Que interesses ocultos existem para excluir Lula das manifestações contra Bolsonaro?
São duas estratégias, a do capitão reformado e a do ex-sindicalista, que acabarão se enfrentando em um momento ou outro. Nas circunstâncias graves e imprevisíveis em que vive o país, esse duelo não admite erros de cálculo
Quem conhece Lula diz que ele está como uma fera enjaulada, sem poder se jogar nos braços de seus seguidores. Ainda mais depois do sucesso da última manifestação nacional contra Bolsonaro, que foi uma surpresa para os próprios organizadores. Dadas as restrições impostas pela pandemia para participar de protestos contra o Governo, a alta porcentagem de participação surpreendeu a todos.
Dizem que Lula preferiu ficar em casa aguardando o resultado da manifestação, que era incerto. É possível também que tivesse medo de provocar aglomerações com sua presença e ser acusado de imitar Bolsonaro, que zomba das recomendações médicas para não agravar a tragédia da pandemia que está chegando ao meio milhão de mortos. Mas deve ter havido outros motivos que desconhecemos para não participar do protesto, mesmo que apenas virtualmente.
Lula preferiu recolher-se mudo e sem aparecer ou está sendo sequestrado? Até quando o sagaz e ao mesmo tempo impetuoso ex-sindicalista conseguirá se refugiar no silêncio?
Ainda mais quando todas as últimas pesquisas o apontam como favorito para ganhar as eleições.
Talvez Lula esteja calculando que, dado que Bolsonaro está concentrado em suas difíceis relações com o Exército e perdendo consenso popular, seria conveniente tanto enfrentá-lo na rua quanto continuar em silêncio por enquanto. Ou existe algo ou alguém que prefere que ele continue mudo e quieto?
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Ao que parece, existe na esquerda e em parte do PT a ideia de deixar Lula como o guru do partido à maneira de FHC e promover Guilherme Boulos, do PSOL, como sucessor de Lula na esquerda. No entanto, é difícil convencer Lula a ser uma rainha da Inglaterra. Não por acaso ele diz e repete que se sente como um jovem pronto para a luta e que acaba de se submeter a um minucioso exame cardíaco. Quer continuar lutando na linha de frente. Boulos ainda terá de esperar, apesar de ter sido o artífice bem-sucedido das últimas manifestações.
Há quem diga que Lula está sendo usado dentro do próprio partido para que se interesse mais em apoiar candidatos que possam ser eleitos para aumentar o peso do partido no Congresso do que por sua candidatura à presidência. Ou que se encarregue de favorecer uma candidatura de centro-direita para enfrentar o capitão reformado, evitando o confronto entre o PT e Bolsonaro. É difícil, no entanto, que alguém consiga convencer Lula a não enfrentar cara a cara o capitão cada vez mais desprestigiado dentro e fora do país.
É possível que exista um interesse, ainda não revelado, em impedir o duelo entre Lula e Bolsonaro por medo dos militares, dos quais não há mais dúvida de que apoiarão o capitão reformado na reeleição. O Brasil vive, de fato, um momento trágico por vários motivos, com o agravante de o Governo estar cada vez mais militarizado sem que seja possível saber se o Alto-Comando do Exército está ou não de joelhos diante do capitão que um dia expulsou por mau comportamento.
Seria preciso saber se o apoio ao presidente se deve mais aos méritos que veem nele ou ao fato de que aparece como o melhor candidato para derrubar Lula e o PT, que os militares enxergam como o demônio. Há analistas que chegam a pensar que, se os militares virem que a vitória de Lula sobre Bolsonaro se consolida tal como começa a aparecer nas pesquisas, ainda poderiam buscar um candidato com mais chances de derrotar Lula do que o próprio Bolsonaro. Outro militar?
São duas estratégias, a do capitão reformado e a do ex-sindicalista, que acabarão se enfrentando em um momento ou outro. Qualquer deslize pode ser fatal. O duelo de Lula e Bolsonaro nas circunstâncias graves e imprevisíveis em que vive o país dividido não admite erros de cálculo.
Lula é um político e estrategista indiscutível e não é fácil enganá-lo. E é suficientemente inteligente para descobrir se dentro de seu próprio partido e da esquerda as placas teutônicas começam a se mover para deixá-lo fora do confronto com o presidente, o que sempre foi seu anseio. Ele sabe que se não fossem os impedimentos da justiça que não lhe deixaram enfrentar Bolsonaro nas urnas em 2018, hoje seria o presidente.
Se há alguém que pensa, dentro ou fora do PT, em convencer Lula a não enfrentar Bolsonaro em uma campanha eleitoral que se apresenta dramática, está equivocado. Nem serve o argumento de que as eleições ainda estão muito distantes e que é preferível esperar para ver como as coisas evoluem e como acaba a CPI da Pandemia no Senado, uma vez que não é impossível que as acusações contra o presidente ainda possam levá-lo a um impeachment.
Tampouco é verdade que as eleições ainda estão muito distantes e que a Lula interessa esperar que Bolsonaro se desgaste e sangre para chegar às eleições com pouca força. Isso é revelado pelo fato de o presidente já estar em plena campanha, dia e noite. Dir-se-ia que só pensa nisso, a ponto de esquecer que tem a responsabilidade de governar o país e ainda mais em um momento de crise tão grave como a pandemia, que poderia se agravar.
Bolsonaro já não governa. Está só em campanha, dia e noite. Dizem que só sonha com isso e que por isso se entrega às mãos dos militares e das polícias com quem quer contar para o que possa acontecer nas eleições. Existe, de fato, a possibilidade, cada vez maior, apontada até pelo prudente ex-presidente Michel Temer, de que se Bolsonaro perder as eleições, principalmente contra Lula, estaria pronto para provocar um golpe de Estado.
Lula sabe disso melhor do que ninguém e não pode aceitar perder um segundo em pequenos cálculos de partido. Sabe muito bem que só ele seria hoje capaz de derrotar o capitão reformado. Necessita que lhe deixem seguir seu instinto político, que não lhe imponham pequenos cálculos de interesses partidários e que o quanto antes, respeitando os protocolos impostos pela pandemia, possa entrar na batalha. No fundo, está em andamento uma guerra política que poderia acabar sendo sangrenta.
O slogan eleitoral de que “qualquer um é melhor que Bolsonaro” para governar o país é verdadeiro, mas sem esquecer que segundo todos os analistas políticos só Lula seria capaz de arrancar a faixa presidencial do capitão, que faz ver mais claramente cada dia às Forças Armadas que o Exército é ele. O recente episódio em que se impôs aos militares para que não condenassem o general Pazuello por indisciplina revela que está disposto a tudo, menos a renunciar ao poder que deseja absoluto, sem ter que contar com as demais instituições de Estado. Não por acaso, desde que era um obscuro deputado no Congresso, foi um ferrenho defensor das ditaduras e admirador dos torturadores.
Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como ‘Madalena’, ‘Jesus esse grande desconhecido’, ‘José Saramago: o amor possível’, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.
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