‘Mama África’ está aqui, em Salvador
Casas de culturas africanas no coração da capital baiana resgatam laços entre Brasil e o continente para além da escravidão
O mito Sankofa, presente na cultura de povos da África Ocidental, diz que “não é tabu voltar atrás e buscar o que esqueceu”. Quem caminha pelo Pelourinho, no centro histórico de Salvador (BA), logo vê o passado se fazendo no agora, para além das ladeiras de paralelepípedos ou dos casarões coloniais de cores vivas: está no som dos atabaques que ensaiam um afoxé, nas várias baianas que vendem acarajé na região, nos quadros vendidos por artistas nas ruas. E em centros de cultura de países africanos que, para além do terror histórico da escravidão, resgatam laços culturais entre esse continente e o Brasil no coração daquela que é considerada a cidade mais negra fora da África.
A primeira delas rasga o céu numa encruzilhada, uma esquina de seis caminhos. Descendo a ladeira do Pelourinho ou subindo a do Taboão, entrando pela Baixa dos Sapateiros ou vindo pela Rua das Flores, descendo pela Rua do Passo ou subindo a ladeira do Carmo. É entre o Pelourinho e o bairro do Santo Antônio Além do Carmo—e quase no meio do Comércio— que se ergue o imponente casarão de três andares do século XVIII que sedia a Casa do Benin (de cuja costa saiu a maioria dos escravizados rumo à Bahia), criada em 1988, com projeto de reestruturação arquitetônica assinado por Lina Bo Bardi (o local, que foi residência e ponto comercial, sofreu um incêndio em 1978, quando foi fechado).
A arquiteta italiana emprestou suas linhas retas para integrar todo o espaço, respeitando a herança histórica do que sobreviveu às chamas, e colocou pilotis no lugar de colunas pesadas, além da escada de concreto em um vão aberto, que quase permite contemplar ao mesmo tempo diferentes espaços do museu. No pátio, Bo Bardi também construiu um restaurante circular, com teto coberto de palha —nos moldes de construções tradicionais africanas—, onde destacam-se suas famosas cadeiras Girafa.
O acervo da Casa do Benin, composto por instrumentos em ferro de culto aos orixás, objetos de uso cotidiano e obras de arte talhadas em madeira, foi trazido, em grande parte, pelo fotógrafo Pierre Verger, que, ao lado de Arlete Soares, ex-diretora da Fundação Gregório de Mattos (FGM), responsável pelos equipamentos culturais públicos de Salvador, idealizaram o local. Um dos objetos de maior valor histórico e cultural é um machado de Xangô, entalhado em madeira, comprado por Verger em uma feira de alguma cidade daquele país. “A Casa do Benin tem esses dois grandes braços, arquitetura e o acervo. Vêm muitos arquitetos ver a estrutura do lugar e vêm muitos estudiosos de Verger ver as peças”, conta Igor Tiago, gestor cultural do local. Ele descreve o que geralmente sente quem entra na instituição pela primeira vez: “Muita gente se emociona, parece que se sentem, de fato, ligadas ao país quando veem as peças, quando transitam pela Casa. É como se o lugar rememorasse algo que elas não viveram ou não lembram e que, quando chegam aqui, apenas sentem”.
“A Casa do Benin é um portal de conexão entre Salvador e a África”, acrescenta Chicco Assis, gerente de equipamentos culturais da FGM. Ele diz que seu objetivo é trazer para a contemporaneidade a leitura de um acervo artístico que conta uma parte significativa da construção da identidade soteropolitana. “É preciso lançar um olhar diferenciado para a África, mostra as tecnologias na música, na arquitetura, na construção de ferramentas que estão expostas aqui. Lina foi muito precisa em seu projeto ao preservar os aspectos coloniais, que foram construídos com muita contribuição dessas tecnologias africanas”, avalia.
Benjamin Sabby, diretor da Casa de Angola, que fica a 950 metros (ou 10 minutos de caminhada) da Casa do Benin, e que foi criada pela Embaixada angolana em 1999 para divulgar e promover a cultura de Angola e o intercâmbio cultural entre os dois países, compartilha essa visão. O acervo, emprestado do Museu Nacional de Antropologia, em Luanda, composto de obras de arte, peças mágico-religiosas usadas em rituais de iniciação e uma biblioteca com mais de 9.000 títulos é apenas um de seus orgulhos. A atividade que Sabby mais gosta de realizar é a visita a escolas e a recepção de estudantes na Casa da Angola (agora de maneira virtual). “Isso leva muita autoestima para essas crianças afrodescendentes. É triste para uma criança pensar que de onde ela é originária só tem coisas negativas. Mostro vídeos de Luanda, de Johanesburgo, cidades desenvolvidas, para que elas vejam que o continente não parou no tempo”, conta.
Sabby lamenta que os afrodescendentes brasileiros não conheçam a história de resistência do próprio povo. Em Angola, ele conta, se estuda desde cedo a escravidão, mas também há um grande enfoque nos heróis que combateram os colonizadores, desde a rainha Njinga, que lutou durante 40 anos para defender o país, até as figuras mais contemporâneas, que lutaram pela independência, conquistada em 1955. “Tenho a impressão de que aqui todo mundo acha que os negros eram só escravos e que eles próprios são apenas descendentes de escravos. Não. São descendentes de sociedades organizadas que tinham reis, nobres, artistas, toda uma esfera social. As pessoas não nasceram com a sina de ser escravas”, reforça.
O diretor da Casa da Angola ressalta, no entanto, que a religiosidade africana está mais presente na capital baiana, onde ele vive há três anos e nove meses, do que no seu próprio país. “Acabo por fortalecer mais minha identidade africana aqui. Salvador é dos locais em que já estive e não me senti fora de casa, a paisagem arquitetônica é muito parecida, sobretudo o centro histórico, e as pessoas também. É muito recorrente olhar para uma pessoa e achar que eu a conheço de Luanda”.
O racismo, no entanto, foi algo a que Sabby não estava acostumado. Para ele, “combater o racismo é a base para que o Brasil seja, de fato, uma potência.” Também nesse sentido, Chicco Assis considera que as casas de culturas africanas têm muito a oferecer. “Nesse contexto, qualquer espaço de produção e preservação afrodiaspórica se torna mais que um espaço cultural, mas também de fortalecimento dessas relações e forma de combate a esses preconceitos”, diz.
Princípios
A Casa do Benin nasceu com o projeto ambicioso de servir como piloto para outras instituições similares de representação de diversos países africanos, cada um com a contrapartida de uma Casa do Brasil em seus próprios territórios. O plano, no entanto, não seguiu adiante, por diversos entraves políticos. A própria Casa do Brasil no Benin, que fica na cidade de Uidá, não contempla todo esse propósito —nunca houve lá, por exemplo, uma mostra de arte brasileira. Na capital baiana, a mais recente casa africana é a da Nigéria, criada em 2008, cujo acervo contém livros, objetos de artesanato e obras de arte nigerianas, a partir de uma curadoria feita pelo próprio Ministério da Cultura e Arte daquele país. A Casa da Nigéria também era um importante centro de preservação da língua iorubá —oferecia cursos desse idioma—, além de dança e música afro. Era, porque, desde 2014, com a chegada do conservador Muhammadu Buhari à presidência, fundos para a cultura foram cortados e a instituição fechou as portas.
“Nunca mais houve iniciativas parecidas para aproximar o Brasil da África, uma relação que, infelizmente foi muito construída sobre o tráfico negreiro”, lamenta o museólogo Joaquim Araújo, cujo mestrado foi uma pesquisa nas Casas do Benin, de Angola e da Nigéria em Salvador. Ele lembra que elas nasceram de contextos políticos muito específicos e que têm berço nos anos setenta, quando crescia no Brasil a demanda de representatividade negra —algo que, na Bahia, se traduziu na apoteose dos blocos negros de carnaval, como o Ilê Ayê— e a redemocratização do país pós ditadura militar.
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Clique aquiAraújo critica, no entanto, a falta de contemporaneidade à qual elas remetem. “As três Casas caem em estereótipos muito fortes sobre as culturas da África, são culturas tradicionais que aparecem congeladas no tempo, não conseguem se ressignificar na modernidade, o que acarreta um discurso de exoticismo”, explica. Ele aponta, por exemplo, a falta de referências ao afrofuturismo, um terreno fértil do qual o afrobeat de Gana ou Nollywood (a indústria cinematográfica da Nigéria) são apenas alguns expoentes. “O continente é muito maior do que a Mama África à qual a gente se apega. Não à toa, Beyonce foi para lá produzir música e reconstruir sua estética visual”.
Apesar disso, o museólogo não deixa de reconhecer a importância cultural, histórica e até diplomática dessas instituições. “Todas as cosmovisões baianas estão muito relacionadas a esse legado africano”, diz. Os brasileiros temos, afinal, muito mais do Obá (rei ou governante na língua edo da Nigéria) do que dos reis franceses.
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