Merkel desde o começo dos anos noventa. Durante todos esses anos, sentou-se com ela nos encontros do Partido Popular Europeu anteriores às reuniões em Bruxelas.
Após seu estrondoso sucesso com o Tratado de Lisboa, a chanceler se aventurou a dar um passo mais arriscado. Merkel propôs em 2010, em um discurso no Colégio da Europa em Bruges, adotar o chamado “método da União”, ou seja, levar o motor do clube da Comissão Europeia ao Conselho. A proposta causou espanto nas forças mais federalistas de Bruxelas. Mas o certo é que as cúpulas trimestrais, onde os chefes de Estado e de Governo negociam, passaram a ser cada vez mais frequentes, até duas em uma semana em momentos graves, e em todas a voz de Merkel ficou inexoravelmente marcada. De fato, a chanceler impôs seu método baseado na força das capitais.
Lá, entre as quatro paredes do Conselho é onde Merkel exercitou um método que lhe valeu grandes vitórias. Porque se nas ruas, com as pessoas comuns, frequentemente dá a impressão de não estar confortável, em Bruxelas Merkel brilha. É o lugar em que domina como nenhum outro líder. Merkel viajava (na era pré-covid) a Bruxelas para os Conselhos Europeus com frequência cada vez maior. Outra coisa é o tempo que Bruxelas tem na cabeça. Cada dia é um dia europeu em Berlim. Em tempos normais, Merkel fala com colegas da UE pelo menos uma vez por dia, várias vezes por semana. A Europa é o cenário em que ela trabalha e em Bruxelas sente-se em casa.
“Era impressionante vê-la trabalhando nesses exaustivos Conselhos, não se distrai um minuto sequer” lembra Monti. “Quando a negociação fica complicada e há um recesso, Merkel levava os envolvidos a um local separado e lá tentava desbloquear a situação”, acrescenta.
Quando viaja a Bruxelas o faz acompanhada por um grupo reduzido, no qual está seu porta-voz, seu assessor de política exterior e o vice-chefe de seu gabinete. Sempre fica no mesmo hotel. Lá, após as intermináveis reuniões, faz um relato meticuloso do que acontece na reunião aos membros de sua delegação, não importa a hora.
Talvez sua maior habilidade seja ter um bom relacionamento com cada membro do Conselho. Está lá há muito tempo e sabe perfeitamente que cada voz, ou seja, cada voto conta em um sistema que precisa de unanimidade. “Sabe ser ambígua. Também é muito aberta e atenta com os Estados menores, algo que por exemplo Macron não faz. Sabe que os pequenos, da mesma maneira que os grandes, têm um voto e muitos, além disso, dependem economicamente da Alemanha. Seu mundo é complexo, baseado nas interdependências”, diz Stefan Kornelius, chefe de internacional do jornal Süddeutsche Zeitung e autor de uma biografia da chanceler, Angela Merkel: A chanceler e seu mundo. Kornelius fala no átrio da Bundespressekonferenz, o edifício ao que três vezes por semana comparecem os porta-vozes do Governo e periodicamente ministros e a própria Merkel, para responder sem filtros às perguntas dos jornalistas.
Os que a conhecem destacam um aspecto que à primeira vista poderia parecer sem importância, mas que nas maratonas negociadoras de Bruxelas se transforma em decisivo na defesa dos interesses alemães. Dizem que Merkel tem uma resistência física fora do comum e que sabe que a boa proposta sempre aparece no final, na metade da noite. Essa capacidade para negociar durante noites inteiras sempre rendeu seus frutos ao longo dos anos no Conselho Europeu, nas cúpulas que irremediavelmente acabam com os rostos esgotados de políticos e jornalistas nas conferências de imprensa ao amanhecer.
Também em Berlim. As negociações para formar a última coalizão de Governo foram intermináveis, com políticos dormindo jogados no chão e alertas nos celulares às cinco e seis da manhã anunciando progressos. O mesmo aconteceu com a negociação do grande pacote do clima alemão no ano passado. Após uma noite sem dormir, negociando de portas fechadas, ocorreu uma entrevista coletiva de manhã e um por um, os ministros foram desfiando o resultado. Nessa ocasião, Merkel cabeceou de sono, para escárnio dos tabloides. Mas o pacote climático foi aprovado.
Schäuble quis que a Grécia abandonasse o euro por um tempo. Merkel se negou e Schäuble confessou depois que esteve prestes a renunciar. Ainda assim, o presidente do Bundestag mostra admiração pelo modus operandi de Merkel na Europa. “Tem uma capacidade incomum para armazenas todos os fatos e as informações. É extraordinariamente inteligente, tem uma incrível força intelectual, também física e psíquica. Sem esquecer que tem uma paciência interminável”, afirma Schäuble, preso a uma cadeira de rodas desde que uma pessoa com problemas mentais atirou nele em um ato público há 30 anos.
A análise quase científica dos argumentos e a busca obsessiva do consenso é sua maneira de operar. Uma figura política que dividiu a mesa de negociação com Merkel a descreve: “Nas reuniões, ela sempre começava escutando a outra parte, respondia e uma discussão começava. No final dessa discussão perguntava ‘o que aprendemos hoje?’ e resumia o que havia acontecido nessa reunião, 1, 2 e 3”.
Os consultados coincidem em que antes de decidir ela sempre tenta analisar toda a informação disponível. Liga para cientistas, empresários e as pessoas afetadas mais relevantes. Atribuem à chanceler uma excepcional capacidade para escutar e levar em consideração os pontos de vista de todos os possíveis interlocutores. Nunca são decisões emocionais.
Essa maneira de operar esteve prestes a ser letal durante a crise da zona do euro. Sua parcimônia e seus titubeios desesperaram os parceiros europeus, em particular, os que caíam no resgate financeiro um após o outro. E desconcertaram mercados que chegaram a apostar pela ruptura do euro pelo imobilismo da chanceler.
A prudência calculada e a reflexão pausada, por outro lado, estão sendo perfeitamente acertadas na crise do coronavírus. É doutora em química quântica e lida com facilidade com números e fórmulas científicas. Essa crise de alguma forma é feita sob medida para ela, por sua aproximação pragmática e minuciosa dos problemas. Auxiliada pelos especialistas mais prestigiosos da Alemanha, tomou decisões que soube comunicar a uma população que continua confiando nela, especialmente em momentos difíceis. O vídeo em que Merkel explica a taxa de reprodução do vírus viralizou nas redes sociais, como se fosse uma estrela do rock. Sua gestão da crise disparou os níveis de aprovação de seu partido – por volta de 40% –, o que por sua vez lhe dá uma clara folga e vantagem no momento de adotar decisões necessárias em Bruxelas, mas de difícil digestão para muitos alemães.
“Analisa os assuntos com brilhantismo analítico. É muito boa antecipando os resultados, as consequências de uma decisão. Tem tática, saber ler a situação e reage rápido”, diz no café que os políticos alemães frequentam ao lado da porta de Brandemburgo Günter Verheugen, ex-comissário alemão da Indústria (2004-2010) e veterano da política alemã. O jornal sensacionalista Bild lembrou anos atrás de uma frase pronunciada pela à época jovem cientista Merkel e que constitui uma defesa da tomada de decisões tranquila frente à impulsividade. “Os homens no laboratório sempre colocavam os dedos em todos os botões ao mesmo tempo. Eu não podia acompanhar o ritmo, porque estava pensando. E em dado momento, aquilo explodia e a equipe se rompia”.
Tem, além disso, uma grande habilidade para esperar, destaca o jornalista Stefan Kornelius. “Sabe ficar calada durante muito tempo”. O biógrafo pensa que essa atitude talvez esteja relacionada com sua infância. “Sua educação, como filha de um pastor protestante no leste da Alemanha, a ensinou a ficar sentada na mesa, a esperar e ser consciente de que em qualquer momento poderiam ser espionados”.
Mas talvez seja seu conhecimento exaustivo dos temas o que mais surpreende todos os que aterrissam no Conselho Europeu.
Rajoy diz que a participação de Merkel nos Conselhos abarcava “questões maiores, menores e as que não afetavam a Alemanha. Estudava todos os assuntos, algo que parece lógico, mas há muita gente lá que, afinal, poderia dedicar um pouco mais de tempo aos assuntos”, considera. “Quando você se senta na UE, de 28 líderes, no máximo 12 sabem realmente do que falam. Quando a negociação se complica, Macron, Rutte, Merkel e poucos outros são os que sabem do que se está falando”, afirma uma fonte europeia. “Escutava, o que é importante em uma dirigente que toma decisões importantes. E tem palavra, cumpre, o que dá muita segurança”, acrescenta o ex-primeiro-ministro espanhol.
Rajoy relembrava pouco antes do confinamento, em seu escritório no bairro de Salamanca de Madri, alguns de seus encontros. “Eu a levei para jantar na área antiga de Santiago, um robalo que estava excelente”, lembra o galego com contentamento. Na partida de volta em Meseberg (Alemanha), “ficamos por três horas conversando após a refeição e não bebíamos água”. A boa relação não foi empecilho ao choque político em um período tremendamente turbulento na zona do euro. Essas turbulências voltaram a brotar com força pela covid e os planos de reconstrução econômica da UE.
Uma vez em Washington, durante o encontro de Monti com o presidente norte-americano dedicaram 20 minutos à questão alemã. “Eu lhe expliquei que é preciso levar em consideração que para os alemães a economia é um ramo da filosofia moral e que o crescimento é uma recompensa ética por um bom comportamento econômico, que seus assessores keynesianos não iriam convencê-la defendendo um déficit orçamentário”, lembra o ex-mandatário italiano no gabinete da Universidade Bocconi, em Milão, que preside.
Obama e Merkel aprenderam a tecer uma excelente relação. Mas o americano, seriamente preocupado pela contínua instabilidade da zona do euro, não conseguia compreender a lógica da chanceler em um momento em que o euro poderia ir pelos ares. Boa parte da Europa considerava que sua interpretação do problema como uma briga entre virtuosos cumpridores (credores) e esbanjadores (devedores) havia contribuído para agravar a queda da zona do euro no último continente a sair da Grande Recessão. Em seu país, entretanto, a pressão aumentava e choviam críticas por considerá-la muito generosa com os parceiros europeus.
Monti e Rajoy infligiram a Merkel sua primeira derrota no Conselho Europeu, onde ela impunha receitas para sair da crise, baseadas em austeridade e nas reformas estruturais. “Na Itália, em uma semana fizemos uma reforma do sistema de aposentadorias como o que agora Macron pretende fazer. Mas como as pessoas vão confiar se o prêmio de risco não se reduzia?”, lembra Monti. E Rajoy acrescenta que “a Espanha havia feito reformas muito importantes e o prêmio de risco continuava subindo. Chegamos à conclusão de que não era tanto um problema da Espanha e sim de toda a UE. Houve um momento em que a Europa também esteve em risco”.
Ambos foram à cúpula europeia de junho de 2012. Em uma quinta-feira às cinco da tarde foi convocado o Conselho Europeu. Os mercados esperavam atentos. Quando o Conselho acabou, às 19h, surge o inesperado. “Sinto muito, a Itália veta esse pacto de crescimento. Estamos totalmente de acordo com o conteúdo, mas não será entendido como uma mensagem importante se não podemos solucionar a questão da governança da zona do euro”, Monti afirma ter dito entre quatro paredes. Rajoy diz que foi ele quem falou primeiro para dizer que não existiria acordo se os países do Sul não fossem levados em consideração. “Merkel saiu como uma fera, mas em vez de brigar comigo, brigou com Monti”, lembra o espanhol.
Autorias à parte, o certo é que a Itália e a Espanha exigiram que a cúpula da zona do euro enviasse uma mensagem clara aos mercados de que o Banco Central europeu (BCE) interviria em defesa da moeda comum. A vitória, na realidade, não foi tão taxativa porque a recapitalização direta dos bancos nunca chegou a ser aprovada e a união bancária também não chegou a se concretizar.
Naquela noite, por volta das quatro da madrugada, Merkel cedeu. “Estava desconcertada, era sua primeira derrota”, lembra uma fonte europeia. A reunião coincidiu com uma partida da Eurocopa de futebol entre a Alemanha e a Itália em que os do Sul também se impuseram. E Monti jogou ainda mais sal à ferida, ao romper o compromisso de guardar silêncio até a manhã seguinte e anunciar com grande publicidade que a Itália havia se livrado da troika e que a crise do euro começava a ser solucionada.
Depois de mal descansar duas ou três horas no hotel, Merkel tomou o café da manhã com as manchetes da imprensa anunciando a derrota dupla e humilhante: no futebol e na cúpula europeia. “Não estava somente surpresa, estava muito, muito zangada”, lembra Juncker. “A partir de então, nunca saiu de uma cúpula sem dar imediatamente sua versão à imprensa.” Essa cúpula marcou um ponto de inflexão na crise do euro e na trajetória de Merkel. Pouco tempo depois, o presidente do BCE, Mario Draghi, proferiu sua famosa conjura ―whatever it takes― e os mercados, assustados, retiraram suas apostas sobre a ruptura do euro.
“O caminho que abrimos nesses meses e anos, projetando novos mecanismos para salvar o euro, foi em grande medida obra de Merkel”, reconhece Thorning-Schmidt, presidenta semestral da UE no primeiro semestre de 2012.
Mas a gestão da crise revelou um dos perigos do método político de Merkel, baseado em reunir todos os dados, durante semanas ou meses se necessário, antes de tomar uma decisão. “Ela é de ciências e pensa as coisas começando pelo fim, pelo ponto de chegada”, descreve Juncker, que como presidente do Eurogrupo, primeiro, e da Comissão, mais tarde, sofreu o permanente Nein de Berlim às propostas mais ambiciosas. “Hesitou e não se atreveu a dizer aos seus eleitores que havia chegado o momento de a Alemanha exercer uma liderança na Europa. Em vez disso, adiou uma solução para a crise grega que acabou contagiando toda a Europa”, diz González Laya.
“Na Alemanha não era fácil, ela estava sendo criticada inclusive pelo próprio partido por manter a Grécia dentro do euro”, diz Brok. Este veterano dos corredores de Bruxelas recorda que durante uma das muitas disputas com o grupo parlamentar da CDU no Bundestag, Merkel os advertiu: “Nunca darei as costas à Europa, mesmo que tenha de votar contra o meu partido e ao lado do SPD [socialdemocratas]”.
O ex-presidente francês, François Hollande, lembra que no verão de 2015, com todas as pontes rompidas entre Bruxelas e o Governo grego de Alexis Tsipras e Yanis Varoufakis, Merkel considerou a expulsão da Grécia da zona do euro. “Pela primeira vez ela me disse que era nosso dever trabalhar sobre um cenário de saída da zona do euro”, diz Hollande em seu livro Les Leçons du Pouvoir (As Lições do Poder). Seu então ministro de Finanças, Schaüble, firme defensor do Grexit, a incentivou a dar esse passo tremendo. Mas Merkel não o deu. Evitou a tragédia do Grexit, que teria sido o maior passivo do legado de seu mandato.
A crise do euro afetou a todos. E Merkel, que chegou ao terceiro mandato (2013-2017) com a autoridade intacta, mas o prestígio questionado dentro e fora de seu país. Em Berlim começaram a surgir vozes a favor de começar a preparar a substituição. Em Bruxelas, o cansaço por causa da austeridade e dos corralitos (na Grécia e no Chipre) era evidente e tanto o FMI quanto o BCE começavam a se distanciar das receitas da troika.
Mas a chanceler voltou a mostrar uma de suas duas principais características: a resistência e paciência na hora de tomar decisões. Enquanto outros começaram a considerá-la liquidada, ela se dispunha a passar mais cinco anos como a maior referência de um Conselho Europeu onde havia passado de líder recém-chegada a ser a mais veterana depois do crivo da crise.
Em dezembro de 2005 desembarcou no Conselho Europeu, um fórum de líderes no qual, desde a sua fundação em 1974, só havia contado com um punhado de mulheres, com Margaret Thatcher como a mais destacada. Merkel, que foge de qualquer rótulo, tampouco se define como feminista. No entanto, nos últimos tempos exibiu em várias ocasiões uma maior consciência de gênero. A dinamarquesa Thorning-Schmidt, uma das líderes que esteve no Conselho durante a era Merkel, acredita que entre elas “havia um certo vínculo” porque as duas eram mulheres. A ex-primeira-ministra dinamarquesa recorda um encontro com Merkel no banheiro feminino do edifício Justus Lipsius (sede do Conselho em Bruxelas) durante uma das muitas cúpulas. “Estávamos lavando as mãos juntas enquanto discutíamos o orçamento europeu. Quando saímos, rimos comentando que ‘agora as negociações foram para o banheiro das mulheres’”.
González Laya acredita que “embora Merkel não queira insistir nisso, talvez haja um componente feminino em sua maneira de fazer política, um poder que não se exerce com gritos ou expressões altissonantes, mas com o intelecto e a escuta”. A própria chanceler explicou isso no ano passado em uma entrevista atípica ao Die Zeit: “A voz de uma mulher não é tão forte nem tão grave quanto a de um homem. Para uma mulher, irradiar autoridade é algo que precisa aprender”.
Outro de seus pontos fortes é, sem dúvida, o já célebre Teflon. Aquela capa de chuva espessa e invisível, quase desumana, que faz com que deslize sobre ela tudo o que é suscetível de ser considerado como algo pessoal e com capacidade de distrair na tomada de decisões. “Ela tem a pele dura e não deixa que as coisas a afetem pessoalmente”, diz uma pessoa que a conhece. Thorning-Schmidt relembra os anos da crise do euro em que havia manifestações nas quais fotos da chanceler alemã eram queimadas nas ruas gregas. “Expliquei a Merkel que minha filha de 13 anos, ao ver como a atacavam, ficou em choque. Pude ver como isso afetou Merkel, mas também senti que a única maneira de ela tomar decisões difíceis era mantendo distância das críticas à sua pessoa e vendo isso como uma crítica à sua figura pública.”
O reconhecido instinto e o olfato que lhe permitiram sobreviver no meio do vendaval político, que levou tantos de seus colegas, falharam em 2015, talvez a única vez em que abordou um problema europeu com a paixão das entranhas e deixando de lado o frio cálculo cerebral.
Aquele fim de verão marcou a carreira da chanceler. As imagens de milhares de refugiados amontoados na estação de trem de Budapeste e mobilizados na “marcha da esperança” rumo à Alemanha a pé obrigaram Berlim a tomar uma decisão transcendental para evitar uma tragédia humanitária ainda maior. O Regulamento de Dublin obriga o país no qual os requerentes de asilo entraram na UE a tramitar o asilo, mas a Hungria não queria saber deles e fretou ônibus para levá-los à fronteira austríaca. Os fugitivos da guerra tinham apenas um destino em mente: “Germany, Germany, yala, yala [Alemanha, vamos lá]”, gritaram.
Merkel decidiu não fechar as portas e mais de um milhão de refugiados chegou à Alemanha naquele ano, graças a uma decisão muito criticada em alguns setores de seu país e de seu partido, mas que a chanceler ainda hoje defende. “Wir schaffen das” (nós conseguiremos), proclamou Merkel. A frase encorajadora e as fotos pretendiam ser um símbolo da generosidade e da abertura da Alemanha em meio à enorme onda de refugiados vindos da Síria que sobrecarregaram parceiros europeus como Grécia, Áustria ou Hungria. Nas estações de trem, os alemães correram para dar as boas-vindas aos recém-chegados com bolas e bichos de pelúcia para as crianças.
A chamada “cultura de boas-vindas” daqueles que inicialmente aplaudiram os recém-chegados nas plataformas das estações foi se eclipsando, enquanto o discurso xenofóbico foi ganhando terreno. Merkel não podia imaginar que a política de portas temporariamente abertas estaria prestes a acabar com sua carreira política e contribuiria para engordar a extrema direita até entrar no Parlamento alemão com 92 deputados.
Muito se especulou sobre a verdadeira motivação dessa decisão que transformou a Alemanha e a Europa para sempre. Sobre se Merkel agiu como sempre, movida pela razão, ou pelo coração. Mas a verdade é que pela primeira vez Merkel estremeceu. Na Europa, a fratura continua viva.
Em Bruxelas e em algumas capitais europeias a decisão de Merkel foi interpretada como um perigoso efeito de apelo por muitos de seus até então aliados.
Donald Tusk, que havia chegado à presidência do Conselho Europeu em grande parte graças ao seu apoio, teve o primeiro grande choque como resultado desse acontecimento. “Ela me disse que a onda de refugiados era grande demais para ser contida; eu disse exatamente o contrário: era grande demais para não ser contida”, afirmou em uma entrevista em dezembro em Bruxelas. Quem a conhece garante que Merkel, que passou a infância e a juventude atrás da cortina de ferro, prometeu a si mesma lutar para que mais muros não fossem erguidos.
“A Alemanha agiu de maneira responsável porque a situação poderia explodir em vários países”, diz Elmar Brok, ex-eurodeputado da CDU. “Não queria ver as mães com suas filhas na intempérie. Talvez seja sua compaixão. Essas pessoas já estavam na Europa. Sim, depois vieram mais, mas muito menos do que o que a Turquia, por exemplo, recebeu.” Juncker também considera injusto o linchamento a que Merkel foi submetida, principalmente em suas próprias fileiras do Partido Popular Europeu.
A avalanche de críticas aumentou à medida que cresceu o fluxo de refugiados. Thorning-Schmidt acredita que “foi um erro acolher os refugiados sem organizar previamente as coisas com os outros parceiros europeus”. O ex-comissário Günter Verheugen, socialista, é ainda mais duro em relação à decisão de Merkel. “A Alemanha não podia decidir por si própria, Merkel rompeu as regras. Não tentou buscar uma decisão comum e ninguém entendeu o que fez. No final, acabou dando munição aos brexiteiros de Nigel Farage e alimentou o partido Alternativa para a Alemanha (AfD), que havia nascido para atacar o euro e se transformou em um partido anti-imigração.”
Na Alemanha, a ala direita de seu partido ainda não a perdoou por essa decisão, que acredita ter aberto um espaço excessivo à direita do partido e deu asas à extrema direita. Tampouco a imprensa conservadora e sensacionalista que se fortaleceu desde então. “Eu me reuni várias vezes com ela e conversamos frequentemente por telefone naqueles meses de 2015. E ela se sentia ferida pelo injusto processo ao qual foi submetida”, relata o então presidente da Comissão. “A imprensa de direita e alguns partidos”, acrescenta Juncker, “fizeram a opinião pública acreditar que Merkel abriu as portas de par em par, quando a única coisa que fez foi não fechá-las para evitar um drama humanitário.” A chanceler alemã saiu muito enfraquecida daquele episódio no qual investiu boa parte de seu capital político.
A fragilidade e a avalanche de vozes daqueles que começaram a considerá-la pouco mais do que um pato manco é ouvida agora com surdina. O monumental desafio do coronavírus colocou novamente a chanceler na primeira linha da política alemã e europeia. O vírus pôs à prova a coesão da UE como nunca antes. Ressuscitou tensões e agravos mal digeridos durante décadas, com vigor preocupante. A decisão alemã no início da crise, e depois revertida, de não exportar material sanitário provocou urticárias nos países que contavam seus mortos aos milhares.
A fissura entre o norte endinheirado e o Sul mortalmente atingido pelo vírus e necessitado de financiamento europeu ameaça a derrubada. Merkel compreendeu que essa crise é muito mais que um revival da do euro e que, ao contrário daquela, é simétrica, ou seja, ataca todos os países igualmente, independentemente de suas virtudes fiscais. Mas, ao mesmo tempo, a chanceler tem sido inflexível quando se trata de ceder em uma linha vermelha, lavrada a golpe de história e de primeiras páginas de tabloides na psique alemã: a mutualização da dívida que o Sul exige.
“Merkel tem claro que a Europa deve financiar conjuntamente a reconstrução, que não é um problema nacional e que a Alemanha tem que pagar mais do que outros e esse é um risco político interno que terá de assumir”, avalia Kornelius. Mas, ao mesmo tempo, continua, “Merkel não ultrapassará os limites alemães porque não podemos mutualizar a dívida, no sentido que isso é proibido por nossa Constituição e, se a aceitasse, provocaria um grande problema na política interna.”
O ex-comissário de Indústria Verheugen concorda. “Ela é considerada responsável, especialmente no Sul, pela resistência aos coronabônus, mas não é justo porque exigiria uma mudança na Constituição e inclusive um referendo”, argumenta Verheugen, que mostra “profunda preocupação” com o futuro da União. “Estamos enfrentando o maior choque externo imaginável e precisaríamos de uma liderança decisiva e um compromisso firme de solidariedade europeia, mas não o temos”, lamenta.
O impulso franco-alemão desta semana, pelo qual Berlim e Paris propõem a criação de um fundo de subsídios de 500 bilhões de euros, mas com o qual acima de tudo abrem as portas para o financiamento com dívida europeia, representa um marco histórico, que ainda deve se tornar realidade. Os mais otimistas acreditam que Merkel e Macron lançaram a semente dos futuros eurobônus, mas a chanceler alemã já mostrou outras vezes que seus passos são muito calculados e deixou claro que se trata de uma solução ad hoc para esta crise.
De qualquer forma, é cedo. Ainda há muita crise da covid-19 pela frente. A boa gestão será mais imprescindível do que nunca neste momento histórico, no qual a Europa joga seu futuro e Merkel seu legado.
Inúmeros adversários, começando pelo ex-chanceler socialista Gerhard Schröder, subestimaram e ignoraram a chanceler ao longo dos anos, sem perceber sua tenacidade e perseverança. Merkel, uma política habituada a sobreviver a seus obituários políticos, passou por quatro mandatos à frente da Alemanha, enquanto na França três presidentes ficaram pelo caminho: Jacques Chirac, Nicolas Sarkozy e François Hollande. Com nenhum deles chegou a se entender de verdade e a falta de sintonia entre Paris e Berlim nos últimos 15 anos impediu grandes avanços em uma União que, durante a era Merkel, se limitou a drenar a água para evitar o naufrágio total.
A chegada de Macron anunciou inicialmente ar fresco para o eixo franco-alemão, mas o impetuoso francês encontrou uma Merkel enfraquecida, pendente de formar um Governo que demorou quase seis meses para se consolidar e que nasceu sem tração e sempre pendente da frágil saúde da grande coalizão e dos processos eleitorais nos Länder. Quando não era a Renânia do Norte-Westfália, era Hesse e depois a Turíngia.
“Ela acredita que o pacto franco-alemão é fundamental para a UE, mas não entende completamente o modelo francês. Não entende bem por que a França não se reforma”, diz Solana em seu escritório na Esade-Geo, em Madri. Entre os dois países, “os grandes choques foram econômicos”, acrescenta.
Às diferenças com Paris se juntaram os mal-entendidos com Londres. O primeiro ministro britânico, David Cameron, nunca soube interpretar corretamente os sinais que chegavam de Berlim e em mais de uma ocasião tentou tirar proveito da afinidade entre a Alemanha e o Reino Unido para chantagear a UE via Berlim. Merkel rejeitou essas tentativas mais de uma vez, como quando Cameron tentou um tratamento especial para a City londrina como centro financeiro à margem das regras da zona do euro.
Foi a UE de Merkel que cedeu parcialmente ao desejo de Cameron de poder discriminar temporariamente os trabalhadores comunitários deslocados no Reino Unido. Uma concessão que pretendia ajudar o primeiro-ministro a vencer o referendo sobre a saída do clube. Mas o plano não funcionou. E em 23 de junho de 2016 a vitória do Brexit condenou a UE à primeira amputação em sua história. A votação provocou um eletrochoque em todas as capitais europeias. A prioridade de Bruxelas e de Berlim passou a ser que o Brexit não se tornasse o começo do fim da UE. “Merkel estava muito preocupada com as sucessivas crises. E, acima de tudo, depois do Brexit, sua maior prioridade era manter a unidade da UE”, lembra Juncker. “Ela se tornou uma espécie de garantia europeia frente a todas as crises”, acrescenta o luxemburguês.
A sucessora de Cameron, Theresa May, manteve a mesma estratégia do divide e vencerás, buscando em Berlim a cunha com a qual lancetar a UE. Também sem sucesso. Durante toda a negociação do Brexit, Merkel se manteve fiel à equipe europeia, liderada por Michel Barnier, apesar de que em certos momentos sofreu a pressão da indústria alemã para acomodar algumas das exigências de Londres.
O outro grande desafio à coesão da União veio do Leste, de um território teoricamente tão familiar à chanceler como Moscou. “Merkel não é pró-Rússia, mas também não pode ser anti-Rússia”, explica Solana, que lembra a frequência com que tratou com a chanceler as crises da Rússia ou do Irã. “Ela sabe que a geografia é a que é e que a Rússia está aí: e espera alcançar acordos favoráveis para ambas as partes”, diz o espanhol, ex-chefe da diplomacia comunitária. Solana lembra que os grandes atritos com Moscou aconteceram na Ucrânia. “Em 2004 foram bem resolvidos. Em 2014, não tão bem”, acrescenta.
O líder russo, Vladimir Putin, iniciou uma guerra híbrida que desestabilizou a Ucrânia no momento em que este país estava se aproximando da UE e da OTAN. O conflito terminou com a anexação russa da Crimeia, a primeira ocupação territorial na Europa desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Os equilíbrios de Merkel com Putin entravam em águas turbulentas.
Mais uma vez, a chanceler deu prioridade à unidade da UE e apoiou as sanções contra a Rússia, renovadas várias vezes desde então. Ainda assim, Merkel procurou não romper os laços com o Kremlin. Ela continua enviando a Vladirmir Putin algumas caixas de cerveja alemã todos os anos como presente (Radeberger) e recebe de volta peixe defumado russo. E, apesar das críticas europeias e norte-americanas, Berlim manteve a construção do segundo gasoduto do Báltico (Nordstream 2) para garantir o fornecimento de gás russo à Alemanha sem passar por zonas intermediárias como a Ucrânia.
Nos últimos tempos, a tensão com a Rússia não deixou de aumentar. Recentemente, no Parlamento, Merkel qualificou de “escândalo” as revelações de que um espião russo estaria por trás do hackeamento do Bundestag em 2015. A chanceler afirmou que trabalha “diariamente para ter uma melhor relação com a Rússia”, mas considerou que episódios como o de 2015 “não facilitam”.
Sua relação com os países do leste da Europa foi marcada por uma experiência fundamental que não é comum para um político ocidental. Merkel chegou tarde à UE, uma vez derrubado o muro de Berlim. Nasceu em Hamburgo há 65 anos, mas cresceu na Alemanha Oriental, depois que o pai, um pastor protestante, emigrou em missão evangelizadora. A mudança lhe permitiu aprender russo e estudar ciências na universidade. Passou os primeiros 35 anos de sua vida atrás da cortina de ferro, olhando para o leste. Vinha de outro mundo.
Por isso, quando Merkel viaja para a Bulgária, conhece as estações de trem e os bairros e sabe onde há ursos nas montanhas. E por esse motivo Merkel nunca questionaria o destino europeu de países como a Hungria, porque essa é a Europa que conhecia até 1989. Para Merkel, os países do leste, com os quais mantém intensos contatos, assim como com os Bálcãs, continuam sendo muito importantes. Também porque pensa na UE como uma força pacificadora, capaz de resolver conflitos. Berlim sempre foi muito a favor da ampliação e sentiu que a Europa se completava. No entanto, a crise dos refugiados abriu uma profunda fissura entre Berlim e os países da Europa Oriental, que Merkel dificilmente poderá fechar, pois é uma política demasiado marcada nas capitais desses países.
Seu perfil atípico faz com que, no fundo, o clube de homens do oeste da Europa e da Alemanha ainda não a considere como um dos seus. O ex-comissário Günter Verhuegen explica isso em um café na capital alemã: “Para as pessoas que viveram o período pós-guerra, gente como Kohl, por exemplo, as relações com a França são uma condição sine qua non, é algo enraizado na história, é algo muito emocional para aqueles de nós que sabem o que é um país devastado pela guerra. Ela é mais jovem e do leste da Alemanha. Não tem essa experiência emocional com a União Europeia. Ela tem uma visão muito técnica da UE”.
Solana trabalhou com ela em várias ocasiões e foi o encarregado de pronunciar a laudatio quando Merkel recebeu o título de doutora honoris causa em Leipzig, em 2008, e teve a oportunidade de jantar depois com ela e sua família. O ex-chefe da diplomacia europeia não duvida de que “ela acredita na UE e se preocupa com o bem-estar social, é uma democrata cristã clássica no estilo de Lubbers [Ruud]. É mais social do que algum socialdemocrata. Ela é muito, muito austera em tudo. No viver, na palavra. Quer fazer coisas pela sociedade”. Durante seus quatro mandatos, a Alemanha profissionalizou o Exército, aprovou o salário mínimo e decretou o fechamento das usinas nucleares, além de permitir a entrada de mais de um milhão de refugiados.
Juncker, que teve contato com ela logo depois de ter entrado na política após a reunificação da Alemanha (1990), não acredita, no entanto, que sua carreira pessoal tenha sido fundamental em seu papel posterior como chanceler. “É verdade que a biografia de um líder é importante e que ela vinha da Alemanha Oriental e não tinha experiência na política ocidental, mas aprendeu muito rápido”, lembra o ex-primeiro-ministro de Luxemburgo.
A verdade é que a UE que Merkel deixará tem pouca semelhança com a que viu a jovem cientista chegar, na época ministra do Meio Ambiente do Governo de Kohl. O mundo e a UE mudaram muito e muito rápido. Merkel também. A chanceler está preocupada com o futuro. Teme que os valores e consensos construídos com cuidado durante décadas na Europa e na comunidade internacional acabem sendo derrubados pela ofensiva neopopulista e nacionalista. Mencionou isso no ano passado em seu discurso na Universidade de Harvard: “A democracia não é algo que possamos considerar como garantido, nem a paz nem a prosperidade”.
Créditos
Coordenação e formato: J. A. Aunión
Desenho: Ana Fernández
Direção de arte: Fernando Hernández
Maquetação: Alejandro Gallardo
Vídeo: Daniel Castresana
Edição gráfica: Carlos Rosillo
Retratos dos perfis: John Thys (AFP), Samuel Sánchez,
Gregor Fischer (EFE), Jaime Villanueva y Manuel Vázquez