Literatura com axé
Autores brasileiros resgatam a mitologia dos orixás, transformando-os em super-heróis e aproximando-os de jovens e crianças
Dentro de algum tempo, 2018 quiçá seja lembrado como o ano em que as narrativas negras ganharam destaque na cultura. Séries como Atlanta, que conta a história de um jovem negro tentando sobreviver nos Estados Unidos, foram aclamadas pela crítica e pelo público; This is America, o poderoso manifesto musical de Childish Gambino, foi eleita a canção do ano nos Grammy e, pela primeira vez, um filme de super-heróis, Pantera Negra, produção que celebra a cultura africana e o afrofuturismo, concorre ao Oscar de melhor filme. No Brasil, 2019 começou com o resgate da mitologia afrobrasileira na literatura, da mão de autores que, com diferentes linguagens, tentam fazer dela uma história universal.
Aproximadamente na mesma época em que Pantera Negra começou a ser produzido, em 2016, o quadrinista baiano Hugo Canuto deu início ao projeto Contos dos Orixás, uma série de pôsteres e revistas —agora reunidos em um livro homônimo, de 120 páginas—, com ilustrações que trazem histórias dos mitos do povo Yorubá no estilo dos heróis em quadrinhos da Marvel. Na obra, Yemanjá (a rainha do mar), Xangô (deus do trovão), Oxum (rainha dos rios e cachoeiras), Iansã (senhora dos ventos e tempestades) e outras divindades protagonizam enredos cheios de ação em uma África mítica, de um tempo em que os seres divinos caminhavam ao lado dos seres humanos, transitando entre o Orum (céu ou o mundo espiritual) e o Aiyê (terra ou o mundo físico).
Para construir a narrativa baseada na mitologia yorubá —uma das mais tradicionais civilizações da África Ocidental, em territórios onde hoje estão a Nigéria, Benin e Togo—, Canuto trabalhou durante dois anos e meio ao lado de líderes religiosos e pesquisadores, entre os quais destaca as sacerdotisas do Terreiro do Gantois, em Salvador, e seu professor de yorubá, Mawô Adelson S. de Brito. Tendo como referência obras de Pierre Verger, Edson Carneiro e Lydia Cabrera, Canuto conta a EL PAÍS que a inspiração para sua obra foi precisamente o "legado das civilizações africanas que moldaram a Bahia e sua ancestralidade" que na obra está representada pelos Itan (conjunto de narrativas relacionadas aos Orixás).
"Esse livro foi feito para desconstruir o discurso obscurantista sobre os Orixás e também para ser um instrumento de força e autoafirmação da cultura afro, pensado para também ser usado em sala de aula pelos professores", explica o autor. Canuto, que realiza oficinas gratuitas de quadrinhos com jovens da rede pública de ensino na Bahia, distribuiu exemplares da obra a educadores. Contos dos Orixás também está sendo utilizado como referência em livros didáticos, citado em teses universitárias e as ilustrações dos Orixás em sua versão mais superpoderosa estão sendo expostas em países como Estados Unidos e Inglaterra.
Orixás para crianças
Também pensando em levar mais cultura negra para as salas de aula, a educadora e escritora Waldete Tristão publicou em dezembro o livro infantil Conhecendo os Orixás: de Exu a Oxalá. A obra, ilustrada por Caco Bressane, apresenta as características e particularidades de 17 orixás, segundo a cultura que ganha adeptos no país: quais são suas cores, dias da semana, comidas favoritas e as forças da natureza que cada um comanda. Trata-se do primeiro volume de uma série de 18 livros, escritos por quatro autoras, que deve estar inteiramente publicada até o dia 12 de outubro.
A publicação do primeiro volume é o resultado de um projeto gestado desde 2006, quando ela conversava com o filho, Robson Gil, então com 14 anos, que estudava na escola a mitologia e os deuses gregos. "Me incomodava essa educação eurocentrada, porque meu filho só tinha referências da cultura negra em casa. Como ele ia interpretar Zeus, o deus do trovão, em uma peça de teatro, expliquei que nas religiões de matriz africana, o trovão é regido por Xangô. Seguimos conversando sobre isso e decidimos escrever juntos um livro para contar os Orixás às crianças".
O projeto foi adiado até 2017, quando Gil faleceu, aos 25 anos. Um ano depois, Tristão decidiu que era momento de ressignificar o luto e sua própria vida e retomou a ideia. "Sempre pensei nos valores civilizatórios da história e cultura africanas, que também vieram nos navios negreiros. A religiosidade é um valor que faz parte da ancestralidade dos povos afro brasileiros e levar isso para as escolas é permitir que as crianças negras se reconheçam", conta a escritora, que acredita que sua obra é a publicação infantil com o maior número de personagens negros (15).
Nas próximas obras da coleção, cada Orixá contará um Itan —contos que transmitem saberes inspirados em atividades do cotidiano—. Tristão explica que sua obra dialoga muito com a lei 10.639, de 2003, que tornou obrigatório o ensino da cultura afro-brasileira e africana nas redes pública e particular, do ensino fundamental ao ensino médio. "Defendo que todos os estudantes tenham acesso aos deuses e mitos, sejam eles africanos, europeus, indígenas ou asiáticos. Aprender, conhecer esses diferentes paradigmas é algo que faz parte da cultura, de um conhecimento histórico", diz.
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