As guardiãs que protegem o Jardim Lapena, na periferia de São Paulo, contra a covid-19
Mais de 100 mulheres que vivem nesta comunidade vão de porta em porta para distribuir para os moradores máscaras, kits de higiene, alimentos e informações sobre prevenção da doença
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Elas são donas de casa, trabalhadoras autônomas, empreendedoras ou desempregadas. Avós, mães, esposas. E também guardiãs do Jardim Lapena, a comunidade em que vivem, na Zona Leste de São Paulo e a cerca de 30 quilômetros do centro da capital paulista. Tudo começou em março do ano passando, quando essas mulheres decidiram unir esforços para minimizar os efeitos da pandemia de coronavírus sobre seus mais de 15.000 vizinhos. Distribuem cotidianamente máscaras de proteção, álcool em gel, kits de limpeza, alimentos, material escolar, informações sobre a covid-19, além de todo o tipo de ajuda para uma população pobre que vive na periferia da cidade mais rica do Brasil. Quando a pandemia começou, eram 22 mulheres engajadas na assistência aos moradores. Hoje, são 112: a integrante mais nova tem 15 anos e a mais de velha, 80.
É tarde de sexta-feira, 12 de fevereiro, e oito dessas mulheres guardiãs, como se chamam, carregam em suas mãos as doações do dia. Caminham nas ruas de terra batida de uma área especialmente vulnerável do bairro, construído junto ao rio Tietê. Vão de porta em porta. São atendidas quase sempre, primeiro, pelas crianças que moram nessas casas e, em seguida, pelas suas mães. “Aqui é um kitzinho com máscara, álcool em gel, orientação para a volta às aulas e um livro, tá bom?”, anuncia Joyce dos Santos, de 25 anos, ao entregar dois pacotes —um por filho— para Andressa Cristina Santana, também de 25 anos. Não é a primeira vez que ela é beneficiada por pelas ações do movimento.
— O que essa ajuda representa para a sua família?
— Bastante coisa. A gente está sendo lembrado. E para lembrar deste lado aqui é difícil — responde Andressa.
Foi durante uma ação parecida que o grupo surgiu de forma espontânea, ainda no início da pandemia, recorda Vânia Silva, de 40 anos. Ela conta que, quando souberam da notícia de que o Brasil começara a registrar casos do novo coronavírus, mobilizaram algumas mulheres que já faziam algum tipo de trabalho social na região. O nome do grupo surgiu por acaso, em um dia em que entraram em uma área ocupada irregularmente para levar os kits aos moradores. “É um labirinto e não sabíamos como sair de lá. Ligamos para uma colega, que mandou uma amiga que morava ali encontrar com a gente. E a Monalisa sabia exatamente onde estávamos”, conta Vânia. “Quando terminamos, falamos sobre como seria bom ter uma mulher com conhecimento de cada parte do bairro, como seria mais fácil esse trabalho. Ao agradecer, disse ‘muito obrigada, você foi nossa guardiã hoje’. E desde então ela ficou guardiã daquele espaço.”
O grupo foi então organizado no Galpão ZL, um espaço de referência do bairro que concentra uma série de atividades, sobretudo as voltadas para o empreendedorismo, gerido pela Sociedade Amigos Jardim Lapena em conjunto com a Fundação Tide Setúbal. Em abril, elas fizeram um mapeamento do território e entregaram 2.000 cestas básicas e, logo em seguida, 2.000 vale-alimentação doados pela própria Fundação. O grupo foi crescendo até chegar às 112 mulheres de agora, sendo que 20 delas exercem a função de coordenar a ação de outras.
Inicialmente, cada uma ficava responsável por uma área da comunidade. Hoje, cada uma fica encarregada da rua em que mora e de fazer chegar as milhares de doações para os moradores. Em quase um ano de iniciativa, já foram entregues mais de 10.000 máscaras e frascos de álcool. Um coletivo de costureiras da comunidade, chamado de Kamaradim, chegou a arrecadar mais de 30.000 reais em financiamento coletivo para produzir mais de 7.000 máscaras para que as guardiãs distribuíssem no bairro. O grupo também passou a arrecadar doações de outras empresas e coletivos, como a Nitro Química (álcool em gel e máscaras), Natura (álcool e sabonete) e Gastronomia Periférica (alimentos, cestas básicas). Também arrecadaram camas e colchões com pessoas que não tinham relação com nenhuma empresa, que as guardiãs direcionaram aos moradores enfermos ou em situação mais vulnerável.
“Algumas ações vão aparecendo, com uma de nós dizendo no grupo de WhatsApp que alguém está precisando disso ou que precisamos fazer aquilo. Outras ações maiores a gente programa”, explica Marleide Cunha Rezende, de 51 anos. “Hoje mesmo recebi a informação sobre uma pessoa que teve AVC e, depois de um mês no hospital, está em casa e acamada... A moça perguntou se podemos conseguir uma caixa luvas. Vou ver o que podemos conseguir”, completa. Mas Kelly Cristiane de Souza, de 40 anos, lembra que o trabalho é voluntário e, por isso, precisa ser conciliado com as atividades do dia a dia: “A gente também tem família, filhos, trabalho, nossa vida, então colocamos no grupo a ação para ver se alguém tem disponibilidade.”
Entre as guardiãs também foram escolhidas para um ciclo de dois anos presidenta, vice-presidenta, uma tesoureira e duas secretárias. É essa direção que fica responsável por dividir as tarefas entre cada grupo de mulheres. A intenção é que o grupo siga adiante depois da pandemia ―que ainda parece longe do fim. Diante da ação insuficiente do poder público, querem levar a ação comunitária para outro patamar de engajamento.
Esse tipo de mobilização não é novo em bairros periféricos e favelas, mas ganhou força ao longo da pandemia em lugares como Paraisópolis, em São Paulo, e Complexo do Alemão e Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. A necessidade da população falou mais alto. “Esse movimento cresceu e está crescendo porque a própria população observa nosso trabalho e nossas ações. Sempre que vamos entregar uma doação, as pessoas beneficiadas também se interessam em ajudar”, explica Angela Barbosa dos Santos, de 38 anos.
Principais demandas dos moradores
Os desafios são muitos. O mais urgente é o de convencer uma população com poucos recursos materiais e financeiros sobre a importância de seguir protocolos mínimos de distanciamento social e de uso de máscara. “A principal necessidade dos moradores é de conhecimento com relação à pandemia. Nós guardiãs levamos informação, estamos habilitadas para isso”, explica Kelly, em referência ao treinamento que recebem regularmente —um deles dado pela ONG Médico Sem Fronteiras.
Ao circular pelo Jardim Lapena é possível ver que poucas pessoas usam máscara ou praticam algum distanciamento social nas ruas, bares e comércios do bairro —algo que, convém destacar, também pode ser facilmente verificado nas áreas nobres da cidade. “Você anda na rua e é muito difícil ver andarem de máscara do jeito correto”, explica Joyce. Marleide, que é cabeleireira, fala sobre a resistência dos clientes em usar o item de proteção. “Estou passando um sufoco danado. Semana passada eu quase discuti com uma cliente, porque ela disse que ninguém obrigava ela a usar máscara. Eu tenho uma caixa de máscara descartável para usarem, porque chegam sem nenhuma”, conta.
A Zona Leste é a região mais afetada pela pandemia de coronavírus na capital paulista, concentrando o maior número de óbitos em São Paulo. Mas os dados indicam que o Jardim Lapena não está entre os bairros mais afetados. De acordo com o Programa de Aprimoramento das Informações de Mortalidade (Pro-Aim), da Prefeitura de São Paulo, 193 pessoas morreram em decorrência da covid-19 entre março de 2020 até 11 de fevereiro deste ano no distrito administrativo de São Miguel, onde está localizado o bairro do Jardim Lapena. Até meados de janeiro a taxa era de cerca de 18 mortes por 100.000 habitantes. Para efeitos de comparação, o distrito de Sapopemba, que também está na Zona Leste da capital e onde foi registrado o maior número de óbitos, foram confirmadas 542 mortes por covid-19 até 11 de fevereiro. Em Sapopemba, a taxa de mortes é de 22 mortes por 100.000 habitantes. Já Água Rasa e Vila Prudente, também na Zona Leste, são as áreas com a maior taxa de óbitos da capital: cerca de 46 por 100.000 habitantes até meados de janeiro.
Não há como medir o impacto direto do trabalho feito pelas guardiãs nos números da covid-19 no bairro e na comparação com outros lugares. Até porque, como elas reconhecem, a maioria dos moradores continua não seguindo as orientações da comunidade científica contra a covid-19. “A minha vizinha da frente tem 17 filhos. Como esta mulher desempregada, sem marido, pagando aluguel, água e luz compra máscara para todo mundo?”, questiona Vânia, que ocupa o posto de assistente de programa e projeto no Galpão ZL. O trabalho, explica ela, consiste em minimizar algumas situações. “A gente não consegue resolver o que é necessário. A desigualdade está estampada aí, e nós como comunidade temos que buscar soluções para tentar minimizar o impacto da covid-19 no território”, explica. “A gente consegue orientar todo mundo? Não. Mas nosso trabalho é assim, de formiguinha”.
Pobreza, alimentação e volta às aulas
Mas as demandas dos moradores vão para além das informações corretas sobre pandemia, que serviu para agravar alguns problemas estruturais. Quando necessário, as guardiãs também tratam de encaminhar moradores para os serviços públicos que precisam em determinado momento. Quanto podem, elas mesmas dão a ajuda que um morador precisa. “Se vemos que uma criança está dormindo no chão e não tem cama, isso é colocado no grupo e nos movemos para arrumar aquela cama”, explica Angela. Outro problema que foi se agravando ao longo da pandemia, explica Marleide, é o da falta alimentação. Crianças ficaram sem escola e sem merenda, adultos ficaram desempregados e o preço de itens da cesta básica aumentou. “Quando começaram a dar o auxílio, muitos ainda estavam registrados. Nesse percurso perderam emprego e ficaram sem trabalho e sem auxílio”, explica.
Para Viviane dos Santos, de 42 anos, uma questão que a pandemia deixou mais que evidente é a falta de Internet em um território onde algumas casas ainda são feitas de madeira. Ela tem filho de 16 anos que está no segundo ano do Ensino Médio e sabe do que fala. “Foi muito falado e questionado no bairro. Muitas crianças não conseguiram fazer suas atividades escolares nem conseguiram ir na casa de colegas. Tivemos muita dificuldade de mantê-los ocupados”, explica.
A volta às aulas é o tema que mais tem mobilizado as guardiãs atualmente. Nem todas concordam com o retorno, sobretudo aquelas que tem filhos menores, já que a dificuldade em fazer com que sigam os protocolos de segurança é maior, explicam. Mas todas coincidem em dizer que, independentemente da opinião de cada uma, elas estão ali para orientar as famílias para que o retorno seja o mais seguro possível. “Há pais que não sabem ler e se perguntam se devem levar para a escola. É aí que entra a gente. São pensamentos diferentes, personalidades diferentes, casos diferentes, famílias diferentes... Mas a resposta tem que ser uma só”, explica Viviane. “Essa questão da escola sempre fica com um ponto de interrogação. Então a gente senta, conversa e aprimora aquilo que vamos falar”, acrescenta. Ou, como disse uma delas em um momento de descontração: “Nós aqui nos resolvemos. Somos guardiãs e somos amigas”.
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