Com os carros, a nossa cidadania é concretamente mutilada
A ‘carrocracia’ é a supremacia dos carros nos espaços das cidades, que concentra não apenas o privilegio de ter mais infraestrutura que favoreça seu uso, mas também disputa a narrativa de domínio espacial
Na madrugada do dia 8 de novembro de 2020, perdemos de maneira violenta a pesquisadora e cicloativista, referência em estudos sobre mobilidade urbana e gênero, Marina Kohler Harkot de 28 anos.
Uma trágica ironia, pois Marina foi vítima de um crime que compõe de maneira silenciosa um dos espectros da violência urbana, contra a qual ela incansavelmente lutava, dentro e fora dos espaços acadêmicos que ocupava. Falamos cada vez mais sobre direito à cidade e, para alguns essa expressão cunhada pelo sociólogo francês Henri Lefebvre em 1968, não faz sentido, já que a percepção do quanto os espaços da cidade são negados ou limitados para determinados grupos é naturalizada, sublimada no inconsciente coletivo da população. Perder uma vida humana é sempre uma dor, mas perder desse modo acaba constituindo uma denúncia contra o violento quadro urbano de ocupação desigual e opressora, desumanizante e desumanizada. Perdemos mais uma cicloativista e, principalmente, uma cidadã paulistana, para quem? Para a Carrocracia.
No artigo As cidadanias mutiladas, da coletânea O preconceito (vários autores), o geógrafo Milton Santos traz o conceito de cidadania mutilada, pois segundo ele, há diversos fatores que impedem alguns grupos sociais de usufruir plenamente dos direitos, espaços e decisões que tangenciam a vida nas cidades e nos garante o status de cidadãos e cidadãs. Pensando nesse conceito, podemos dizer que há mais um elemento que mutila nossa cidadania: a disputa desigual de poder de ocupação e permanência nos espaços das cidades. Essa disputa tem sido além de desigual, desumana, violenta.
Toda e qualquer violência, conforme alerta a feminista e acadêmica argentina Rita Segato, é um enunciado. Podemos dizer então que a violência é uma linguagem que comunica a intolerância frente os tensionamentos que as resistências urbanas representam no combate aos efeitos dessas relações de poder desiguais que ocorrem também nos espaços urbanos. A mobilidade ativa é um nicho de resistência contra a deterioração das relações sociais que tem sido construída nesses espaços e que consolidam cotidianamente os efeitos nocivos que sua estrutura provoca, através dos diversos tipos de poluição (sonora, visual e ambiental), do trânsito adoecedor, das arquiteturas opressoras, da falta de espaços verdes, etc.
Toda violência pretende eliminar resistências que se mostram dotadas de um alto potencial transformador. O uso da bicicleta, bem como a luta pela mobilidade ativa são algumas faces dessa resistência, pois é economicamente mais viável, não polui, promove a saúde de seus usuários que nem sempre tem tempo para se dedicar a uma atividade física e ao mesmo tempo, questiona a hegemonia dos carros que não antecede nossa urbanização, mas se soma a ela, moldando todos os espaços em função da locomoção motorizada.
No caso da violência urbana, temos a carrocracia como uma das linguagens da violência, contra a resistência de camadas mais conscientes da população que decidem investir esforços para promover não apenas a possibilidade de novos (e sustentáveis) modais, como a bicicleta, mas também a mobilidade ativa como um todo.
Mobilidade ativa é todo meio de transporte que preza pela autonomia de quem se desloca e por isso é conhecida também como mobilidade não motorizada.
De acordo com os dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), já temos no país, aproximadamente 50 milhões de bicicletas contra 41 milhões de carros. No entanto, apenas 3% dos deslocamentos diários no país são feitos por esse meio de transporte, contra 25% de deslocamentos por automóveis, conforme dados da Agência Nacional de Transportes Públicos (ANTP).
O risco e o medo de ser fatalmente vitimado como aconteceu com Marina Harkot é responsável por esses números. Essa é a explicação prática do que vem a ser a carrocracia.
A carrocracia é a supremacia dos carros nos espaços das cidades, que concentra não apenas o privilegio de ter mais infraestrutura que favoreça seu uso, mas também disputa a narrativa de domínio espacial, através da venda midiática da crença de que veículos motorizados individuais são o melhor meio de locomoção possível, não importando os danos físicos, ambientais e até econômicos que pode acarretar.
É um termo cunhado pelo jornalista e mestre em Estudos e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia, Marcelo de Trói, em seu excelente artigo Carrocracia: fluxo, desejo e diferenciação na cidade, onde ele discorre sobre os efeitos subjetivos da ocupação massiva dos carros nos espaços das grandes cidades, em detrimento do livre direito de locomoção das pessoas.
Evidente que quem ocupa os carros também são pessoas. Mas essas pessoas sofrem a “mágica capitalista” que reverte pessoas em coisas. Ou seja, o uso do carro, sob influência de toda uma propaganda de elevação moral passível de ser adquirida por quem tem a posse de um carro, coisifica humanidades a ponto desses fazerem de um objeto motorizado, a extensão perversa e megalomaníaca de si mesmo.
Predomina no senso comum social, uma lógica de poder absoluto depositada nos carros que tem tudo a ver com a supremacia masculina elitista e racista, que faz com que a população acredite que o carro tem mais direitos do que o pedestre ou usuários de outros modais. O resultado disso é a completa omissão do poder público para com a crescente morte de ciclistas e pedestres em geral. E esse processo não se deu da noite para o dia, vem acompanhando o desenvolvimento urbano a partir de sua formação com amplo apoio institucional e empresarial, reconhecidos entes que até os dias de hoje não demonstraram apreço ou vontade de compreender o meio urbano em toda sua complexidade simbólica e deliberativa do futuro das cidades.
Munido de um caráter elitista a fantasia falocêntrica de poder que o carro representa, sempre esteve à frente da sua função utilitária, desde os primórdios de sua introdução nas cidades, amplamente alardeado como elemento que traria progresso. O senso comum assimilou a glamorização da posse de um veículo, ou seja, a sociedade, grosso modo, acredita que ter um carro é ter status social elevado, mesmo quando são veículos “populares”.
Longe de querer demonizar os usuários, devemos cobrar da indústria automobilística os estragos que produziram no imaginário social, pautando a posse do carro como realização socioeconômica e pessoal, dispondo de todo um esquema de marketing para isso? Sem dúvidas.
Mas a sociedade como um todo precisa se conscientizar de que ter um automóvel abre três grandes problemas que acabam ofuscando os supostos benefícios que um veículo trás.
Primeiro: quanto mais pessoas usam e abusam do carro, mais o poder público se isenta de sua responsabilidade em oferecer transporte público de qualidade e gratuito e estrutura física para o uso de outras alternativas de deslocamento, mais viáveis do ponto de vista econômico para classes mais baixas e mais saudáveis para a população como um todo.
Segundo: o carro é um elemento simbólico que reproduz as hierarquias capitalistas, de classe/raça e gênero que alimentam as desigualdades que distanciam as pessoas a partir de uma ideia de superioridade do possuidor e, portanto, falar sobre carrocracia é também falar em outro viés das desigualdades socioespaciais.
Terceiro: uma vez que essa hegemonia dos carros na cidade, a carrocracia, é questionada pela mobilidade ativa, a violência se faz presente, banalizando a vida humana e usando o carro como instrumento de promoção de mortes, tanto para pedestres e usuários de outros modais, como para os próprios donos de carros, haja vista a quantidade de mortes no trânsito por colisão entre carros.
E precisa ser conscientizada principalmente que a hegemonia dos carros nas cidades está muito longe de ser glamourosa e muito intrínseca a diversas tragédias cotidianas.
Em 2019, o número de mortes de ciclistas em São Paulo aumentou em 64%, segundo dados do Infosiga (Sistema de Informações Gerenciais de Acidentes de Trânsito de São Paulo). É leviano pensar que esses números são de exclusiva responsabilidade dos ciclistas, como dizem alguns especialistas. Esse entendimento reafirma a hegemonia dos carros ao estabelecer que quem se desloca pela cidade tem que se submeter a presença dos carros. Tudo é pensado em função do “direito do carro” e não do direito a cidade. Desde placas e sinalização, até o tamanho dos leitos carroçáveis que são escandalosamente maiores do que a largura das calçadas (passeio público), a lógica de prioridade dos casos se repete e enuncia de quem é a cidade. E não é dos pedestres ou dos usuários da mobilidade ativa.
Como Marcelo de Tróis alerta em seu artigo, estamos em guerra pelo direito de se deslocar pela cidade com respeito e tranquilidade e, nesse sentido, parafraseando Milton santos, nossa cidadania, para além de simbólica, está concretamente sendo mutilada. Precisamos de todo suporte institucional e público para emergir uma nova mentalidade sobre as possibilidades de locomoção saudável e segura nas cidades. E para isso, se permanecer como possibilidade, os carros e seus usuários precisam saber que cidades foram feitas por e para pessoas, logo, pessoas são prioridade em respeito e espaço para transitar livremente e com segurança, para que outras tantas Marinas não sejam vitimadas pela ideologia violenta de um tipo silencioso de supremacia.
Afinal, como alerta Ned Ludd em Carros e Remédios (Apocalipse Motorizado – A tirania do automóvel em um planeta poluído org. Ned Ludd, Editora Baderna), “toda tecnologia é a encarnação de valores, significações, e intenções sociais.” Qual seria a intenção da hegemonia do dos carros nas cidades?
Joice Berth é urbanista e escritora.
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