Governo Bolsonaro decreta a morte de um pedaço da Amazônia
Ao autorizar Belo Monte a secar a Volta Grande do Xingu, o Ibama mudou de lado e assinou a permissão para um ecocídio na maior floresta tropical do mundo
A Amazônia é hoje a principal razão para o Brasil manter alguma relevância internacional. É da conservação da maior floresta tropical do planeta, o maior sumidouro terrestre de carbono do mundo, que dependem os principais acordos internacionais, como o maior de todos eles, o do Mercosul com a União Europeia. É também da sobrevivência da floresta que cada vez mais dependem a autorização e a aceitação dos produtos brasileiros nos mercados europeus e nos Estados Unidos de Joe Biden. Estratégica para controlar o superaquecimento global, a Amazônia está cada vez mais perto do ponto de não retorno, como têm repetidamente alertado cientistas com reconhecimento global, como Carlos Nobre. No momento em que a floresta se converter numa savana, o Brasil será apenas um país com desigualdade abissal, racismo criminoso, miséria em expansão e um presidente que virou piada no mundo. Terá também cometido um suicídio econômico, ao matar a floresta que regula o clima que permite a agricultura, afetando toda a cadeia de produção de alimentos e alguns dos principais produtos de exportação.
Nesse contexto, e num momento de progressiva recessão, o que o Governo Bolsonaro fez, pressionado por setores da política e do mercado interessados em manter o controle do sistema elétrico e faturar com ele? Autorizou a Norte Energia SA, empresa concessionária da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, a liberar um volume de água para a Volta Grande do Xingu que comprovadamente, tanto pelos estudos científicos quanto pela experiência prática, é insuficiente para manter a vida. O que está acontecendo agora, nesse momento, é o que o direito internacional chama de “ecocídio” e que consiste no extermínio de um ecossistema inteiro. O que mata a natureza, como a emergência climática e também as pandemias já provaram, mata também a possibilidade de sobrevivência da espécie humana.
A autorização para o ecocídio aconteceu em 8 de fevereiro e foi celebrada nas páginas de economia de alguns dos principais jornais do Brasil. Nenhum outro acontecimento é mais grave e nenhum é mais escandaloso, com possível exceção da escalada da covid-19 sem confinamento nem plano de vacinação responsável. Uma semana antes de autorizar Belo Monte a reduzir drasticamente a água para a Volta Grande do Xingu, o mesmo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) considerou a vazão proposta pela empresa para a Volta Grande do Xingu inaceitável por não haver estudos confiáveis capazes de comprovar a segurança socioambiental de uma das regiões mais biodiversas da Amazônia.
Em linguagem dura, a área técnica do Ibama determinou que a Norte Energia S.A. refizesse os estudos e voltasse a apresentá-los: “Faltou dados de base para testes e comprovação dos resultados, faltou esclarecimento como fontes e origem de dados, faltou clareza na redação do texto, citações sem resultado e sem discussão. (...) A presente análise também discorda da suposta validação do modelo. (...) Essa análise NÃO considerou satisfatória as respostas dadas aos questionamentos 1,2 e 4. (...) Por fim, verificou-se conclusões baseada em especulações sobre garantia de manutenção de ambientes aquáticos sob vazões do hidrograma de testes sem dados dos estudos bióticos”.
Percebam que não são minhas as palavras, mas do próprio Ibama. Desde 2020, a Norte Energia luta na Justiça contra as decisões do órgão ambiental pela quantidade de água na Volta Grande. O parecer técnico citado tem a data de 1º de fevereiro de 2021 (leia na íntegra). Apenas uma semana mais tarde, em 8 de fevereiro, o diretor-presidente do Ibama, o advogado Eduardo Fortunato Bim, ignorou a avaliação técnica e autorizou a Norte Energia a liberar quase SETE VEZES MENOS a quantidade média de água que o Ibama havia determinado anteriormente como o mínimo essencial ―e quase NOVE VEZES MENOS a quantidade média de água da vazão natural do rio em fevereiro, época da cheia. A Norte Energia agora está oficialmente autorizada a liberar insuficientes 1.600 metros cúbicos de água por segundo, em vez dos 10.900 metros cúbicos por segundo determinados anteriormente pela área técnica do Ibama e dos 14.000 metros cúbicos por segundo da vazão natural média do Xingu nessa época do ano.
Para “compensar” a destruição da Volta Grande, a presidência do Ibama fez um “Termo de Compromisso Ambiental” com a Norte Energia, pelo qual a empresa “investe” 157,5 milhões de reais em ações de mitigação ao longo de três anos (leia na íntegra). Por exemplo: já que vão exterminar os peixes, que já não conseguem nem se alimentar nem se reproduzir, peixes que neste exato momento deveriam estar fazendo a piracema, mas em vez disso estão morrendo por falta de água, a empresa faz um projeto de reprodução de peixes em laboratório. É sério, não é piada. Antes fosse. Troca-se um pedaço da floresta por uma série de projetos artificiais que já se mostraram pouco viáveis nas compensações anteriores da Norte Energia que, na maioria das vezes, só enriquecem as empresas contratadas para executá-las.
Vale lembrar que a Norte Energia S.A. comprovadamente ainda não concluiu a totalidade das ações de mitigação necessárias para ter a licença de operação da usina ―e já opera desde 2016. A licença para operação foi dada pelo Ibama no final de 2015 sem que a empresa tivesse cumprido as condicionantes que condicionavam a operação. O que condicionava deixou de condicionar, num dos grandes escândalos de uma trajetória repleta deles.
As novas medidas supostamente compensatórias vão para essa conta de fiado que nenhum mercadinho de esquina aceitaria, mas o Governo brasileiro, sim. Inclusive porque quase metade (49,98%) das ações da Norte Energia é hoje composta pelo Grupo Eletrobras, um grupo composto por estatais. O segundo maior grupo de acionistas são fundos de pensão (20%), Petros e Funcef, o que significa que são fundos de previdência complementar dos funcionários da Petrobras e da Caixa Econômica Federal. Seria interessante saber o que os servidores pensam de sua previdência estar conectada com um desastre ecológico na Amazônia. A compensação, além de impossível na prática, é apenas uma promessa, já que o passivo da empresa é enorme, como provam mais de 20 ações do Ministério Público Federal (confira aqui).
Na prática, o presidente do Ibama autorizou que a empresa altere completamente o ciclo biológico da Volta Grande do Xingu, atingindo pelo menos dois povos indígenas, os Yudjá (também conhecidos como Juruna) e os Arara, o que é inconstitucional, assim como comunidades de ribeirinhos, de pescadores e de agricultores familiares. Autorizou também a degradação do Xingu, um dos maiores rios da Amazônia, além de toda a fauna e a flora da Volta Grande, uma das regiões mais extraordinárias da floresta, com algumas espécies endêmicas, como o acari zebra, o que significa que só existem naquele bioma e desaparecerão com ele. O presidente do principal órgão ambiental do Governo brasileiro autorizou uma empresa a controlar a água de um dos grandes tributários do Amazonas e destruir um pedaço da maior floresta tropical do mundo e engana a população afirmando que seria possível compensar a tragédia ecológica provocada. A floresta é um organismo integrado, complexo e interdependente, assim como o próprio planeta. O que acontece na Volta Grande do Xingu repercute em todo o sistema e vai acelerar a escalada da Amazônia rumo ao ponto de não retorno, no qual a floresta se converte numa savana.
O que aconteceu para que a área técnica do Ibama diga não e a área política diga sim? Pressão do que se chama setor elétrico e de seus agentes. E pressão com o apoio das editorias de economia de alguns dos grandes jornais do país ―sendo a principal exceção o repórter André Borges, de O Estado de S. Paulo, que tem feito uma cobertura irretocável. Desde janeiro há um cerco intenso sobre o Ibama e também sobre a opinião pública. As notas vazadas para a imprensa e, na maioria das vezes, reproduzidas sem crítica, anunciavam a ameaça de colapso do sistema elétrico do país caso o Ibama recusasse o volume de água demandado pela Norte Energia que, vale repetir, é comprovadamente incompatível com a manutenção do ecossistema da Volta Grande do Xingu.
Em 15 de dezembro, o Ministério de Minas e Energia já havia afirmado em ofício: “Conclui-se que as alterações no Hidrograma definido para a UHE Belo Monte, avaliadas pela ótica da geração de energia elétrica, se traduzem em relevantes impactos negativos ao setor elétrico brasileiro, com efeitos diversos, sistêmicos e coletivos, de planejamento, comerciais e operacionais, afetando, inclusive, a segurança energética”.
Em 27 de janeiro, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) enviou um ofício ao Ibama, assinado pelo diretor-geral, André Pepitonne da Nóbrega, afirmando: “Sem adentrar aos aspectos ambientais do assunto, o impacto estimado da medida aplicada nos dois primeiros meses de 2021, janeiro e fevereiro, seria próximo a 1,3 bilhão de reais para o consumidor final de energia elétrica”. O ofício (leia aqui) foi reproduzido como matéria por parte da imprensa sem mencionar o impacto socioambiental de uma vazão de água enormemente reduzida para a Volta Grande nem explicar como o diretor-geral da Aneel chegou a esse cálculo, para além da mera afirmação de que isso se deveria ao custo do “aumento da produção em usinas termelétricas”, mais caras e poluentes.
Em 28 de janeiro, o Ministério da Economia, comandado por Paulo Guedes, enviou uma nota técnica ao Ibama, afirmando: “Em resumo, sem entrar em qualquer discussão jurídica ou de mérito ambiental que foge das atribuições desta Secretaria, e assumindo as consequências energéticas apresentadas pelo ministério setorial responsável (Ministério de Minas e Energia), a manutenção pelo IBAMA do referido hidrograma pode atrapalhar a necessária retomada do crescimento econômico do país após crise sanitária sem precedente, importando riscos à ordem e à economia pública”. (O grifo é por minha conta, leia aqui)
Percebam que tanto o Ministério da Economia como a Aneel usam a malandragem de uma ressalva: “sem adentrar aos aspectos ambientais do assunto”, caso da Aneel, ou “sem entrar em qualquer discussão jurídica ou de mérito ambiental”, caso do Ministério da Economia. Como é possível fazer uma análise, no ano de 2021, sem abarcar a questão ambiental, isso em qualquer região do globo, e ainda com mais ênfase, na Amazônia? Não é preciso ter curso rápido de economia para compreender que isso é ou má fé ou incompetência ou ambas. Meio ambiente não é um tema paralelo, mas a linha que atravessa todos os outros temas. Tratar o meio ambiente como tema tangencial é de uma ignorância imperdoável e inaceitável neste momento histórico. Meio ambiente é a nossa casa, essa que a juventude climática denuncia que está em chamas ―e está. E, graças ao Brasil governado por Bolsonaro, também literalmente.
Vale lembrar que o fundo soberano da Noruega, o maior do mundo, excluiu a Eletrobras em 2020 devido às violações humanas e ambientais ocorridas na construção e operação de Belo Monte. “Risco inaceitável de que ela [Eletrobras] contribua para violações graves ou sistemáticas dos direitos humanos” foram as palavras usadas. Hoje, são os setores econômicos internacionais que mais pressionam pela conservação da Amazônia, não porque seus dirigentes repentinamente tenham se transformado em ecologistas, mas porque não são burros. E porque têm mais de dois neurônios são capazes de compreender que, sem a floresta não há futuro para a espécie e, portanto, também não haverá nem consumidores nem lucro. Se algum funcionário, mesmo de baixo escalão, fizesse qualquer análise de impacto sem “adentrar o tema ambiental” em qualquer organismo internacional ou em qualquer grande empresa com competividade hoje estaria demitido. O mesmo vale para jornalistas de economia. Aparentemente, os dirigentes brasileiros se formaram no século 20 e nunca mais leram nada. Ou, talvez, ficaram retidos ainda nos primeiros tempos da revolução industrial.
É também por violações ambientais, especialmente na Amazônia, que o acordo da União Europeia com o Mercosul naufraga nos parlamentos de países europeus. Nesta sexta-feira, por exemplo, o Fridays For Future, movimento liderado pela sueca Greta Thunberg, fará um tuitaço global pedindo que os parlamentos dos países europeus não ratifiquem o acordo da União Europeia com o Mercosul por causa da destruição da Amazônia. Duas de suas líderes vieram ao Brasil de barco à vela no final de 2019 para conhecer a floresta e conversar com lideranças indígenas, quilombolas e ribeirinhas no evento Amazônia Centro do Mundo, que aconteceu na Terra do Meio e em Altamira, no Pará, com a presença de Raoni e Davi Kopenawa, entre outros intelectuais da floresta.
Não há nada mais imbricado com o tema ambiental hoje, num mundo em colapso climático, que a economia. Mas os dirigentes da área no Brasil acham perfeitamente normal fazer a análise de um fato que resultará em enorme impacto ambiental sem “adentrar na questão ambiental”. A pasta de Paulo Guedes também achou apropriado usar expressões típicas de governos autoritários, sempre sacadas do coldre quando é necessário apavorar a população: “riscos à ordem e à economia pública”.
Nenhuma análise pode ser levada a sério sem o custo socioambiental. O Brasil tem sido fortemente pressionado e vem perdendo investimentos e mercado para seus produtos por conta do aumento da destruição da Amazônia, mas abre 2021 decretando o fim de um pedaço da floresta. Ao contrário dos impactos da alegada redução da produção de energia por Belo Monte, os impactos socioambientais sobre a Volta Grande do Xingu são bem acompanhados e documentados pelos melhores cientistas há anos. Basta ler as pesquisas e documentos. No mais recente, datado de 28 de janeiro e apresentado ao Ministério Público Federal, alguns dos principais pesquisadores brasileiros afirmam (leia na íntegra):
“Considerando que as populações indígenas e ribeirinhas moradoras da Volta Grande do Xingu têm como fundamento de seu modo de vida a codependência com os processos ecossistêmicos da região, quaisquer alterações imponderadas, imprudentes e/ou precipitadas desses processos levam a cenários de fragilização desses povos num sentido amplo da expressão. Trata-se da imposição irreversível de perda da soberania alimentar das famílias locais que tende a ser agravada para as próximas gerações, de fragilização econômica associada à perda de biodiversidade vegetal e animal, além da perda de qualidade de vida e de saúde dessas e das próximas gerações”.
Desde antes de sua construção, especialistas no setor elétrico já denunciavam que Belo Monte serviria mais para produzir propina do que energia, já que o rio Xingu vive uma estação de seca por metade do ano. Mesmo assim, a obra foi construída: orçada em 19 bilhões de reais no leilão, em 2010, o custo hoje já ultrapassou os 40 bilhões de reais, a maior parte financiado por dinheiro público do BNDES. A corrupção foi finalmente exposta pela Operação Lava Jato, ao revelar propinas pagas pelas empreiteiras que construíram a obra ao PMDB e PT, partidos no poder durante a construção.
Grande parte dos alertas feitos pelo painel de especialistas que analisou o impacto do projeto de Belo Monte sobre o ecossistema antes mesmo do leilão da usina se confirmaram. Em dezembro de 2019, o repórter André Borges, do Estadão, denunciou que a Norte Energia havia solicitado à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) autorização para construir usinas térmicas para compensar os meses de seca do Xingu. Além de caras, as térmicas são altamente poluentes. Semanas antes, EL PAÍS e The Guardian já tinham revelado que, em carta à diretora-presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), Christianne Dias Ferreira, o diretor-presidente da Norte Energia, Paulo Roberto Ribeiro Pinto, afirmava que precisava alterar a vazão do reservatório intermediário da hidrelétrica de Belo Monte devido à seca severa do Xingu, para evitar danos estruturais na barragem principal.
Além da inviabilidade técnica da usina, da corrupção e da destruição ambiental com efeitos em todo a região amazônica, a construção de Belo Monte foi determinante para converter Altamira, a principal cidade do Médio Xingu, na mais violenta da Amazônia. Em julho de 2019, a cidade foi também palco do segundo maior massacre carcerário da história do Brasil, com 62 mortos, a maioria decapitados ou queimados. Hoje, a cidade enfrenta, em plena pandemia, uma série de suicídios de crianças e adolescentes. A usina também foi determinante para tornar a região epicentro de desmatamento e de queimadas. Causou ainda grande impacto na saúde da população. O próprio Ministério da Saúde apontou o enorme aumento da desnutrição infantil de crianças indígenas durante a construção. Profissionais da saúde mental ligados à Universidade de São Paulo documentaram o impacto da expulsão do território produzida pela usina sobre a população ribeirinha no projeto Refugiados de Belo Monte. Obra totalmente paradoxal no cenário político do Brasil, a primeira turbina foi orgulhosamente inaugurada pela ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), em 2016, e a última orgulhosamente inaugurada pelo atual presidente, Jair Bolsonaro (sem partido), em 2019.
O atual e avançado capítulo de destruição é o que a Norte Energia e parte do governo, do mercado e da imprensa chamam de “Hidrograma de Consenso”, um nome digno da distopia de George Orwell. Na nota técnica do início de fevereiro, o próprio Ibama diz que não há consenso algum. Nas palavras literais: “Consideradas as evidências documentais de que os cronogramas A e B [vazões alternadas] NÃO foram oriundos de discussões técnicas envolvendo o Ibama, mas de uma decisão unilateral por parte do empreendedor, esse parecer se restringe aos mesmos como HIDROGRAMAS DE TESTE, e não de consenso”. (A caixa alta é do Ibama, não minha).
O “teste” mostrou o que já era antecipado pelos cientistas, a incompatibilidade entre uma quantidade tão reduzida de água e a reprodução da vida. O juiz federal que deu decisão favorável ao Ibama em detrimento da Norte Energia, no ano passado, baseou sua sentença no “princípio da precaução, da prevenção e da inversão do ônus da prova”. Assim, “impôs ao empreendedor o dever de provar que a sua atividade questionada não causa ou não está causando danos ao meio ambiente”. Como afirmou a área técnica do Ibama, a Norte Energia não conseguiu provar: “Esse parecer não considera adequada a abordagem dada pelo relatório técnico [da Norte Energia], sugerindo sua DEVOLUÇÃO e readequação”. (mais uma vez, a caixa alta é do Ibama, não minha).
E então veio a motosserra da área que se diz econômica, com a ameaça do colapso energético, do risco à segurança nacional e do enorme “ônus aos consumidores”. Na prática, o Governo Bolsonaro rifou a Volta Grande do Xingu por supostos 157,5 milhões de reais para uma usina que custou mais de 40 bilhões, cuja principal acionista é a Eletrobras. E qual é o plano para a Eletrobras? A privatização, no qual o enorme passivo ambiental e humano de Belo Monte, consolidada no cenário internacional como uma catástrofe ecológica na Amazônia, é um sério entrave, porque isso que se costuma chamar de “mercado” é ávido e inescrupuloso, mas não é burro. Quem ganha? Quem perde? Os interesses em torno de Belo Monte, desde antes do seu controverso leilão, têm se mostrado bem pouco republicanos.
Aceitando por um momento, apenas como exercício mental, que os interesses são pelo bem público, que existe uma preocupação genuína com a questão energética e que os dirigentes podem provar aquilo que afirmam: colapso energético, ameaça à segurança nacional, 1,3 bilhão de ônus para os consumidores etc. Aceitando, apenas hipoteticamente, que essas afirmações estariam corretas e foram proferias de boa fé, o que temos do outro lado? O colapso já em curso de uma região de 130 quilômetros de floresta tropical habitada por povos indígenas, ribeirinhos, pescadores e agricultores familiares, além de espécies de fauna e flora ainda não totalmente conhecidas, em um dos rios mais biodiversos do mundo. E isso num momento em que as principais autoridades do mundo, em todas as áreas, afirmam que a crise climática é o maior desafio da trajetória humana e que, para enfrentá-la, a Amazônia é estratégica. Este colapso, por sua vez, está totalmente documentado pelos cientistas mais respeitados para quem quiser se informar e estudar.
Aceitando ainda, apenas hipoteticamente, que a redução da produção de Belo Monte significaria um risco real de colapso energético, é importante assinalar que isso tornaria o planejamento brasileiro para o setor um arcaísmo incompatível com o atual momento global. Enquanto outros países, com muito menos potencial que o Brasil, têm feito enormes investimentos em energia solar e eólicas, o Brasil destrói a floresta e planeja destruir ainda mais, como já mostrou ao anunciar recentemente a retomada dos projetos hidrelétricos na Amazônia. Nenhum profissional sério hoje considera hidrelétrica na Amazônia “energia limpa”. Essa visão já foi totalmente superada pelas evidências bem documentadas da realidade e da ciência.
Aceitando apenas hipoteticamente que as duas premissas (e não apenas uma) são verdadeiras ―a do colapso ecológico, amplamente documentado, e a do colapso energético, essa apenas na boca de algumas autoridades do atual governo e suas visões ultrapassadas―, não seria sensato seguir o princípio básico da precaução? Algo dessa magnitude e impacto na maior floresta tropical do mundo não deveria ser ao menos amplamente discutido e com toda a sociedade? É assim, numa canetada, que o Governo de Bolsonaro condena um pedaço da Amazônia?
Destruir a floresta é destruir os padrões de chuva e do clima. É destruir a produção de alimentos, a renda dos agricultores e a competitividade e aceitação dos produtos brasileiros no mercado internacional. É impactar as condições de vida dos moradores de São Paulo e do Rio de Janeiro. É atingir o futuro de todos os habitantes do planeta. É disso que se trata. E, como o Governo é o agente da destruição, resta a nós impedir que mais um crime, esse de enormes proporções, aconteça. Ou a sociedade brasileira e global se mobiliza ou o ecocídio será consumado. Se a Volta Grande do Xingu morrer, estaremos dando mais um passo rumo ao nosso próprio suicídio como espécie.
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Nesta quarta-feira, 17 de fevereiro, o guerreiro indígena Aruká Juma morreu de covid-19. Ele era o último homem dos Juma, povo amazônico exterminado ao longo das últimas décadas por sucessivos ataques genocidas. O risco da pandemia para um povo de recente contato era conhecido e a construção de uma barreira sanitária foi determinada pelo Supremo Tribunal Federal. O Governo de Jair Bolsonaro não a fez. E o último Juma morreu. Segundo a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), no início do século 20 o povo Juma contava com 15.000 pessoas. Em 2002, estavam reduzidos a cinco ―um, dois, três, quatro, cinco. Hoje, não resta nenhum homem. O Governo Bolsonaro terminou de extinguir um povo e acaba de determinar a morte da Volta Grande do Xingu. Se seguirmos calados, é melhor sepultar logo isso que chamamos de Brasil. Numa vala comum, já que estão faltando covas nos cemitérios para tantos mortos.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum
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