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Gilmar de Carvalho, guardião da cultura brasileira

Devoto das tradições em movimento e destaque da pesquisa sobre a cultura popular brasileira, escritor cearense construiu uma vasta obra que o eleva à altura de um Mário de Andrade ou Câmara Cascudo. Autor, que morreu por complicações da covid-19, será tema de seminário da USP nesta terça

Gilmar de Carvalho no campo de pesquisa, entrevistando um rabequeiro.
Gilmar de Carvalho no campo de pesquisa, entrevistando um rabequeiro.Francisco Sousa (Arquivo pessoal)
Beatriz Jucá

Um pesquisador nada óbvio, apaixonado por um Padre Cícero pop e encantado pelas estátuas do santo que dividiam espaço com as imagens de Madonna, a cantora, nas feiras de Juazeiro do Norte, no Ceará. Gilmar de Carvalho era devoto das tradições em movimento, fiel incentivador dos saberes da terra. Professor universitário, escritor e curador, o cearense costumava disparar palavras tão ácidas quanto diretas. “Mais jovem, eu era da categoria dos insuportáveis”, disse certa vez em uma entrevista. Atuando ora na vanguarda criativa literária ora na pesquisa das tradições culturais, Gilmar passeou pelo jornalismo, pela publicidade, pelo romance, pelo teatro e pelas teses acadêmicas. Costumava sentir-se um tanto “inadequado” pela falta de paciência em abraçar uma bajulação que pudesse dar-lhe mais projeção nacional.

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Sonhou com o sucesso e era vaidoso, mas preferiu voltar seus passos ao desbravamento das culturas populares brasileiras, quase sempre à bordo de seu carro popular e às custas de seus próprios recursos. Estudava as tradições com o olhar no futuro e recusava a pecha do folclore para falar ―e especialmente escrever― sobre o Nordeste e o Ceará. Mergulhou na literatura de cordel, retratou e reeditou o poeta Patativa do Assaré. Desbravou histórias de gerações que faziam arte do barro e trouxe à tona a contemporaneidade de uma centena de rabequeiros que, escondidos pelos sertões, perpetuavam suas toadas. Levava tudo por onde fosse: da academia às salas de aula e museus.

Gilmar publicou mais de 50 livros, a maioria deles acadêmicos. E, não fosse a covid-19 levar-lhe há um mês (ele faleceu no dia 17 de abril), lançaria neste ano o livro Poéticas da Voz – Aboios, Benditos, Cantoria, Cordel, Emboladas, Loas, Saraus, Torém, Trovas para retratar o cordel cearense desde o século 19. O livro está pronto e ainda será publicado. “É uma verdadeira enciclopédia sobre o assunto que, somada ao conjunto de sua obra, eleva Gilmar de Carvalho à altura de um Mário de Andrade, de um Câmara Cascudo”, define a pesquisadora Anna Maria Kieffer. A vasta obra do pesquisador cearense é tema do seminário Gilmar de Carvalho: Devoção e Pesquisa, realizado pelo Instituto de Estudos Brasileiros da USP, às 14h desta terça (18) com transmissão online.

O seminário se debruça na obra do professor aposentado da UFC (Universidade Federal do Ceará) que virou um pouco memória da cultura brasileira. Gostava de ganhar a estrada e revisitar várias vezes poetas e artistas. Fez acervo tradicional e até em sua conta do Instagram. Acreditava que os mistérios das manifestações culturais precisavam ser decifrados com tempo, paciência e silêncios. “Desconfiem de quem saca tudo num olhar apressado”, dizia.

Gilmar de Carvalho nasceu em 1949 em Sobral, a mais de 200 quilômetros de Fortaleza, mas com menos de dois anos foi morar na capital cearense, onde cresceu. Formou-se em Direito e Comunicação Social. Durante a faculdade, até pensou em mudar-se para o eixo Rio-São Paulo, mas, já maduro e com os dois pés fincados na Universidade Federal do Ceará (onde foi professor), parecia grato por não ter debandado de vez rumo ao Sudeste. Morou em São Paulo por alguns anos para cursar o mestrado em Comunicação na Universidade Metodista e depois o doutorado em Comunicação e Semiótica na PUC. Sempre optou por voltar ao Ceará. “Acredito que para onde quer que eu fosse, eu seria uma pessoa inadequada, incômoda, desagradável, como dizem que eu sou. Então não acredito que eu tivesse feito sucesso”, justificou certa vez em uma entrevista, após ser questionado se uma vida no Sudeste teria lhe dado maior reconhecimento. “Valor eu sei que tenho, mas falta molejo para uma negociação que nem sempre eu topo fazer, da bajulação, da subserviência.”

Em 2019, o pesquisador foi indicado para receber o título de Doutor Honoris Causa pela UFC, mas recusou devido à nomeação de Cândido Albuquerque como reitor da instituição por Jair Bolsonaro. Gilmar de Carvalho considerava Albuquerque um “interventor”, já que sua ascensão ao posto aconteceu mesmo tendo sido o menos votado pela comunidade acadêmica para a função.

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Gilmar de Carvalho construiu sua trajetória com o pé na estrada e um olhar à frente do tempo. Viajou por muitas cidades do interior do Ceará em busca de tradições, poetas, xilogravuristas, artesãos, artistas. “É preciso viver para saber, para sentir. Desaconselho o olhar de turista sobre qualquer manifestação”, defendia. Com algum conforto na condição de professor e pesquisador da UFC, levava os alunos muitas vezes ao mundo que desvelava em suas pesquisas e livros. Gilmar estava interessado na tradição que se move, se molda a novas situações, tangencia.

Rejeitava o rótulo de engessamento das culturas tradicionais e abria-se para compreender os diálogos da cadeia de produção capazes de levar, por exemplo, um cristo de neon ao centro de um cruzeiro de penitentes. Ou a fazer Madonna e Padre Cícero dividirem as feiras do Horto no Juazeiro. Ou levar o humor das tradições mais arraigadas do Estado para a indústria do turismo, para a TV mainstream e, agora, para o YouTube. “É um olhar que não só recolhe a tradição e a preserva, mas é aberta para o futuro. Não é um olhar que fica para trás”, afirma Kieffer. Ao lado do companheiro de vida, o fotógrafo Francisco Sousa, Gilmar mapeava, documentava e destrinchava uma rica produção popular, naturalmente atrelada ao contemporâneo. “Estas viagens me deram noção de que o cordel se espalhou e é feito em todo o Ceará, em boa parte, por conta das lan-houses e das gráficas rápidas”, explicava.

Sua obra evoluiu de discursos acadêmicos para a construção de um pensamento próprio. “Não gostaria de deixar o Gilmar preso ao Ceará porque ele tem uma importância primordial à cultura brasileira. Ele é um grande pesquisador da cultura brasileira, que é cearense”, pondera Kieffer. Gilmar gostava do estrangeiro, mas não das vitrines de grandes feiras literárias ditando o que era bom. Apaixonado pela literatura de cordel, não aventurava-se a escrever poesia. “Não sei fazer e, para fazer porcaria, tem muita gente fazendo por mim.” Publicou um único romance, Parabélum, no qual faz uma releitura da arte popular nordestina e do mito de Virgulino Lampião com um viés relacionado à indústria cultural e linguagem inovadora. “Pouca gente conhece, mas é um dos romances mais importantes da pós-modernidade”, diz Kieffer, que ressalta o vanguardismo de Gilmar com os textos de teatro nos anos 1970 e a atuação também como curador de arte. Era amigo de artistas como Sérvulo Esmeraldo e Antônio Bandeira. O professor, que se tornaria a primeira referência como intelectual e gay para uma geração de alunos da UFC, foi colaborador do icônico jornal Lampião da Esquina, no anos 70.

Ele gostava do escracho, da esculhambação. Não à toa um de seus apelidos era “presidente da academia brasileira da maledicência”. Dizia que reclamava tanto das coisas que poderia parecer amargo. Não era. Estava sempre imerso em algum novo projeto e era um grande incentivador de seus alunos, aos quais ensinava a atravessar a superfície e perceber a profundidade das culturas populares. Como definiu o jornalista Xico Sá, Gilmar de Carvalho tinha “o olhar nada óbvio de um apanhador de cacos e imagens para emendar uma sabedoria inteira”. Dedicou a vida a mergulhar na cultura brasileira passeando pelo erudito e pelo popular, com suas camisas sociais sempre muito bem engomadas e um certo prazer em passar despercebido. Encantado pela diversidade que dá cores ao mundo cultural, tinha certo medo de que isso acabasse, como contou ao amigo e professor Wellington Júnior durante uma visita à Bienal do Livro do Ceará. “A gente não pode arredar pé”, lhe disse. Não arredemos.

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