Tempestades de areia em São Paulo deixam o alerta da ação predatória de atividade agrícola
Fenômeno conhecido como ‘haboob’ varreu várias cidades do Sudeste paulista e de outros três Estados. Especialistas apontam para o papel da desertificação na propagação das tempestades
Nos últimos meses, tempestades de terra, poeira e areia foram registradas em ao menos quatro Estados do país. Várias cidades de São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Maranhão foram açoitadas por este fenômeno conhecido como haboob, palavra árabe que significa em tradução livre “destruidor que se arrasta”. As chuvas voltaram, e as tempestades refluíram. mas deixaram cicatrizes profundas. Ao menos quatro mortes em São Paulo foram atribuídas às ondas que escureceram o céu nas áreas atingidas: sem visibilidade, três pessoas morreram queimadas ao tentar combater um incêndio em Santo Antônio do Arancaguá, e uma faleceu após os ventos fortes derrubarem um muro em Tupã. Estas tempestades, comuns em zonas secas e do semiárido brasileiro, têm relação com a devastação ambiental em curso no país, e também contam com a ajuda de outro fenômeno nocivo, segundo especialistas: a desertificação do solo.
A desertificação é um processo que facilita com que as tempestades e seus fortes ventos arrastem areia e poeira. Ela ocorre quando a camada natural de proteção do solo, formada por matéria orgânica, florestas e mata, é retirada, deixando a terra exposta. “Sem esta camada o solo fica muito ressecado, perde capacidade de absorver água, fica quebradiço e poeirento. Isso destrói o seu equilíbrio e consequentemente piora nossa qualidade de vida”, explica Tatiana Tucunduva P. Cortese, pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados da USP e docente do Mestrado em Cidades Inteligentes e Sustentáveis da Uninove.
Mas o que provoca esse desequilíbrio no solo? “A desertificação ocorre pelo uso inadequado do solo, da água e da vegetação. É fruto muitas vezes de uma ação predatória do homem sobre os ecossistemas”. Um dos fatores responsáveis pelo fenômeno é o uso intensivo da terra para atividades agrícolas —o que ocorre na região Oeste de São Paulo, uma das principais atingidas pelas tempestades de areia e castigada pela seca. “Estas atividades revolvem muito o solo. Essa prática somada ao uso de fertilizantes, pesticidas, reduz a quantidade de matéria orgânica que recobre o solo e o mantém coeso, deixando-o vulnerável”.
Sem cobertura vegetal ou matéria orgânica, a quantidade de poeira e areia soltas aumenta. “Estas tempestades de areia são provocadas por dois fatores: vento muito forte e poeira e terra soltas, facilmente levantada pelas rajadas”, explica Marcelo Seluchi, pesquisador e meteorologista do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). “E esse ano foi mais um ano de seca, com muita poeira depositada no solo”, diz. Assim, a falta de chuva colabora com a desertificação, e formou-se o cenário perfeito para a proliferação do haboob por várias regiões do país, principalmente no Sudeste.
O que ocorreu este ano, com dezenas de haboob cortando São Paulo e outros Estados, não é considerado normal. “Estas tempestades de areia são pouco frequentes [nessas regiões], não me lembro de ter tido um ano com tantas. Isso é atípico”, diz Seluchi. “Eu enxergo uma relação entre a seca [que colabora com as tempestades de areia] e a alteração dos ciclos hidrológicos provocados pelo desmatamento das florestas”, afirma. De acordo com o pesquisador, há décadas as regiões Sudeste e Centro-Oeste têm registrado índices abaixo da média de precipitação. “Não se trata de uma oscilação pontual, é uma tendência: uma redução constante e sistemática da chuva. E uma tendência dessas só se explica por uma causa que também se mantenha ao longo do tempo. Eu conheço só dois efeitos que se mantiveram ao longo das últimas décadas: um é o desmatamento, a mudança do uso do solo, e o outro é o aquecimento global, derivado do efeito estufa”.
Cortese, pesquisadora do IEA-USP, também aponta para o papel do desmatamento no agravamento do quadro ambiental e na proliferação das tempestades de areia. “O desmatamento traz um acirramento deste quadro e é um alerta: a umidade que a vegetação nativa e as florestas trazem regula o regime de chuvas do Sudeste. Se a área sem cobertura vegetal aumenta, existe um impacto nas chuvas”, afirma a professora. ”E isso não é exclusividade de Amazônia, vale também para a Mata Atlântica, o Cerrado... Com relação à floresta amazônica nós temos algo muito evidenciado que são os rios voadores, que trazem o vapor de água transportadas pelas correntes de ar. Quando tiramos a floresta vai se acabando com aquele grande reservatório, e com certeza haverá menos água circulando”. E mais seca. E mais tempestades de areia.
Com a chegada das chuvas no final de outubro, o número de haboob na região Sudeste diminuiu. Isso porque a água ajuda a fixar a poeira e a areia no solo, impedindo que as rajadas de vento levem consigo o material particulado para as cidades. Mas o que ocorreu este ano é um alerta, segundo os especialistas, do que pode vir a ser o novo normal do clima no Brasil, fruto da emergência climática: seca e desertificação, chuvas concentradas em um curto período de tempo e tempestades de areia nas cidades. “Esses fenômenos todos vão aumentar de frequência e de intensidade. Por isso precisamos agir”, diz Cortese.
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