Mário de Andrade, muito além do debate sobre a homossexualidade
Flip teve início nesta quarta com um debate dedicado ao intelectual brasileiro Segundo a ensaísta Eliane Moraes, ele “não pode ser reduzido à sua sexualidade"
“Não estou interessado em ser conhecido em 1985”, disse certa vez Mário de Andrade, conforme recordou seu biógrafo, Eduardo Jardim, durante a mesa de abertura da 13ª Festa Literária de Paraty. Ao lado da crítica literária argentina Beatriz Sarlo e da ensaísta Eliane Robert Moraes no encontro titulado As margens de Mario, Jardim perfilou o escritor, homenageado desta Flip, como um dos grandes intelectuais brasileiros – também músico, pesquisador, agitador cultural –, que expressava publicamente a ansiedade de que suas ações e criações impactassem em seu próprio tempo.
Mario viveu sua idade adulta e mais ativa entre os anos 1917 e 1937, período em que liderou o modernismo brasileiro, cujo auge foi a Semana de 22, e realizou diversos feitos de toda ordem artística e cultural. No entanto, morreu em 1945 sem ver concretizada a maioria de seus projetos de vida, que tinham a ver com a valorização da cultura popular brasileira e a criação de uma identidade nacional própria. Somente nos dias atuais – muito depois do que ele mesmo temia – é que Mário de Andrade passa por um resgate.
Segundo Eliane Robert Moraes, que é professora da USP e examinou a obra de Mário a partir do erotismo, esse reconhecimento tardio perpassa a homossexualidade do autor – centro de uma polêmica de décadas envolvendo desde cartas pessoais censuradas até uma desvalorização do traço erótico presente transversalmente em sua literatura. “Chegou o momento de poder liberar em Mário de Andrade o que é de ordem pessoal para reconhecer o que é de ordem estética. Eros foi muitas vezes silenciado [em sua produção]. Cabe a nós ouvi-lo”, disse Eliane, que também é escritora. "Sim, nosso escritor era homossexual, era gay. Há resquícios disso em sua obra, ainda que não possamos falar de uma obra homoerótica. Nosso desafio é não reduzi-lo à sua sexualidade”, acrescentou, num esforço de superar a banalidade da polêmica.
Sim, nosso escritor era homossexual. Nosso desafio é não reduzi-lo à sua sexualidade Eliane Robert Moraes, professora da USP
Filósofo que lecionou por anos na PUC-Rio, Eduardo Jardim examinou, à luz de sua trajetória pessoal, a diversidade característica do escritor, que ele atribui a uma “permanente dualidade". “É uma espécie de bivitalidade, que marca todos os escritos e iniciativas de Mario de Andrade. Uma tensão da qual ele nunca escapou. Ao contrário, fez que ele continuasse produzindo”, disse o especialista, se referindo a embates de Mário entre suas facetas nacional e universal, intelectual e popular, exigente e sensual.
Já Beatriz Sarlo discorreu sobre as distâncias culturais entre a Argentina e o Brasil nos anos 1920, comparando Mário de Andrade em São Paulo a escritores que foram seus contemporâneos em Buenos Aires, como Jorge Luis Borges. “As diferenças entre eles começam com as pesquisas de Mário em música popular, que nunca teriam ocorrido a um escritor portenho da década de 20. Passam pelas viagens, como as que ele fez à Amazônia, e chegam ao caráter carnavalesco de sua obra, que continua uma profunda celebração da festa, do ritual”, declarou Sarlo. A ensaísta, que participa de outra mesa no sábado pela manhã, elogiou a multiculturalidade brasileira, que ela relaciona com uma personalidade mais aberta e cordial do que a argentina.
Deve ter se espantado quando, no meio da plateia, o ator Pascoal da Conceição surgiu declamando versos de Mário de Andrade citados inicialmente por Eduardo Jardim. Vestido a caráter, como costuma fazer em eventos relacionados ao intelectual, ele subiu ao palco para finalizar sua intervenção, bastante emotiva e tão pouco convencional de acordo com os moldes do evento. Ao contrário do que pensaram os presentes por alguns instantes, nada tinha sido programado. “Foi uma surpresa, mas até as surpresas podem fazer parte da Flip de vez em quando”, finalizou o curador da festa, Paulo Werneck.
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