O caminho de mentiras que levou o bilionário bolsonarista Luciano Hang à CPI da Pandemia
Defensor do tratamento precoce, empresário é investigado por financiar disparos ilegais de mensagens na campanha da eleição de 2018 e por bancar blogueiros que espalham ‘fake news’
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Um dos maiores e mais controversos apoiadores do presidente Jair Bolsonaro e do falacioso tratamento precoce contra a covid-19 será ouvido nesta quarta-feira pela Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia. O empresário Luciano Hang, dono da cadeia de lojas Havan, prestará depoimento aos senadores sob a suspeita de integrar o chamado gabinete paralelo, grupo formado por médicos e empresários que teria aconselhado o presidente na condução da crise sanitária à margem do que a ciência dizia e fora da estrutura do Ministério da Saúde. Em nota, ele negou fazer parte “de qualquer gabinete”. Além disso, a CPI pretende aprofundar a investigação sobre os laços entre Hang, o Governo e a operadora privada de saúde Prevent Senior, todos defensores do chamado kit covid —sem eficácia alguma contra o novo coronavírus.
A oitiva de Hang, bilionário com fortuna estimada em 15 bilhões de reais pela revista Forbes, ocorre dias após o escândalo dos estudos fraudulentos conduzidos em hospitais da rede Prevent Senior envolvendo o kit covid ter vindo à tona em reportagens da TV Globo. Além de usar pacientes como cobaias do chamado tratamento precoce (sem comprovação científica alguma), existem indícios de que algumas certidões de óbito foram adulteradas pelos médicos para omitir a real causa da morte —a covid-19. O próprio presidente e seus filhos celebraram nas redes sociais os resultados obtidos pelo estudo, apontado por eles como um caso de sucesso do uso de cloroquina e outras drogas no combate à doença.
Estas fraudes em certidões de óbito teriam sido feitas com o objetivo de oferecer números mais favoráveis para a terapia ineficaz defendida pelo Planalto, por Hang e pelo gabinete paralelo. Alguns integrantes da CPI suspeitam que o Ministério da Saúde teria incentivado e adotado protocolos como os da Prevent Senior com o objetivo de disseminar a utilização dos tratamentos ineficazes. Esta metodologia teria sido levado por funcionários da Saúde até Manaus, por exemplo, que em março deste ano viveu um dos piores colapsos sanitários registrados no país durante a pandemia.
O fio que envolveu de vez Hang neste enredo da Prevent Senior foi desatado devido a uma perda pessoal. Sua mãe, Regina Modesti Hang, 82, morreu em fevereiro deste ano após ser internada com covid-19 na UTI do hospital Sancta Maggiore, administrado pela operadora de saúde. Ela seria uma das pacientes que teve a certidão de óbito fraudada, segundo um dossiê entregue à CPI elaborado por 15 médicos que trabalharam na empresa. No documento, obtido pelo jornal O Estado de São Paulo, a causa da morte é descrita como “disfunção de múltiplos órgãos, choque distributivo refratário, insuficiência renal crônica agudizada, pneumonia bacteriana, síndrome metabólica, acidente vascular isquêmico prévio”. Nenhuma palavra sobre a covid-19 que levou à sua internação.
À época o empresário gravou um vídeo no qual lamentou não ter feito oferecido à mãe o tratamento preventivo, sem eficácia contra a covid-19: “Eu me cobro hoje que eu poderia ter salvado a minha mãe, de repente, se eu tivesse feito o preventivo, será que nós não poderíamos ter feito isso? E agora eu fico me perguntando, e se eu tivesse feito, será que ela não estaria viva? Reflita. Obrigado”. Hang também reafirmou ter “total confiança” nos cuidados que a mãe recebeu no hospital da Prevent Senior.
O presidente da CPI, senador Omar Aziz (PSD-AM), criticou na semana passada a atuação de Hang durante a pandemia e sua relação com a Prevent Senior, insinuando que o empresário levou a mãe a um hospital da empresa apenas para agradar Bolsonaro. “[O Hang] com as condições que ele tem poderia mandar a mãe até para a lua, e não ia levar para a Prevent Senior porque há outros hospitais com mais estrutura, inclusive para comorbidades que ele disse que ela tinha”. Mas antes disso as ações de Hang para promover o tratamento precoce já haviam sido alvo de críticas por parte de diversos integrantes da Comissão, e existe a expectativa de que a sessão desta quarta-feira seja marcada por debates acalorados entre Hang e a tropa governista e o relator Renan Calheiros (MDB-AL) e Aziz.
Fazendo jus ao seu estilo fanfarrão, na segunda-feira Hang apimentou sua participação na CPI ao postar um vídeo no qual aparece com um braço algemado: “Estou indo na CPI com o coração aberto. Gentileza gera gentileza, respeito gera respeito (...) Se por acaso eles [senadores] não aceitarem aquilo que vou falar, já comprei [a algema]. Para não gastar dinheiro com algema, já comprei uma algema, vou entregar uma chave para cada senador. E que me prendam”, diz. A resposta veio horas depois. O senador Calheiros escreveu em suas redes sociais que Hang “ensaia pastelão para encenar na CPI. Não adianta; só houve um Joaquin Phoenix no papel do Coringa e não há como imitá-lo. Terá que comparecer quarta-feira, dentro das regras do Senado, e responder pelos crimes de que é acusado”.
A acusação mais recente contra Hang veio à tona em 25 de setembro. Senadores da CPI obtiveram documentos que dão a entender que Hang financiou o blogueiro bolsonarista Allan dos Santos, responsável pela disseminação de notícias falsas, com a intermediação do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). A informação foi divulgada em primeira mão pela TV Globo, e todos negaram as acusações. Hang e Santos são alvos do inquérito das Fake News que tramita no Supremo Tribunal Federal. O blogueiro ainda é investigado no processo que investiga a incitação e o financiamento de atos antidemocráticos. Para o vice-presidente da CPI, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), “nós concluímos e identificamos (...) a existência de uma verdadeira organização criminosa de fake news que teve papel determinante no agravamento da pandemia”.
Mas os problemas do empresário com a Justiça envolvendo financiamento de fake news não começaram agora. Bolsonarista de primeira hora, ele é alvo de um processo que corre no Tribunal Superior Eleitoral por ter bancado de forma irregular disparos de mensagens em WhatsApp e postagem em redes sociais com conteúdo falso durante a campanha presidencial de 2018. Esta campanha massiva de desinformação teria como objetivo beneficiar Bolsonaro, e é apontada por especialistas como um dos fatores que levou o atual presidente ao Planalto. A defesa de Hang afirma que ele “nada tem a esconder” e que “jamais financiou disparo ou impulsionou mensagens pelo WhatsApp durante a campanha eleitoral”. Em outro processo, de 2019, o empresário foi condenado pelo TSE a pagar uma multa de 2.000 reais por pedir votos em Bolsonaro a seus funcionários da Havan, o que foi considerado como propaganda eleitoral irregular.
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