Denice Santiago criou a Ronda Maria da Penha em Salvador e a sensação de que outra PM é possível
Membro da primeira turma de mulheres da PM, major criou projetos pioneiros de prevenção e combate à violência contra a mulher na capital baiana
Denice Santiago (Salvador, 49 anos) se define como um mosaico: é mulher negra, policial militar, mãe, moradora da periferia, mestre em Psicologia, doutoranda e feminista. Também é a criadora da tropa das “salvadoras de Maria”, como ficou conhecida na Bahia a Ronda Maria da Penha, uma equipe dentro da Polícia Militar (PM) do Estado, criada em 2015 para proteger e acompanhar mulheres vítimas de violência doméstica, sob medida protetiva e em situação de vulnerabilidade em 19 cidades. Mais de 5.700 mulheres já foram atendidas e aproximadamente 200 prisões foram efetuadas, o que, em muitos casos, significa que feminicídios deixaram de ser cometidos. “Sempre atuei para que meu trabalho não fosse mais necessário”, diz a major por telefone ao EL PAÍS, desde Salvador. É uma iniciativa que merece destaque no Estado que é o terceiro em número de feminicídios no Brasil, e o segundo em violência policial.
Denice criou a Ronda Maria da Penha depois que um amigo lhe falou sobre a Patrulha Maria da Penha, no Rio Grande do Sul, e ela viajou para conhecer o projeto, que levou à Bahia. Depois, a própria major treinou policiais de outros Estados, como Alagoas, para o enfrentamento da violência contra a mulher. Com um trabalho focado em prevenção, visitando as casas das pessoas e dando palestras em comunidades, Denice desenvolveu um vínculo pessoal com as mulheres atendidas pela Ronda, algo que ela considera “um compromisso para a vida”. Não à toa, o projeto nasceu de uma convicção que ela repete com fervor: “A Polícia tem, como missão constitucional, preservar a ordem pública, e isso inclui cuidar e educar. Na Ronda Maria da Penha, eu focava minha atuação no cuidado com as pessoas”, relata. “Fiquei cinco anos construindo essa polícia que entra na sua casa, senta no seu sofá, conversa com você e, quando sai, você se sente segura e quer que ela volte.” Apesar de já não estar no comando da Ronda —hoje faz parte do Instituto de Pesquisa da PM baiana—, muitas mulheres de Salvador ainda têm nas agendas o contato direto da major. É para ela que elas ligam para pedir conselhos e proteção quando se sentem ameaçadas.
Graças à Ronda, Denice coleciona prêmios, entre eles o selo de Práticas Inovadoras de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, entregue pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Diploma Bertha Luz, do Senado Federal. O maior reconhecimento para ela é, no entanto, a conscientização social que conquistou e o “receio” de alguns homens que sabem que seus crimes machistas não ficarão impunes. “O que eu mais gosto é quando ouço em alguns bairros os caras dizendo pra mim: ‘Major, eu não tenho medo do Bope, não tenho medo da Rota, só tenho medo do carro da Ronda Maria da Penha. Deus me livre algum vizinho me ver dentro desse carro e achar que eu bato em minha mulher!’”
Denice entrou na PM por acaso, em 1990, quando a corporação abriu o primeiro concurso público para mulheres, depois de 156 anos admitindo apenas homens. A terceira de cinco filhos de uma família modesta —”Morávamos num lugar que sempre alagava quando chovia”— foi incentivada pelo pai a se inscrever na prova. “Poderia até dizer que foi o que eu sempre quis desde criança, mas não foi assim. Quando terminei o que na época era o segundo grau, abriram esse concurso e meu pai disse: ‘Vai, é um emprego’, preocupado com a estabilidade.” Mas, assim que entrou na PM, ela conta que se apaixonou pela corporação.
“Tenho três orgulhos na minha vida, sem lista de prioridade: ser dessa primeira turma de mulheres da PM, uma turma que completou 30 anos em 2020, tenho orgulho de ser mãe de João Paulo [de 21 anos] e de ter sido uma mulher negra candidata à prefeitura de Salvador”, afirma. Denice concorreu pelo PT nas eleições municipais de 2020 e recebeu 18,86% dos votos, perdendo para Bruno Reis (DEM), que somou 64% dos votos.
Em três décadas como policial, Denice já exerceu diversas funções. Chegou a ser responsável pela segurança da Arena Fonte Nova na capital baiana, mas ela gosta mesmo é de dar um norte a pessoas vulneráveis. Ajudou a transformar meninos carentes em agentes educadores de trânsito, levou a Ronda para comunidades quilombolas e assentamentos de reforma agrária e criou a Ronda para Homens, projeto que leva policias para conversar com homens em comunidades com alto índice de violência contra a mulher, num papo exclusivamente masculino pelo fim da violência de gênero. Também criou o Espelho, um jogo de tabuleiro para que mulheres percebam violências que sofrem no dia a dia.
Em 2006, ela criou também o Centro de Referência Maria Felipa, núcleo de gênero dentro da PM baiana que tem a missão de valorizar e melhorar as condições de trabalho da mulher no batalhão, cuja principal conquista foi a aprovação de uma portaria que assegura direitos às policiais grávidas. “Racismo e patriarcado são dois alicerces da nossa formação social e na PM não seria diferente. Sempre temos nossa competência questionada, porque a PM está muito relacionada à ideia de força, ao poder”, diz. “E, infelizmente, o poder, histórica e culturalmente, foi reservado ao gênero masculino”, lamenta.
Denice ressalta, no entanto, que a Polícia “é muito feminina”, por concebê-la como um “espaço de proteção, cuidado, diálogo e acolhimento”. Foi justamente na Ronda Maria da Penha que ela encontrou força e motivação para enfrentar um câncer em 2015 e que lhe obrigou a retirar o estômago. “Adoro dizer que não tenho estômago para isso”, ri.
Formada em psicologia, com mestrado que investigou a discriminação racial na atividade da Polícia Militar da Bahia —Branco correndo é atleta; preto correndo é ladrão é o título de sua dissertação—, a major reconhece que, dentro da corporação, as mulheres negras também são preteridas. “É comum, por exemplo, que mulheres não negras trabalhem em gabinetes e escritórios e as negras estejam se arriscando nas ruas. E se todas temos que comprovar todo o tempo nossa capacidade técnica, nós negras temos que provar também nossa capacidade social”.
Denice lembra de um evento do Dia Internacional da Mulher, há alguns anos, em que ela seria homenageada: uma policial branca, que estava à paisana, perguntou a uma recepcionista do evento onde poderia trocar a roupa pelo uniforme e foi prontamente orientada. Quando Denice chegou, a mesma recepcionista mal a olhou, então ela se apresentou, ao que a moça respondeu: “A capitã Denice já foi se trocar”. “Então eu disse que ela não tinha entendido, que eu era a capitã, e ela me olhou assustada. Aí acrescentei: ‘Já sei, querida, a cara não combina com o currículo, não é?’ E ela passou o resto do evento tentando me agradar”, conta.
Racismo e violência policial
Como profissional e mãe de um jovem negro, Denice diz que pensa todos os dias nos casos de violência policial contra a população negra, o reflexo mais cruel do racismo estrutural no Brasil. “As corporações precisam descobrir onde está a chave que modifica essa técnica policial militar, porque na escola ninguém é ensinado a cometer abuso e violência. Cada corporação tem que rever esse processo para identificar em que momento nascem os deuses e deusas que acreditam que estão acima do bem e do mal e acham que podem decidir quem vive, quem morre, quem merece ou não merece ser bem tratado”, afirma.
A major lembra que a sociedade que quer pautar ações de segurança pública com base no lema “bandido bom é bandido morto” também é uma parte essencial dessa mudança. “É essa mentalidade que cria a figura do policial herói, que vai executar seu desejo perverso de matar quem eles denominam bandido. É toda essa construção social que coloca sobre o policial o peso e a responsabilidade de decidir se o que aquela pessoa fez vai ter um juízo final ali, se ele vai matar ou deixar viver.”
Sobre o debate a respeito da extinção da Polícia Militar ou fim da militarização das polícias, Denice diz entender a importância do debate social, mas argumenta que a medida não seria resolutiva se não fossem transformados também as condições de atuação dos profissionais de segurança e sua preparação técnica. “A gente quer comparar o Brasil com realidades que não condizem com a estrutura da nossa polícia nem com nossa realidade sociocultural, com a identidade do nosso povo, então, talvez desmilitarizar não seja o cerne da questão. Se a sociedade escolher esse caminho, ele tem que ser bem elaborado, senão só vamos trocar de nome, mas a efetividade da ação policial vai continuar”, pondera.
Enquanto se adapta às novas funções no Instituto de Pesquisa da PM baiana, Denice também toca seu projeto de doutorado no Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher na Universidade Federal da Bahia (UFBA) sobre policiais que sofrem violência doméstica, em uma pesquisa chamada Autoridades violadas. Sobre outros planos futuros, ela deixa a vida seguir seu curso, sem muita especulação sobre o que está por vir. “Desde o diagnóstico de câncer, me tornei uma mulher que não faz muitos planos e vive um dia de cada vez. Só sei que seguirei pautando as políticas nas quais acredito”, garante.
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