Repressão de ato no Recife desnuda simbiose entre Bolsonaro e as polícias
Ficou evidente a falta de isonomia de tratamento a apoiadores e opositores ao atual Governo, aumentando a sensação de um comprometimento institucional e de partidarização dos policiais
Dois casos envolvendo policiais militares chamaram a atenção na última semana por expor o projeto de politização das corporações pelo Governo Bolsonaro. No primeiro deles, um dirigente partidário foi preso e conduzido à Polícia Federal por adesivar o carro com os dizeres “Bolsonaro genocida”, sob o argumento de que a manifestação se enquadrava na Lei de Segurança Nacional, legislação promulgada gestada durante o regime militar de 1964-1985. No outro, uma manifestação pacífica em Pernambuco foi interrompida pela PM local com balas de borracha que atingiram duas pessoas que agora correm o risco de perder a visão. Mais uma vez, ficou evidente a falta de isonomia de tratamento aos apoiadores e opositores ao atual Governo, aumentando a sensação de um comprometimento institucional e de partidarização dos policiais a favor do projeto político de Jair Bolsonaro.
Nas duas situações, houve reação imediata das autoridades para frear o autoritarismo dos policiais militares. Em Goiás, o homem foi liberado pela Polícia Federal após prestar depoimento, sem ser indiciado, e o PM foi afastado de suas funções. E em Pernambuco, em que pese o estrago causado aos cidadãos que nem sequer participavam da manifestação, o governador Paulo Câmara (PSB) agiu rápido e demitiu o comandante da Polícia Militar, mas ainda é necessário apurar quem mandou atirar contra cidadãos indefesos que participavam de um simples protesto pacífico nas ruas. Apesar da agilidade na tomada de decisões, ambos os casos desnudam a simbiose entre o presidente e seus seguidores nas corporações de todos os Estados.
Essa proximidade não é nova. Desde o início de 2019, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública lança alertas sobre a convergência ideológica entre as visões de mundo dos policiais militares e o projeto político ideológico do presidente. No Carnaval daquele ano, um capitão da Polícia Militar de Minas Gerais censurou manifestações contra Bolsonaro e a favor da soltura do ex-presidente Lula, à época preso em Curitiba, e ameaçou proibir a continuidade do desfile do bloco Tchanzinho Zona Norte, na região da Pampulha, em Belo Horizonte.
Em agosto do ano passado, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública realizou um levantamento em parceria com a empresa Decode para tentar entender o tamanho do alinhamento dos policiais ao discurso bolsonarista. A pesquisa analisou postagens no Facebook de membros da PM, da Polícia Civil e da Polícia Federal e constatou adesão significativa ao discurso antidemocrático e radicalizado do presidente. Nada menos que 12% dos policiais militares, 7% dos policiais civis e 2% dos policiais federais publicaram conteúdos defendendo o fechamento do Congresso e/ou prisão de ministros do STF. Tais percentuais se assemelham muito aos números verificados pelo instituto de pesquisa de opinião Atlas, que em abril de 2021 aplicou um survey junto à classe policial e observou que 21% dos policiais brasileiros (27% dos policiais militares) destacaram ser favoráveis à instalação de uma ditadura militar no Brasil.
Embora tenham partido de metodologias diferentes, os dois levantamentos estimaram um exército de até 140.000 policiais atraídos pelo discurso bolsonarista mais radical, favoráveis a medidas antidemocráticas e ao fechamento das instituições. Ainda que isso não nos permita rotular todos os policiais apoiadores de Bolsonaro como golpistas ou antidemocráticos, fica claro que a parcela radicalizada e que reproduz discursos antidemocráticos é preocupante. Sobretudo quando vemos o presidente se fortalecer no amálgama de condições políticas, ideológicas, jurídicas e institucionais que dão forma ao modelo de ordem pública violento. Modelo que é naturalizado pela maioria dos policiais brasileiros e que os estimula a não aceitarem questionamentos ao seu projeto político e assim reprimirem manifestações e movimentos sociais de oposição, transformados em sinônimo de antipatriotismo e desordem.
Apoie a produção de notícias como esta. Assine o EL PAÍS por 30 dias por 1 US$
Clique aquiA emergência do populismo de extrema direita e autoritário representado pelo presidente Jair Bolsonaro precisa ser visto também como efeito e não apenas como causa do momento de desconsolidação democrática e de iliberalismo vivido pelo Brasil. Esse momento tem enorme potencial de contágio e comprometimento das instituições policiais, mas sua força tem origens históricas, uma vez que as políticas públicas pós-Constituição de 1988, marco da redemocratização do país, não foram capazes de levar adiante um projeto de reformas democratizantes das polícias e da área da Segurança Pública em geral.
Enquanto isso, a cidadania no Brasil continua sendo regulada e mediada de acordo a estratificação social e racial da posição ocupada pelos indivíduos na sociedade. Cenas de chacinas e operações policiais que acabam com dezenas de mortos em favelas do Rio de Janeiro, cartão postal do país, já viraram rotina na cobertura da mídia nacional e internacional sem que nenhuma mudança ocorra ou que possam ser resumidas exclusivamente à militarização da segurança pública no Brasil. E ganham cada vez mais apoio de parcelas importantes da população, como demonstra levantamento realizado pela newsletter Fonte Segura, quando 69% das manifestações nas redes demonstravam apoio à operação que terminou com a morte de 28 pessoas na comunidade do Jacarezinho, no mês passado.
Diante desse cenário, é necessário que as polícias busquem prevenir a radicalização política de seus integrantes. Não nos deixemos enganar. A ausência de mecanismos internos e externos de contenção e controle pode culminar num exército de pessoas armadas e treinadas, respaldadas pela legislação contra qualquer resultado eleitoral adverso a Bolsonaro nas eleições de 2022. Os casos de Goiás, Pernambuco e Minas Gerais não são isolados e tampouco podem ser menosprezados num momento de tensão institucional. O bolsonarismo não é um pensamento único, mas é hoje a forma hegemônica em que os policiais compreendem o ser e fazer polícia no Brasil contemporâneo.
Renato Sérgio de Lima é diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
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