Grávida de gêmeos, L. saiu da sala de parto com um filho só. A história que colocou um hospital sob suspeita
A adolescente L. vive há dois anos entre a esperança e o medo de saber o destino de um filho que não conheceu e nem sabe se existiu, apesar dos ultrassons e testemunhos de profissionais que a examinaram. Polícia e MP investigam caso que despertou suspeita de tráfico de criança
Às 16h do dia 6 de setembro de 2019, L., 15 anos, deu entrada no Hospital Memorial Guararapes, em Jaboatão dos Guararapes (PE), grávida de dois bebês. Era isso que atestavam as duas ultrassonografias, realizadas nos quarto e sétimo mês de gestação, as quatro consultas de pré-natal e as cinco pessoas que auscultaram os fetos entre a chegada dela à unidade de saúde e o momento do parto. Sempre duas imagens, dois corações, duas vidas. Pouco antes das 15h do dia 7, a adolescente entrou na sala de cirurgia para receber Lucas e Luan. Da maternidade, saiu apenas com Lucas. Passados quase dois anos, ela ainda não sabe o destino de Luan, mas segue procurando o filho.
Não, este não é um roteiro de novela das nove. A história de uma jovem mãe que tenta entender o que aconteceu com o filho revela que a ficção, por mais que tente, jamais será tão dura quanto a realidade para pessoas como L. Foi na sala de parto que a adolescente ouviu pela primeira vez que seu segundo filho não existia. Ele teria sido fruto de uma sucessão de erros não identificados até ali, explicaram os obstetras presentes na ocasião. A jovem, no entanto, não acredita que Luan foi apenas um erro. Com documentos em mãos que mostram a gravidez gemelar, L. luta para dar sentido à existência do filho que não conheceu. “Pode ter acontecido o que todo mundo diz, tráfico de crianças, e me dói muito imaginar isso”, afirma a adolescente.
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O intervalo entre a internação de L. no dia 6, e sua alta do hospital no dia 11 de setembro, é motivo de investigação criminal na Polícia Civil e também no Ministério Público de Pernambuco. O EL PAÍS teve acesso ao inquérito, que corre em segredo de justiça, e também ao relatório da investigação policial encerrado no dia 3 de fevereiro de 2021. No documento de 35 páginas, a delegada Vilaneida Aguiar conclui que apesar de todas as diligências e depoimentos realizados para esclarecer os fatos, “não foi possível constatar que L. de fato estava grávida de gêmeos”. A conclusão se sustenta no depoimento das 14 pessoas que estavam na sala de parto, entre estudantes de medicina, médicos e enfermeiros. “Todos eles verificaram que somente havia um bebê e que seria difícil ocultar de tantas testemunhas a existência de outro bebê”, afirma Aguiar.
A própria delegada, no entanto, planta a semente de dúvida. No documento, ela afirma que encaminhou para o Instituto de Medicina Legal (IML) um vídeo com imagens gravadas da tela do aparelho de uma ultrassonografia realizada por L. no sétimo mês de gravidez. A conclusão do perito é que haviam dois bebês. “Pode-se afirmar que são identificadas na gravação do exame obstétrico a presença de dois fetos em avançado estado de gestação”, afirma Alexandre José Silva Ferreira Gomes, médico especialista em radiologia e diagnóstico de imagem.
A polícia conclui que não foi possível constatar que L. estava realmente grávida de gêmeos, mas tampouco apresentou elementos que negassem esse fato. Sem explicação razoável, L. está há dois anos presa entre a esperança e o medo.
“Muito nova para ser mãe de dois”
L. havia agendado anteriormente para o dia 6 de setembro apenas mais uma consulta de pré-natal. Estava então por volta de 37 a 38 semanas de gestação. Quando chegou ao Instituto Humanize, uma organização social de saúde que realiza acompanhamento gratuito para as gestantes, L. estava preparada para uma consulta rápida. Estava com as malas prontas para viajar para a casa do pai, na cidade de Chã Grande, Agreste pernambucano. Mas, foi informada por uma médica de plantão no Humanize que precisaria acelerar o parto, pois eram gêmeos, ela era nova e a barriga estava muito apertada.
“Mas, por quê? Eu também fui grávida de gêmeos e esperei os nove meses”, perguntou a doméstica Daniela Santos, 32 anos, mãe de L., para quem a médica reafirmou a necessidade da interrupção pela idade e tamanho das crianças. A profissional saiu da sala, com um telefone em mãos, e voltou pedindo para L. e a mãe irem direito para o Hospital Memorial Guararapes. A unidade, no quarteirão seguinte, estava com o plantão da maternidade fechado. “Tinha várias grávidas gritando de dor na recepção quando cheguei. Disseram que não poderiam me atender, mas quando avisei que tinha sido encaminhada pelo Humanize, a mulher da recepção foi lá dentro e depois de 15 minutos voltou pedindo para eu entrar”, conta a jovem.
Daí em diante, foram 23 horas até o momento do parto. Inicialmente marcado para a meia-noite, o procedimento foi adiado para o dia seguinte. Como era uma gravidez de gêmeos, precisaria de dois pediatras em sala, mas só havia um disponível no hospital, que acabara de receber uma criança de 11 anos em estado grave. Segundo L., todas as pessoas que entraram no quarto para examiná-la reforçavam: os dois bebês estavam bem. O batimento cardíaco fetal (BCF) foi examinado cinco vezes entre a internação e o parto. “19h50, BCF1: 140 bpm; BCF2: 158 bpm”, estava escrito em letra cursiva no prontuário da adolescente em relação aos dois fetos. Esse é um dos exames realizados para garantir que nem Lucas nem Luan tivessem sofrimento fetal. Por isso, a ausculta se repetiu às 22h10, às 8h34, às 10h27 e às 12h30.
L. foi chamada para o procedimento por volta das 14h. Daniela e a filha se separaram, como manda o protocolo hospitalar, e só voltaram a se encontrar no leito da cirurgia. “Me informaram que iriam buscar uma roupa para mim, o que demorou meia hora”, afirma Daniela. Enquanto isso, L. foi levada para uma sala, onde contaram como seria a cesárea, e que, talvez, os bebês precisassem de UTI. Uma das profissionais chegou com os dois cartões de visita, perguntou o nome do pai e da mãe, e anotou em cada um deles o nome dos meninos. L. perguntou pela mãe e foi informada que a futura avó aguardava uma roupa para entrar na sala de cirurgia. “Aí chegou a doutora e me perguntou: ‘mas você não acha que é muito nova para ser mãe de dois? Que não é muito trabalho? Como vai ser criar dois meninos? Eu estava muito nervosa, só balançava a cabeça. Queria a minha mãe”, conta L., sem saber informar o nome da profissional que fez o comentário.
A médica Juliana Souto foi responsável pelo parto da adolescente. O EL PAÍS tentou o contato dela, mas o hospital não forneceu. Outra profissional que aparece nos relatos da jovem é a médica Helaine Rosenthal, professora do programa da universidade e coordenadora do setor de obstetrícia do Hospital Memorial Guararapes, que estava no bloco cirúrgico durante o parto. A Dra. Helaine falou com a reportagem mas não deu detalhes do dia do parto, como se lê mais adiante.
Gestão dupla, trabalho dobrado
Lucas e Luan não seriam os primeiros gêmeos da família Santos. L. tem duas irmãs gêmeas, de 10 anos. A avó paterna chegou a ter duas crianças da mesma gestação, que não sobreviveram após o nascimento. O histórico amenizou o choque da notícia da gravidez, recebida depois de um teste de farmácia. A família optou em fazer os ultrassons em clínica particular, para evitar ficar na fila do Sistema Único de Saúde. “É muita burocracia para conseguir uma consulta quanto mais um ultrassom”, disse a mãe da adolescente. Da primeira clínica em que pagaram o ultrassom com dinheiro próprio, 400 reais, o Consultório Popular LP Saúde, Daniela já saiu correndo para o centro comercial do bairro de Prazeres, queria comprar duas roupinhas iguais para os netos. A partir dali, a família teve que se desdobrar para conseguir bancar um duplo enxoval. Eram os dois primeiros filhos de Jefferson Santos, de 22 anos, que decidiu trabalhar dobrado. “Rapaz, foi uma luta, viu? De tudo a gente comprava de dois, precisei trabalhar mais, trabalhar mesmo, direto.”
O casal fez dois empréstimos. O primeiro, de 2.000 reais, para comprar as roupas. O segundo, de 1.500 reais, no sétimo mês de gestação, para bancar um berço e um guarda-roupas novos, uma cama e uma cômoda usadas. Ficou faltando pagar 500 reais ao amigo que emprestou e relevou a dívida. L. sonhava vestir os dois filhos iguais. Em agosto de 2019, quando a filha estava com 33 para 34 semanas de gravidez, quis se certificar que estava tudo bem com os gêmeos e pagou novo ultrassom, na clínica Pró-Center. Lá, como eram duas crianças, foi cobrado duplo valor. Foi nessa clínica que uma das irmãs mais novas de L., então com 8 anos, faria um vídeo de pouco mais de um minuto que seria usado pela perícia para atestar a existências de dois bebês.
A médica Mara R. Guarim Silva, que realizou o ultrassom, comenta no vídeo que os fetos já estavam “bem apertadinhos”, um estaria sentado ou outro com a cabeça para baixo. “Você se lembra se eles eram da mesma placenta?”, pergunta a médica explicando que quando o feto é menor é mais fácil visualizar a placenta. “Não vai demorar muito para você ter eles, não.” A médica voltou a confirmar seu diagnóstico à polícia, que realizou também uma perícia nos equipamentos de ultrassom das duas clínicas e não constatou nenhum problema que pudesse levar a um falso diagnóstico. Em seu depoimento, a médica afirmou que não havia nenhuma possibilidade de a adolescente não estar grávida de gêmeos, tampouco de ter sido acometida de um eventual nódulo, como um mioma —um tipo de tumor benigno que se forma na região do útero, e que poderia, em último caso, ter sido confundido com um feto. “Mioma não tem batimento cardíaco”, disse a médica, que explicou que erros de diagnóstico de imagens são mais comuns no começo da gravidez.
A primeira ultrassonografia, por sua vez, foi realizada pela médica Andrea Karla Gabão, da clínica LP Saúde, quando L. estava com 19 semanas. No inquérito, a médica que há 14 anos realiza ultrassonografias, confirmou seu laudo inicial: a vítima estava grávida de gêmeos idênticos; tinha uma gravidez normal, sem risco para os bebês e para a mãe, que poderia chegar até a 40ª semana; e que os fetos estavam em perfeito estado na data em que realizou o exame. Procurada, a médica não quis dar entrevista sobre o assunto. Nenhuma das clínicas tinha o histórico das imagens dos exames realizados para enviar à polícia porque as máquinas não têm memória para guardar.
“Ainda bem que a avó está aqui e viu”
Nos momentos que antecederam ao parto, a preocupação tomou conta de mãe e filha. Já no centro cirúrgico, L. pediu para ir ao banheiro e, quando voltou, encontrou uma sala cheia. Todos pareciam estar lá, menos sua mãe. Seis estudantes de medicina do Centro Universitário Maurício de Nassau foram autorizados a participar do parto, uma vez que o Gaurarapes é um hospital-escola. No inquérito, a médica Helaine Rosenthal afirma que o protocolo é deixar apenas dois alunos por parto, mas como o plantão estava calmo, ela permitiu os seis alunos. L. não tinha ideia que tantas pessoas iriam assistir ao parto.
O protocolo do centro cirúrgico diz que os acompanhantes só podem entrar na sala de parto quando a gestante já estiver anestesiada e o campo cirúrgico —um pano que cobre a mãe e serve de barreira física para fluídos— posicionado. Médicos narram o que aconteceu do outro lado da cobertura, uma vez que a mãe não tem visão total do que está acontecendo com ela. A médica que realizou o parto, Juliana Souto, afirmou à polícia que só iniciou a incisão quando a mãe de L. já estava ao lado da filha. No entanto, Daniela lembra que quando entrou na sala “já havia um cheiro de couro queimado na sala”, o que poderia indicar o início da corte da cesárea. “Não reparei se estava aberta, mas pelo cheiro — já fiz cesárea — creio que sim”, afirmou. A hipótese, levantada em depoimento pela Dra. Helaine, é que a cirurgia já tivesse sido iniciada quando Daniela entrou, o que justificaria o cheiro provocado pelo bisturi elétrico ao fazer a incisão na pele.
Foram poucos minutos até Lucas nascer. “Foi muito rápido, só o tempo de eu segurar a mão dela”, diz Daniela. Neste momento, as duas foram informadas que iriam puxar Luan, mas o menino não veio. “Ainda bem que a avó está aqui e viu que apenas nasceu um bebê”, disse a médica Juliana Souto, conforme depoimento no inquérito.
A Dra. Juliana afirmou à polícia que no momento que identificou que havia apenas um bebê mandou que a equipe mantivesse a porta do centro cirúrgico fechada para que não entrasse ou saísse ninguém até que a jovem mãe entendesse o que estava acontecendo e a médica Dra. Helaine fosse chamada e pudesse confirmar que só existia um bebê. Testemunhas lembram que Juliana continuou procurando por Luan na cavidade abdominal da adolescente até a chegada da coordenadora. Helaine, após examinar a paciente, pediu que a médica fechasse o útero.
30 minutos de separação
Os trinta minutos de separação entre mãe e filha são o elemento fiador das duas. Para elas, nesse intervalo podem ter iniciado o procedimento e retirado uma das crianças. O hospital nega, e um enfermeiro de maneira informal chegou a orientar a família, logo depois do parto, a processar as duas clínicas onde foram feitas as ultrassonografias. Daniela decidiu procurar a Polícia Civil. Como era feriado, encontrou a delegacia fechada e voltou no primeiro dia útil para registrar um boletim de ocorrência. O caso saiu na imprensa local. A obstetra responsável pelo parto não gostou. “Sua mãe deveria procurar as clínicas fuleiras”, teria dito Dra. Helaine, ainda no hospital. Antes de sair do quarto, fez um acréscimo. Orientou a adolescente a deixar os gêmeos “para o próximo ano”.
No inquérito, o relato da médica Juliana Soto, dos dois pediatras, da anestesista, do instrumentador cirúrgico e das três enfermeiras que acompanharam o parto é bem semelhante. Todos viram a adolescente ser sedada, ficaram surpresos ao constatarem que só havia um bebê e só saíram após o final da cirurgia. “Vi a placenta ser retirada, jogada fora no lixo hospitalar, realizada a limpeza do útero, colocado no lugar novamente e iniciada a sutura na barriga de L.”, disse uma das enfermeiras que acompanhou a adolescente até a sala de recuperação.
Os relatos dos estudantes também são similares. Eles afirmam terem entrado quando a jovem já estava na sala e terem saído logo após o nascimento de Lucas. O que pareceu incomodá-los aconteceu após o parto. Todos contam que haveria um pedido para que confirmassem que a Dra. Helaine estaria o tempo todo na sala de cirurgia. Nenhum deles afirma, porém, ter ouvido o pedido diretamente da médica, muito menos a razão para tal pedido. Segundo eles, a coordenadora também tentou marcar uma reunião entre os estudantes e advogados do hospital antes dos depoimentos, mas essa reunião não chegou a acontecer. Isso porque alguns estudantes levaram seus próprios advogados ao depoimento. Todos afirmam terem recebido ligação da coordenadora no dia em que iriam falar com a polícia, mas ninguém atendeu. Apenas uma das alunas confirma que recebeu uma mensagem de WhatsApp onde a médica perguntava como tinha sido na delegacia.
A Dra. Helaine, por sua vez, disse à polícia que ela mesmo fora induzida ao erro pelos exames de ultrassom. A coordenadora do hospital atendeu L. em sua consulta pré-natal realizada em 5 de julho, quando a adolescente estava com 26 semanas. A médica é experiente, tem mais de 30 anos de atuação em ginecologia e obstetrícia, porém, afirmou não possuir especialização em radiologia nem em medicina fetal, por isso levou como certo o que estava no laudo escrito do exame de ultrassonografia. Na consulta, chegou a anotar no prontuário da adolescente os batimentos cardíacos dos dois “possíveis fetos”. No depoimento, ela esclareceu que o segundo batimento pode ter sido de transmissão do coração da mãe ou mesmo do cordão umbilical. Dra. Helaine disse ainda que participou do parto e que, à exceção de duas enfermeiras, todos os demais assistiram do começo ao fim da cirurgia, versão não corroborada por todas as testemunhas, como é o caso dos estudantes de Medicina que negaram tê-la visto desde o início, conforme o depoimento nas mãos da Justiça.
Todos os profissionais ouvidos pela reportagem afirmaram que nunca viram em sua carreira um caso de gravidez gemelar atestada por ultrassonografia se mostrar falsa no momento do parto. Um recurso que poderia evitar suspeitas para o hospital, neste caso, seria o acesso às câmeras de segurança. Ninguém soube dizer, no entanto, por que as câmeras, localizadas fora da sala de cirurgia, não estavam funcionando, nem se elas continuaram quebradas após o ocorrido.
“Temos um nome a zelar”
Os casos de erros de ultrassonografia de gravidez de gêmeos que se mostram falsas no momento do parto são muito raros, ainda que existam registros no Brasil. Em setembro de 2019, a Polícia Civil de Quirinópolis (GO) investigava o caso de uma mulher grávida de gêmeos, que, no momento da cesárea, deu à luz apenas um bebê ―apesar dos quatro ultrassons que atestavam a existência de dois fetos. Em 2018, a Prefeitura de Alagoa Grande (PB) foi condenada a pagar 10.000 reais por erros de diagnóstico cometidos no hospital municipal durante o pré-natal de uma mulher, também grávida de gêmeos, mas que teve apenas uma criança. O mesmo aconteceu em 2012, em Igatu (CE), onde o Hospital Regional Doutor Manoel Batista de Oliveira foi condenado a pagar 5.000 reais por erro no diagnóstico de gravidez gemelar.
A médica Helaine Rosenthal falou com o EL PAÍS sobre o fato de a perícia ter atestado a gravidez no único vídeo disponível. Ela afirma não ter visto o resultado da perícia, mas acredita que ela é facilmente contestável. “É uma coisa absurda, eu estava lá no momento, só tinha um bebê, e tinha muita gente na sala de cirurgia, inclusive a mãe da paciente”, diz. Helaine afirma que não tem medo da possível abertura de inquérito e que o caso não afetou a sua reputação. “Os médicos aqui até brincam: devolve a criança”, diz, garantindo que isso não lhe tira o sono. “Minha reputação está feita, não é isso que vai rachar.”
Diz que se chateia pela disputa de versões com as médicas que fizeram os exames de imagem. “Seria mais elegante e ético das ultrassonografistas dizerem que o aparelho é de má qualidade, que o exame é passível de erro e que elas são radiologistas e não ultrassonografistas, o que é uma diferença. Mas elas sustentaram [em depoimento] a versão que diz que a gente sumiu com uma criança. Não tem por que estarmos escondendo um cadáver ou traficando menino. Temos nome a zelar”, afirma.
Infelizmente, só reputação não é garantia em suspeita de tráfico de pessoas. Seja para exploração sexual, trabalho análogo à escravidão ou venda de órgãos, o tráfico é um crime invisível e muito lucrativo. Não à toa o caso de L. é acompanhado de perto por duas ONGs internacionais, o Instituto Latino-Americano de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos (ILADH) e o Freedom Fund.
Pernambuco tem no currículo o único caso de tráfico internacional de órgãos levado à justiça. Em 2003, a Polícia Federal desarticulou uma quadrilha de tráfico internacional de órgãos humanos que aliciou 47 pessoas em Pernambuco com dificuldade financeira para venderem seus rins. O comércio abastecia países da Europa e da África. O caso, que ajudou a tirar o tráfico de órgãos da lista de lendas urbanas, é contado no livro Rim por rim (Record), do jornalista Julio Ludemir. Mas não é preciso ir tão longe no tempo. Em outubro de 2019, duas mulheres foram presas em flagrante tentando negociar a venda de uma criança. O crime aconteceu no Hospital Memorial Guararapes, o mesmo onde L. esperava sair com os dois filhos no braço em setembro de 2019.
O EL PAÍS procurou todas as pessoas citadas nominalmente na reportagem. As clínicas onde os exames de ultrassom foram realizados não puderam ser contatadas tanto pelos números que constavam nos exames quanto pelos números disponíveis na internet. O Hospital Memorial Guararapes afirmou, em nota, que “a mãe da paciente estava presente no parto de sua filha e assistiu a todo o procedimento da equipe médica, desde o início da incisão para a cesariana até o nascimento do recém-nascido e acompanhou todo o ato cirúrgico bem como a surpresa de toda a equipe ao constatar que havia apenas um recém-nascido”. Segundo a unidade, a genitora também acompanhou os procedimentos de verificação da equipe médica no intuito de ter a certeza de que não havia outro bebê, “sendo, de fato, constatado que não se tratava de uma gestação gemelar”.
O hospital chegou a abrir uma sindicância interna para apurar os fatos. “A conclusão não apontou qualquer indício que justificasse medida de punição administrativa a nenhum dos envolvidos.” Em setembro de 2020, o Instituto Humanize, onde foi realizado o pré-natal de L., foi alvo da Operação Desumano, da Polícia Federal, Controladoria-Geral da União (CGU) e Ministérios Públicos Federal e Estadual por indícios de irregularidade, pagamentos indevidos e desvio de recursos na execução de contratos para enfrentamento da pandemia da covid-19. O caso segue em investigação.
Desde o ocorrido, L. deixou a casa da mãe na periferia de Jaboatão dos Guararapes. Mudou-se com o marido e o filho Lucas para uma casa na cidade de Chã Grande, agreste pernambucano, onde vive parte de sua família. Lá, Jefferson trabalha como servente de pedreiro. Os dois vivem em uma casa de cinco cômodos ―dois quartos, uma sala, uma cozinha e um banheiro― e poucos móveis. Na sala, apenas um sofá e uma cortina. A decoração é feita com os objetos do enxoval. Os três quadros de papelão, com o nome dos dois meninos, feitos pela avó Daniela, e a cômoda branca― que ampara a televisão. Duas cadeiras de plástico brancas completam a recepção. O imóvel fica em uma rua de paralelepípedo, no centro da cidade. É onde a família está tentando reconstruir a vida após o nascimento do bebê. A alegria de L. partiu. “Minha filha era uma menina feliz, risonha. Ficou calada e revoltada. A gente não vê mais o brilho no olho dela, essa é a palavra. Eu me sinto revoltada”, lamenta Daniela.
Agora L. passa os dias na internet, buscando em grupos de mães nas redes sociais fotos de crianças semelhantes ao filho Lucas. “Mãe, não parece com o Lucas, né?”, segue a mensagem acompanhada de um bebê aleatório para o Whatsapp de Dani. “Mãe, onde está meu filho, mãe? Ele vai pensar que eu abandonei ele.” “Não fica assim, não, deixa Deus trabalhar. Se tiver outro, a gente vai achar”, consola Dani, em mensagens trocadas em 2020. L. tem medo que o filho esteja sofrendo. Quer o reencontro dos irmãos.
O histórico gemelar na família reforça a sensação de que há lacunas a serem preenchidas no caso. Ao redor de L., todos acreditam que Luan existe e está vivo. Ao menos, que ocorreu algum erro durante a cirurgia. Na sala onde a adolescente conta sua história, se somam os olhares de revolta e pedidos de justiça de seus familiares. “Fizeram alguma tramagem ali, no hospital, na hora de dar a roupa para a mãe dela. Não sei explicar, ou foi tráfico de crianças ou cortaram o menino. Na frente, o hospital é particular e a gente sabe, para esse povo, rico é quem manda”, reclama Jefferson, o pai dos meninos, que é interpelado por um tio de L. “Se a pessoa ficar calada, nunca vai descobrir. Não é porque a pessoa é pobre que vai ficar com medo”, diz Manoel Silva, de 46 anos.
A família não concorda com o resultado da investigação policial, que, até o momento, não indiciou ninguém. Aguarda resposta do Ministério Público de Pernambuco, querem ver um documento que explique e confirme a falta de um segundo bebê. Em nota, o MP-PE afirmou que o inquérito policial foi encaminhado para a 12ª Promotoria de Justiça Criminal de Jaboatão. “No momento, o caso está em fase de investigação, com o apoio do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco)”.
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