A revolução de Mario de Andrade
O agitador que mudou o conceito de cultura no país é louvado 70 anos após sua morte
Um país é especialmente contraditório quando dá as costas para aqueles que mais o defendem. Mário de Andrade fez muito pelo Brasil, mas foram necessárias sete décadas de ausência sua para que começássemos a fazer jus à sua suculenta obra artística e ao seu valioso legado de gestor cultural, ainda tão pouco analisado. Esse lapso por fim se vê ameaçado em 2015, ano em que se celebram os 70 anos de sua morte, com uma série de homenagens e conteúdos que pretendem jogar luz sobre sua marca modernista e também sobre sua trajetória pessoal.
A agenda é farta e já foi posta em marcha. Nesse novo amanhecer marioandradista, surgem ciclos de discussões e debates, como o que está sendo promovido pelo Sesc-SP, a homenagem que será prestada em julho pela Festa Literária de Paraty (Flip) e a reabertura da Casa Mário de Andrade, em São Paulo, no próximo dia 23. Tudo para encaminhar a colocação de sua obra em domínio público, a partir de 1 de janeiro de 2016, quando de Pauliceia desvairada (1922) a Macunaíma (1928), passando por seu debut literário, Há uma gota de sangue em cada poema (1917), todos nos tornaremos herdeiros de suas valiosas heranças.
Mário de Andrade tinha uns ombros muito largos, uns óculos muito espessos, um riso muito aberto, uma fala muito caipira, mas nada descansada, tudo nele respirava irradiação, dinamismo, exuberância, alegria de viver. Estava trabalhado fisicamente para agitador Alceu Amoroso Lima, em 'Companheiros de viagem'
Nessa toada, como é de se esperar, acontece uma série de lançamentos literários. Entre eles, já está Eu sou trezentos (Edições de Janeiro, 2015), a primeira biografia de Mário de Andrade, cujo autor, o filósofo carioca Eduardo Jardim, prefere evitar essa classificação. “Acho que ‘biografia’ guarda um sentido mais jornalístico. No livro, o que trato de fazer é tecer vínculos entre a vida e a obra dele, sob um aspecto ensaístico. Mas sigo uma ordem cronológica, do nascimento à morte”, conta. Magnífico, já que entre a vida de Mário de Andrade e sua morte, aos 52 anos, por causa de um infarte, há muito mais coisas do que se pode imaginar.
Mário nasceu e viveu em São Paulo, na Barra Funda, e amou sua cidade profundamente. Nela, entre as paredes do tradicional Theatro Municipal, apresentou ideias que fizeram rachar as estruturas mais sólidas do conservadorismo paulistano e brasileiro, quando lá instalou a Semana de 22, com uma série de apresentações artísticas e debates que plantaram o modernismo na mente do país. Não à toa, ele é considerado o “papa do modernismo”: além de ser um dos cabeças do evento, leu poesias suas modernistas, contra tomates e ovos que foram atirados pelos atônitos em sua cabeça, e defendeu que o país tinha que ingressar no “concerto das nações cultas”, sob uma perspectiva universalista que era gritante naquele então.
Mário vive: casa do escritor reabre no dia 23
Era um inquieto, artista vasto, íntimo da música como da literatura, e, sobretudo, um embaixador natural de Cultura. Sua recém-nascida biografia começa com uma citação de Alceu Amoroso Lima, tirada do livro Companheiros de viagem: “Mário de Andrade tinha ‘o tipo físico de um índio espadaúdo. Uma boca enorme, cheia de dentes, que os caricaturistas aproveitavam com razão como foco central de sua fisionomia. Umas mãos enormes como patas de urso. Uns ombros muito largos, uns óculos muito espessos, um riso muito aberto, uma fala muito caipira, mas nada descansada, tudo nele respirava irradiação, dinamismo, exuberância, alegria de viver. Estava trabalhado fisicamente para agitador’”. E agitador ele era de fato, preocupado que foi com a arte coletiva, a identidade cultural brasileira e a cultura popular do país.
Nos anos 30, um período conturbado politicamente no país, sua grande preocupação foi definir a vocação social da arte. “Isso se concretiza quando ele é convidado para ser diretor do Departamento de Cultura de São Paulo. Lá, ele fez um trabalho ímpar, muito diferente de tudo o que havia na época, com o intuito de por em contato vários segmentos da sociedade. Era para ele um projeto de vida e do próprio modernismo”, conta Eduardo Jardim.
Sabe-se, por exemplo, que quando chefiava o Departamento de Cultura, Mário de Andrade criou um projeto de centros culturais para crianças e jovens que promovessem a cultura em ambientes de ampla convivência social. Eram “sesquinhos”, na definição do diretor do Sesc-SP, Danilo Miranda. “Ele chegou a desenhar um espaço, uma planta de um centro infantil de iniciação à vida, cultura, atividade física, alimentação – tudo ali, como hoje no Sesc”, revela. Para Danilo, Mário teve uma “presença luminar” como pessoa e, como modernista, revolucionou a cultura no país. Fato cultural mais grandioso no Brasil, para ele, não tem: “A Semana de 22 é a independência do Brasil do ponto de vista da arte, da cultura, do pensamento”.
Estamos nos distanciando cada vez mais de um certo Brasil que, por falta de termo melhor, chamemos de ‘popular’. Faz falta o pensamento de Mário de Andrade para entender o país e – digo mais – colocá-lo num lugar melhor Antonio Nóbrega
Com essa postura inquieta e agregadora, Mário de Andrade mantém até hoje o talento para inspirar discípulos, entre os quais se destaca Antonio Nóbrega, um dos maiores criadores e pensadores brasileiros atuais a se preocupar com a cultura popular e a identidade nacional do país. Para ele, “figuras como Mário não são simplesmente para serem lidas, estudadas, admiradas e lembradas, mas para serem colocadas em prática”. “Estamos nos distanciando cada vez mais de um certo Brasil que, por falta de termo melhor, chamemos de ‘popular’. É ainda muito mal dimensionado e tem se tornado cada vez mais desconhecido. Faz falta o pensamento de Mário de Andrade para entender o país e – digo mais – colocá-lo num lugar melhor. Não só de sua obra artística, mas seu lado de agitador cultural, de homem das ideias”, prega.
O motor das contradições
Pouco do que se sabe de Mário Andrade confirma que ele fosse homossexual, mas, como se isso importasse, várias pessoas de seu círculo de amizades se preocuparam em alimentar essa ideia ao censurar certas cartas que trocaram com ele
O personagem caricaturesco descrito por Alceu Amoroso Lima convivia com uma sentença permanente de contradição, inerente ao seu caráter, que no entanto permitiu que ele seguisse adiante com seus projetos artísticos-políticos e criativos-intelectuais, como defende Eduardo Jardim em seu livro. “Ele sempre foi um homem dividido entre forças em confronto. Dizia que era dotado de uma ‘bivitalidade’, que se traduzia em forças que não conviviam bem dentro dele. Tinha um lado exigente e outro sensual”, diz o especialista em modernismo brasileiro – que publicou também Mário de Andrade: A morte do poeta (Record) e Limites do moderno: o pensamento estético de Mário de Andrade (Relume Dumará). Graças a isso, acredita Jardim, ele seguiu ativo.
Mas, na intimidade, as coisas não eram fáceis. Desse seu chamado constante à sensualidade, nasce um tema que pautou o tabu, em sua vida pessoal, ao redor da homossexualidade. Pouco do que se sabe de Mário Andrade confirma que ele fosse homossexual, mas, como se isso importasse, várias pessoas de seu círculo de amizades se preocuparam em alimentar essa ideia ao censurar certas cartas que trocaram com ele. O que Jardim faz a respeito, na qualidade de biógrafo, é pescar o assunto dentro de sua obra: “Existe um poema de 1923 que faz menção à figura de um travesti no Carnaval do Rio de Janeiro. E no livro Contos Novos, tem um relato que se chama Frederico Paciência, sobre um romance impossível entre dois rapazes. Nesse texto, que demonstra a censura da época, ele aborda a hipocrisia da sociedade”.
Outro assunto interdito em seu passado é uma possível inclinação antissemita, que se deixa entrever na correspondência dele com os pintores Di Cavalcanti e Lasar Segall, companheiros do modernismo. Sobre esse aspecto, seu biógrafo se mostra um pouco mais cético: “Esse é um capítulo infeliz da história dele. Talvez tenha sido uma coisa da época, mas chama a atenção que ele não tenha sido mais crítico. Achei que era preciso falar disso”.
Mário em Paraty
A Flip promete falar de tudo em Mário, sem tabus. Segundo o curador do evento, Paulo Werneck, a ideia da homenagem que será prestada não é oferecer a Mário de Andrade um “medalhão” ou encará-lo como uma “múmia literária”, mas “discutir o Mário que está presente hoje”. “Há aspectos mais analisados e outros menos compreendidos de sua obra, mas que hoje começam a ser revisitados. Seu trabalho repercute muito no presente, e acho que o próprio Mário viveria mais à vontade hoje que na sua época”, opina.
Seu trabalho repercute muito no presente e acho que o próprio Mário viveria mais à vontade hoje que na sua época
Paulo Werneck, curador da Flip
Para entender Mário de Andrade, há atualmente disponíveis muitos livros que compilam as cartas trocadas pelo escritor com os amigos modernistas e cúmplices literários como Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Foram editados a partir dos anos 90 e não só jogam luz sobre sua obra, como são parte central dela.
Mas em Paraty haverá um palco de novidades. Seguidores de sua obra aguardam uma versão em HQ de Macunaíma e um volume de contos e crônicas, que serão publicados pela Nova Fronteira – editora que detém (até o momento) os direitos de sua obra. Outra novidade é mais uma biografia: As vidas de Mário de Andrade, escrita pelo jornalista Jason Tércio com base em cartas inéditas. Sobre seu legado de gestor, o anúncio de um título apelidado de “Literatura burocrática de Mário de Andrade” é especialmente animador, reunindo relatórios e projetos de lei criados por ele, que são referência para as políticas culturais e de patrimônio histórico Brasil afora.
Werneck adianta também que os entusiastas da Flip podem contar com algumas mesas que falarão diretamente sobre ele e outras que projetarão seu legado a partir de diálogos com escritores contemporâneos. “Uma das mesas abordará a literatura de viagem, que aparece na obra dele, por exemplo, com Turista aprendiz, em que ele relata sua expedição pela Amazônia e pelo nordeste brasileiro”, adianta o curador. Estímulo, pois, não faltará aos que encarem a descoberta desse tesouro revolucionário que é Mário de Andrade.
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